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A Grande Separação (The Big Sort)

Uma crônica que eu nunca deixo de ler é a da Lúcia Guimarães, no Caderno 2 de segunda feira do Estadão. Ela é perfeita, e assim sendo resolvi me intrometer na sua crônica de 07/10: "Os Anões do Apocalipse", que trata da paralisação do governo americano.

Tive a sorte de morar nos Estados Unidos de agosto de 1982 a agosto de 1983, ao sul de São Francisco, na pequena cidade de Los Gatos (que ficou conhecida aqui em 1994 como local da concentração da seleção brasileira na Copa do Mundo daquele ano). Cheguei lá apenas com um endereço de um brasileiro que tinha sido professor visitante no ITA em seu ano sabático. Aluguei uma "small cottage furnished, with piano", imposição da minha esposa que é pianista, e fiquei aguardando a resposta a um telefonema que dei ao Lineu, o professor. Ela veio dias mais tarde, com um convite para um jantar, ao qual comparecemos todos: eu, minha mulher e minhas duas filhas.

Para nossa surpresa, ao terminarmos o jantar, começaram a chegar mais pessoas. Fiquei sabendo que aqueles eram os convidados "for the dessert", para a sobremesa, um costume que, cá para nós habitantes "down Rio Grande", é totalmente inaceitável.

Mas tudo bem, eles não estavam lá apenas pra comer sobremesa. A minha família ia ser avaliada pra ser ou não aceita no grupo de brasileiros moradores na "South Bay Area". Os brasileiros residentes por lá fogem dos turistas e moradores temporários como o Diabo da cruz; e com justa razão. Eles falam alto nos Shopping Centers, reclamam de tudo, chamam os americanos de burros, detestam a comida, e por aí vai. No entanto nós estávamos razoavelmente preparados para a sabatina. O Lineu era um instrumentista, tocava flauta e cello com perfeição e logo estava tocando acompanhado pela minha esposa. Minha filha mais velha tocou algumas peças de piano e a mais nova, de 8 anos na época, tocou violão. A coisa só engrossou um pouco quando eu comecei a tecer elogios ao Jimmy Carter, que eu considerei o melhor presidente americano para a América Latina. Eu estava certo, claro, até porque ele acabou por ganhar o Nobel da Paz, mas cedo vim a saber que a quase totalidade das pessoas ali presentes eram conservadoras ao extremo, votavam republicano.

Era uma questão de sobrevivência um estrangeiro se declarar conservador, e eu cedo vim a aprender isso. Porém o que mais me chamou a atenção foi que toda a minha vizinhança em redor da Linda Avenue, uma travessa da Los Gatos Almaden Road, onde morava, era politicamente homogênea, pensava igual. Era impensável por lá imaginar um petista morando ao lado de um tucano. O mapeamento das áreas urbanas trazia invisível a posição política dos seus moradores. Como Los Gatos era de fato um subúrbio classe média alta de San José, imaginei que aquilo se tratava de uma divisão por classes da sociedade local, politicamente mais segregada que a nossa.

Somente décadas mais tarde vim a travar conhecimento do que os sociólogos vieram a chamar de Big Sort, a Grande Separação. Segundo Lúcia Guimarães, "cada vez mais os americanos escolhem morar em estados ou cidades onde esperam ter como vizinhos quem pensa como eles". O resultado político dessa migração é que as eleições locais passaram a ser vencidas, sempre, por ampla maioria, numa segregação ideológica evidente. Assim, um deputado republicano nunca  nunca vai temer o seu rival democrata para se reeleger, mas sim o lunático do Tea Party nas primárias do seu partido.

O temor de uma punição em seu curral eleitoral deixou de existir. O meu ídolo Jimmy Carter, muito apropriadamente, declarou, com base inclusive nesses fatos, mas mais precisamente referindo-se à NSA, que a democracia nos Estados Unidos não está funcionando nesses tempos. É uma tarefa fácil mapear os dois Estados Unidos existentes nas áreas urbanas, um rival mortal do outro. Chega-se a falar em uma crise doméstica equivalente à dos mísseis cubanos, e ela acaba de se cristalizar com a paralisação do governo americano.

Certa vez vi na TV uma paródia em que um repórter esportivo foi convocado para transmitir o casamento de uma socialite. Ele dizia algo como "desce o pai da noiva conduzindo a mesma pelo centro da igreja", e assim por diante. A imprensa está tratando o "shutdown" como uma partida de futebol entre democratas e republicanos, Existe um falta total, por parte da imprensa, de conhecimento da verdadeira situação em que se encontra a sociedade americana. O que está ocorrendo é que um dos times está perdendo torcida a passos largos, e não aceita isso de forma democrática.

A maior economia do mundo tem 49 milhões de pessoas que não possuem qualquer cobertura de plano de saúde. isso equivale a 16% de sua população. Tem ainda os serviços médicos mais caros do mundo. Segundo a Veja de 09/10, 2 milhões de americanos declaram insolvência anualmente por dívidas com a saúde, e 80 milhões evitam ir ao médico todo ano por causa dos preços elevados. Barack Obama resolveu enfrentar esse problema criando uma lei do seguro saúde, o chamado Obamacare. A proposta passou pelo Legislativo, mas os republicanos a contestaram no Judiciário. Foram até a Suprema Corte e perderam. Ponto Final? Não nesses tempos. A minoria republicana do Tea Party decidiu que, ou o presidente volta atrás no Obamacare, ou o governo vai dar um calote de proporções globais em meados de novembro, quando acabar o dinheiro do Tesouro.

A lista de exigências não para de crescer: novos cortes de impostos, prospecção de petróleo offshore, suspensão dos limites de emissão de poluição, desmonte da reforma financeira pós crash, e por aí vai. O curioso é que muitos republicanos responsáveis levariam Obama a uma vitória fácil do Legislativo, mas o partido, comandado pelo Tea Party, insiste na obstrução.

Existem duas resultantes desse processo: a primeira é evidente, e consiste em um enorme risco de levar a economia global a uma crise sem precedentes, e se acredita que isso vai acabar sendo evitado; a segunda é mais séria no aspecto político, e vai com certeza acabar por desacreditar um sistema que serve de modelo a todas as democracias do mundo.

O nosso Brasil, com seus 32 partidos, dificilmente vai chegar a uma polarização dessas proporções. Essa seria uma vantagem decorrente da lambança política em que nos encontramos, onde pelo menos 59 dos nossos representantes trocaram de partido nesse fim de semana.

Em tempo: o Lineu e sua família se tornaram grandes amigos nossos. Minha filha mais velha fez questão de visitá-lo em La Joia, para onde ele se mudou ao se aposentar, em sua lua de mel; ele e sua esposa nos visitaram mais de uma vez aqui em Campinas, e inclusive foram a Melbourne visitar minha filha. Alguns dos presentes àquela reunião acabaram por nos visitar no Brasil. Meu amigo Lineu veio a falecer ano passado, para nossa tristeza, pondo fim em um ciclo maravilhoso de nossas vidas.

15785 Linda Avenue

Com medo de se tornar obsoleto, decidi publicar esse "post" antecipadamente. 

Comentários

  1. Gostei muito de ler o seu blog, que traz um misto de nostalgia "light" com reflexão curiosa sobre a atual democracia americana. Como você, também convivi de perto com os americanos. Tendo morado nos Estados Unidos em diferentes épocas e regiões (California, Florida e Nova York), sinto que a cultura americana já não me oferece qualquer novidade ou surpresa, mas confesso que ainda fico intrigada com a homogeneização da opinião pública, frequentemente refletida na distribuição geográfica da população - como você observa no texto. Mas a linguagem universal da música e o encanto da sua família foram capazes de aproximá-los de seus vizinhos de Los Gatos, apesar das possíveis discordâncias ideológicas, estabelecendo vínculos de uma longa e bela amizade. A vida é mesmo feita de amigos.

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    1. Cara Mônica. Sua observação a respeito da lua de mel de minha filha é pertinente: "Minha filha mais velha fez questão de visitá-lo em sua lua de mel em La Joya, para onde ele se mudou ao se aposentar." Fica mais claro. Mais claro ainda seria: "Minha filha mais velha, em lua de mel nos Estados Unidos, fez questão de ir visitá-lo em La Joia, para onde tinha se mudado ao se aposentar"

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