O mundo é desigual, quanto a isso não resta duvida, e a desigualdade não chega a ser uma agressão à natureza. Ela é o resultado da nossa liberdade de escolha, o tal livre arbítrio discutido no Post anterior.
No entanto ela passa a ser agressiva a partir do instante em que seus sintomas, que descreveremos abaixo, ameaçam de ruptura o tecido social.
A desigualdade começou a ser estudada em 1.912 pelo estatístico italiano Corrado Gini, que criou uma medida para ela, a qual foi chamada de Coeficiente ou Índice de Gini. A figura abaixo dá uma ideia de onde Gini queria chegar; nela está traçada a curva População x Renda de duas sociedades, A e B. A reta A representa uma sociedade utópica que chamaríamos de igualitária; nela 10% da população possui 10% da renda total da sociedade, 20% possui 20% da renda, e assim por diante. Resumindo, todos possuem a mesma renda.
fonte: Dicionário Financeiro - Índice de Gini
Já na curva B a distribuição da renda mostra desigualdade. Nela se vê que 10% da população tem menos de 10% da renda total (algo como 3%); e 50% possui algo como apenas 22% da renda total, e acima de 50% observamos uma concentração de renda (dá pra ver que os 10% mais ricos são donos de 30% da renda). No Brasil os últimos dados trazem que 10% da população detém 42% da renda, ou seja, a reta utópica se transforma num arco, que é mais abaulado na medida em que a desigualdade cresce.
Segundo Gini a área contida entre reta utópica A e a curva B define o tamanho da desigualdade. Na Sociedade A essa área é nula (A se confunde com a reta utópica). Já numa sociedade distópica onde toda a renda se concentrasse em uma só pessoa o arco se torna uma reta, uma horizontal mostrando que todos têm renda nula à exceção de uma pessoa e o Índice de Gini é máximo, definido como 1 (a área é o triângulo abaixo da reta A).
O mapa abaixo mostra a situação em que se encontra o nosso país em termos de desigualdade.
fonte: Dicionário Financeiro - Índice de Gini
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a nossa desigualdade de renda é a sétima maior do mundo, perdendo apenas para seis nações africanas (África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro Africana, Lesoto e Moçambique). Nosso Índice de Gini em 2017 foi de 0,533. Voltando à figura mais acima, a área formada pelo arco e a corda referente ao Brasil seria igual a 53,3% do triângulo abaixo na linha A:
Para se ter uma ideia da situação onde estamos em termos de desigualdade vamos ver alguns exemplos (base 2017):
- Eslovênia - 0,254
- Finlândia - 0,271
- Noruega - 0,275
- Índia - 0,357
- China - 0,386
- Estados Unidos - 0,415
- Chile - 0,455
- Paraguai - 0,488
- Brasil - 0,533
- África do Sul - 0,630
Essa breve amostra indica que o Índice de Gini pouco tem a ver com o PIB per capita. Por exemplo o Paraguai (nosso vizinho que derrotamos numa guerra, que na verdade foi a primeira disputa entre americanos e ingleses pelo domínio da América do Sul) tem um PIB per capita de US$ 5.311 (base 2019), 48% do nosso que é de US$ 11.122, mas seu Índice de Gini consegue ser 9% melhor..
O que causa a desigualdade social não é a riqueza de uma sociedade, mas sim a forma como ela é distribuída. Os Estados Unidos por exemplo não têm como se orgulhar da sua distribuição de renda e estão numa situação parecida com a nossa nesse quesito, onde o Índice de Gini está em forte tendência de crescimento.
Para explicar esse fenômeno da desigualdade social surgiu recentemente uma nova medida chamada de Qualidade da Elite, apresentada no Elite Quality Report em anexo:
Seu objetivo é classificar as nações com base na qualidade das sua elites. Tomas Casas e Guido Cozzi, ambos da Universidade de St. Galen - Suiça, produziram esse relatório com base no conceito de que as elites são possuidoras da capacidade de definir a aplicação dos recursos de um país, e podem optar pela criação ou extração dos seus valores. Essa opção acaba por ser mensurável e assim eles criaram o chamado EQx - Elite Quality Index (Índice de Qualidade da Elite), que pode ser resumido como a propensão da Elite de criar valor ao invés de procurar renda com modelos de negócio extrativos.
O relatório acima possui 100 páginas e os interessados em se aprofundar no assunto podem dar uma olhada nele. Aqui vamos apenas tecer algumas considerações, que esperamos venham a dar aos senhores uma ideia melhor do grande problema que sabemos que temos pela frente.
O Relatório parte da premissa que as elites existem em todas as economias políticas, são um fato, e é delas que saem as decisões para coordenar os recursos humanos, financeiros e do conhecimento. Para manter suas posições junto à sociedade as elites conduzem modelos de negócios que acumulam riqueza.
As elites de alta qualidade conduzem modelos de negócios que Criam Valores, enquanto as elites de baixa qualidade operam modelos que Extraem Valores. Singapura foi considerada a sociedade que, entre as 32 nações avaliadas, foi a melhor classificada. Em seguida veio o modelo Germânico com a Suíça (2º) e Alemanha (3º). As nações Anglo Saxônicas Reino Unido (4º), Estados Unidos (5º), Austrália (6º) e Canadá (7º) vieram em seguida. A nova super potência China está no 12º lugar, o que era de se esperar dado o grande esforço feito nas últimas décadas na diminuição da pobreza extrema.
Os outros 4 representantes dos chamados BRICS, Rússia, Índia, Brasil e África do Sul foram classificados nos níveis mais inferiores. A elite brasileira está em 27º lugar entre as 32 avaliadas. Se serve de consolo nossos "hermanos" Argentinos ficaram em penúltimo lugar.
fonte: Elite Quality Index 2020
Com base na afirmação de que as elites são uma "certeza matemática inevitável", ou seja, elas vão existir qualquer que for a matiz ideológica, o que eu consegui aprender com a leitura do relatório foi algo que já esta na minha mente sem que eu tivesse processado com a devida clareza: a mudança, democrática ou não, da estrutura do poder não vai alterar em nada o comportamento das elites, e portanto as coisa vão "mudar para permanecer como estavam".
O EQx (Índice de Qualidade da Elite) proposto no relatório mede a capacidade dos modelos de negócio da elite de um país de criar valor em vez de perseguir renda. As causas de descontentamento mais citadas contra as elites são as seguintes:
- Tecnologia - a automação destrói os empregos e cria uma nova subclasse digitalmente analfabeta.
- Globalização: - produz os perdedores do "mundo plano" (referência ao livro de Thomas Friedman "The World is Flat") que reagem e pressionam pela anti globalização (vide Brexit).
- Demografia - o surgimento das sociedades envelhecidas torna as economias irremediavelmente menos produtivas.
- Geopolítica - a rivalidade entre as grandes potências reconfigura e diminui o espaço para os negócios, com custos imensos.
- Comportamento irracional - como populismo, racismo, decisões de curto prazo ou brutalidade policial danificam os interesses da sociedade.
- Eventos "Cisne Negro" (não soube traduzir) - tais como novos vírus, emergências hídricas ou crises financeiras que erodem as instituições.
Isso não é mais do que aquilo que vemos nos jornais, basta abri-los e ler, e ter a impressão que o tratamento da febre causada na sociedade por esses agentes vai curar a doença global "invisível", a causadora desses sintomas. O diagnóstico que vemos e lemos na mídia é incompleto. A origem de todos esses males são as elites que afetam o desenvolvimento humano e econômico, direta ou indiretamente, influenciando as instituições que ditam as regras do jogo, as quais dão às elites a "licença pra operar".
A forma de operar das elites pode se simplificada por possuir duas orientações:
- Elites criadoras de valor - criam mais valor que capturam,
- Elites extratoras de valor - capturam mais valor que criam.
As facções que compõem a sociedade se mobilizam para adquirir força suficiente para participar do bolo econômico, de modo a que o Valor resultante da atividade produtiva em questão aumente a sua fatia no bolo da economia. Em qualquer decisão a ser tomada, a resultante invariavelmente vai contar com a participação da facção que trabalhou melhor o seu poder de influenciar a decisão.
O relatório ilustra muito bem essa diferença na figura acima. Temos à esquerda uma economia e uma fatia do seu bolo tocada uma uma fração da elite dessa economia. Essa elite, se for de baixa qualidade, vai extrair valor, aumentar a sua fatia sem fazer nenhum esforço em crescer o bolo. Já uma elite de alta qualidade vai envidar esforços em fazer a economia crescer e com isso cresce junto a sua fatia.
O que o relatório persegue é um modelo para definir, em uma nação, qual a dimensão de criação de valor frente à extração de valor. Por exemplo o Brasil, ao tirar a nota 44,1/100, mostra que sua elite se comporta de modo que 44,1% dela cria valor, enquanto 55,9% dela extrai valor:
Não vamos nos demorar nos critérios adotados pelos autores do relatório, mas apenas mencionar que, como deve ser, eles foram elaborados a partir das dimensões econômica e política. Nessas dimensões as elites são analisadas pela sua capacidade de influenciar as suas decisões (Poder), como também de definir as atividades produtivas (Valor).
O diagnóstico elaborado para o Brasil foi o descrito abaixo:
O Brasil realizou progressos desde a reconquista de sua democracia em 1985, especialmente na restauração e na manutenção do controle da inflação. No entanto, atualmente, torna-se necessária a restauração da fé no governo, com o índice avaliado abaixo da média em todas as áreas. Para garantir um firme crescimento de longo prazo e alcançar seus parceiros do BRIC, as elites devem migrar para os modelos de negócios de Criação de Valores, e ao mesmo tempo criar condições que facilitem os negócios e o empreendedorismo na economia.
Conclusões:
O relatório conclui que:
- Sem a capacidade de coordenação das elites uma nação não pode ter a esperança de prosperar, inovar, ou enfrentar uma crise.
- As elites têm a escolha para configurar seus negócios entre a Criação e a Extração de Valores.
- As boas políticas para o desenvolvimento econômico e humano são as que consolidam nas instituições os modelos de negócios de Criação de Valores, e fecham as portas para a Extração de Valores e maximização do lucro, porque isso leva à transferência de valores para longe dos seus verdadeiros produtores, e à estagnação e à ruptura social.
- É muito difícil o acesso à informação de uma operação quanto a ela ser criadora ou extratora de valor. Um motivo para isso é que ambos os modelos são lucrativos e geram riqueza. As elites que perseguem a sustentabilidade e a perspectiva de longo termo são mais envolvidas na geração de valor (isso reforça minha desconfiança nos tais relatórios trimestrais das empresas).
- Os países possuem diferentes níveis de Qualidade da Elite. É comum o argumento de que países nos estágios iniciais de desenvolvimento devem tolerar modelos que perseguem a renda para permitir a acumulação de capital e financiar a capacidade de coordenação das elites. Com o desenvolvimento da economia as elites irão migrar para modelos Criadores de Valor (eu particularmente não acredito nisso). Por outro lado quanto mais rico o país maior a demanda pela Qualidade da Elite.
A minha conclusão
O que eu consegui aprender com essa abordagem de tentar vincular a desigualdade à Qualidade da Elite foi que uma nação como a nossa, onde 44,1% da sua elite cria valor enquanto 55,9% extrai valor e acumula renda, pode até progredir, mas na média esse progresso vai ser sempre inferior ao progresso global.
Se o percentual de Criação de Valor da Elite é menor que 50%, isso significa mais de 50% da Elite está extraindo valor, e o que sobra para os verdadeiros produtores de valor é menos que a Elite acumula. Olhando a figura acima só posso concluir que abaixo do México (50,7/49,3), todos os países:
Arábia Saudita, Rússia, Botswana, Índia, Paquistão, Brasil, Turquia, Nigéria, África do Sul, Argentina e Egito, precisam com urgência se preocupar menos com os sintomas de sua doença descritos acima e iniciar uma revolução econômica e política no sentido de melhorar a qualidade de suas elites.
A omissão em tomar essa providência vai inevitavelmente levar essas sociedades a uma ruptura social que nenhuma ideologia conseguirá remediar.
Em tempo:
O leitor mais atento vai perceber que os países da Europa Oriental no mapa acima têm um Índice de Gini que oscila entre e verde claro e o verde escuro. Isso é bom e é resultado das décadas onde imperou o regime comunista, que eu entendo que deve ter nivelado por baixo a renda de toda a população.
Ao mesmo tempo o relatório de Qualidade das Elites classifica a Rússia numa posição inferior. A meu ver isso significa que o capitalismo implantado nas ruínas do comunismo da Europa Oriental não é de boa qualidade, e deve levar todos esses países a uma insatisfação social, em função de uma provável queda do Índice de Gini.
Estou convicto que este relatorio revela um problema que é real mas que tem sido mantido debaixo do tapete. Nossa elite não é de alta qualidade. Ela se sente ungida por um poder supremo e naturalmente à parte da população brasileira.
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