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Uma Justiça do Povo

Um Caso Exemplar

Aproximadamente 2/3 dos estados americanos elegem diretamente os seus juízes. Nos demais estados eles são nomeados pelo poder legislativo ou pelos governadores a partir de listas prévias. Em metade dos estados já se pratica o que eles chamam de "retention election". De 4 em 4 anos, independentemente do método de indicação, o nome do juiz surge na célula de eleição de suas comarcas, e os eleitores têm a oportunidade de confirmar ou recusar o direito dele continuar na função de juiz.

Isso é uma demonstração clara de que os eleitores americanos possuem muito mais poder do que nós. Em adição à reeleição a cada quatro anos eles têm também o poder de retirar o mandato de seu representante a qualquer momento (o chamado "recall"), e de recusar leis convocando referendos nos seus distritos.

Vejamos um exemplo bastante divulgado na mídia: Aaron Persky, juiz do condado de Santa Clara, CA, condenou um ex-nadador da Universidade de Stanford, considerado culpado de agressão sexual, a não mais que seis meses de detenção em uma cadeia local. Mais que isso, ele em seguida converteu a sentença para liberdade condicional, por entender que o condenado possuía ficha limpa e que o fato tinha se dado porque tanto o agressor como a vítima estavam embriagados na ocasião. 

O caso ganhou notoriedade também porque a vítima foi interrogada pela defesa do agressor com enorme severidade sobre seus hábitos de consumo de álcool e experiência sexual, ao que ela respondeu, encarando o réu Brock Turner:

"Você não me conhece, mas você esteve dentro de mim, e é por isso que estamos aqui hoje. Você me privou do meu valor, da minha privacidade, da minha energia, do meu tempo, da minha intimidade, da minha confiança e da minha voz...".

Em seguida ao julgamento e à revoltante sentença, a professora da Universidade de Stanford Michele Dauber iniciou campanha pela deposição do juiz. Com 94 mil assinaturas ela colocou o recall na célula de votação. Para isso seria necessária a assinatura de mais de 10% dos votantes registrados no condado, o que foi conseguido. 

Os eleitores do condado de Santa Clara determinaram a deposição do juiz com 59% dos votos a favor e 41% contra.


Aaron Persky em campanha contra sua deposição


Em entrevista após sua deposição, Persky disse ter aceito a recomendação do Departamento de Liberdade Condicional para isentar Turner de ir para a prisão, e que o problema com a sua deposição é que ela pressionará os juízes a seguir mais a opinião pública que as leis. 

A Comissão de Desempenho Judicial da Califórnia concluiu que o juiz tinha agido de acordo com a lei, mas evitou recorrer da sentença. Persky é branco, graduado em Stanford com diploma de direito em Berkeley, e pelo visto mostrou deferência para com o réu, que é branco e conquistou uma bolsa de estudos atlética em Stanford.

A Proposta de Moro

Sergio Moro incluiu no seu pacote de segurança pública o instrumento da negociação de culpabilidade (plea bargain). Trata-se de um procedimento em que o réu se declara culpado em troca de uma redução da pena. Estima-se que esse dispositivo reduz em até 90% os processos por crimes menores por lá. 

Segundo Fernão Mesquita essas tranposições tendem a não dar bom resultado por aqui, pelo simples fato que as nossas leis foram feitas para complicar, e a plea bargain foi criada para simplificar. Já citamos aqui o fato de que estamos comparando sistemas judiciais totalmente diferentes: 
  • A nossa Constituição tem 250 artigos e acho que 104 dispositivos transitórios e 99 emendas, enquanto lá eles têm 7 artigos e 28 emendas
  • Aqui é praticado o Direito Civil enquanto lá se pratica o Direito Comum, ou seja, aqui se diz textualmente que não há crime sem lei que o defina, enquanto lá o direito se desenvolveu por meio de decisões dos tribunais.
Isso faz toda a diferença. Mesquita cita o exemplo da delação premiada. Graças a esse instrumento pela primeira vez os criminosos de colarinho branco foram alcançados pela Justiça, e era de se esperar que ele passasse a compor o rol das ferramentas ao dispor de todas as instâncias. Mas não. Tão logo ele se notabilizou se iniciou uma disputa pelo privilégio do seu controle.

Agora mesmo fomos surpreendidos pela decisão do STF de que a Justiça Eleitoral terá a responsabilidade de julgar a corrupção caso ela envolva caixa 2, impondo uma derrota enorme à Lava Jato. No fundo o que se decidiu foi que a Lava Jato estava tendo uma proeminência sobre o "sistema" que não podia ser aceita. Sentenças estavam sendo executadas sem a devida trajetória burocrática destinada a manter os colarinhos brancos a salvo. Agora todo corrupto sabe que se ele enfiar um caso de caixa dois na sua estratégia ele estará salvo da Lava Jato. 

Aqui no Brasil a coisa não funciona como lá. O princípio da delação premiada passou a ser o de que quanto mais pesada for a acusação mais valiosa se tornará a isenção, e portanto mais poder o réu terá. Espero não vir a ter batendo na minha porta agentes do Judiciário para me interrogar se eu disser que no episódio dos irmãos Batista procuradores atuaram em favor dos "ésleis", o que resultou na paralisação da Reforma da Previdência do Temer, ou melhor, na paralisação do seu governo como um todo. 

Mas então por que funciona lá mas não funciona aqui? Essa pergunta já foi respondida: porque lá o eleitor tem mais poder. Porque aqui o poder de aplicar os instrumentos que lá dão certo está restrito ao Estado e seus agentes. O que falta aqui não são leis e agentes, mas sim o controle direto do eleitorado sobre os três poderes do Estado.

Só quem é roubado, estuprado, condenado injustamente, assaltado, tem os motivos diretos de decidir como devem ser os processos contra seus políticos, funcionários corruptos e bandidos. Não existe representabilidade que reflita esses sentimentos, a cabe ao eleitor decidir se os processos estão sendo levados a contento.

As reformas propostas pelo Estado para desmontar o entulho criado por ele mesmo só darão resultado se nascerem do sentimento de cidadania. Esse sentimento se cria com educação, matéria prima que não podemos nos orgulhar de ter em abundância. Caberia então ao próprio Estado tomar iniciativas, e elas não passam de forma alguma por criação de novas leis, mas sim por fazer com que o eleitor de aproxime dos mandatários do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Esses poderes me lembram aquelas fantasias hors concours do Clovis Bornay, que desfilavam sem se preocupar com avaliações.

Estou falando de eleições distritais, que são as que mais aproximam os representados dos seus representantes, que tornam mais fácil achar o responsável pelas ocorrências que atingem a sociedade. 

Que transferem para o eleitor o poder de demitir quem não o representa a contento. 

Comentários

  1. Em tempo: O Juiz Marcelo Bretas acaba de afirmar na decisão que decretou a prisão preventiva de Michel Temer, num recado direto ao STF, que nesse caso não existem elementos que indiquem crimes eleitorais e que a competência para o julgamento é da Justiça Federal. Segundo ele os crimes não podem ser classificados como eleitorais só de acordo com a palavra do acusado.
    Eu falei...

    ResponderExcluir
  2. Concordo com esta linha de compreensão da situação atual das leis confusas e protetivas das classes dominantes.Estão surgindo alguns sinais de mudanças no Brasil.Estes 34/35 anos após a intervenção Militar, foram ao meu ver os piores no Brasil, onde os politicos canalhas e incompetentes, destruiram os valores morais e éticos do Quem sabe nossos filhos viverão num Brasil melhor,nós não teremos tempo para isso, que é lamentável......

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