Dificilmente iremos encontrar uma palavra mais sujeita às mais variadas interpretações como a do título deste Post. O exemplo maior entre tantos outros talvez seja a República Popular Democrática da Coréia, vulgo Coréia do Norte, que recentemente executou 30 funcionários da sua agência do clima por não terem previsto as fortes chuvas que assolaram o país.
Para dirimir esta questão a Economist Intelligence Unit (EIU), da revista inglesa The Economist - a mesma que criou o já famoso Big Mac Index, que avalia a paridade do poder de compra das moedas - criou em 2.006 o Democracy Index, para examinar o estado da democracia em 167 países. O resultado está mostrado no mapa abaixo:
Em fevereiro passado saiu a sua nova versão, o Democracy Index 2023, que sem muita surpresa classificou as 167 nações avaliadas e deu a relação das dez melhores democracias do planeta:
- Noruega - Monarquia Parlamentar
- Nova Zelândia - Monarquia Parlamentar
- Islândia - República Parlamentar
- Suécia - Monarquia Parlamentar
- Finlândia - República Parlamentar
- Dinamarca - Monarquia Parlamentar
- Irlanda - República Parlamentar
- Suíça - República Presidencialista ligada a um parlamento
- Holanda - Monarquia Parlamentar
- Taiwan - República Parlamentar
Esta lista das Big 10 Democracias poderia levar a muitas conclusões. A primeira seria que para ser democrática a região deve ter clima frio, ou que sua área e a população não devem ser grandes. Isso a meu ver não é tão absurdo assim: o frio une mais a sociedade em torno do bem comum, e uma sociedade pequena é mais fácil de ser controlada.
O que a EIU fez foi definir cinco critérios de avaliação:
- Processo eleitoral e pluralismo
- Funcionamento do governo
- Participação política
- Cultura política
- Liberdades civis
Com essas medidas as 167 nações foram classificadas em 4 categorias:
- Democracias plenas (azul escuro no mapa): são nações onde as liberdades civis e as liberdades políticas fundamentais não são apenas respeitadas, mas também reforçadas por uma cultura política conducente ao florescimento dos princípios democráticos.
- Democracias imperfeitas (azul claro): são nações onde as eleições são justas e livres e as liberdades civis básicas são respeitadas, mas podem ter problemas.
- Regimes híbridos (amarelo): são nações com fraudes eleitorais regulares, impedindo-as de serem democracias justas e livres.
- Regimes autoritários (marrom): são nações onde o pluralismo político é inexistente ou severamente limitado.
Em que pese a montanha russa na qual que o Brasil tem viajado nas últimas décadas, a sua posição até que não é ruim: 51º lugar (democracia imperfeita), mesma posição da avaliação anterior, a meu ver mais resultante do grave esgarçamento social pelo qual estamos passando.
Vamos então nos ater a o que teriam em termos práticos estas nações de diferente para estarem neste pódio. Começamos por investigar como é distribuída a riqueza nesses países. Para isso existe o chamado Coeficiente de Gini, que já foi discutido neste espaço.
Recapitulando, a figura abaixo traz a relação entre a renda e a população de uma comunidade, uma cidade, um estado, uma nação, um planeta. Uma relação renda/população ideal seria a reta de total igualdade mostrada. Nela cada cidadão teria a mesma renda. X% da população teria X% da renda, com X variando de 0 a 100%. Esta utopia deve ser perseguida por todas as nações que pretendem tranquilidade política e social.
Na realidade o que temos é a "barriga" mostrada abaixo, a chamada curva de Lorentz. Nela o que vemos é o deslocamento da renda das camadas menos favorecidas para as mais favorecidas. Por exemplo, na figura é fácil ver que 50% da população é dona de bem menos de 50% da renda. A distopia total seria uma única pessoa ser dona de toda a renda de uma comunidade, e a barriga amarela tornaria todo o triângulo abaixo da reta de total igualdade.
O estatístico italiano Gini criou o chamado Coeficiente de Gini, que é a relação entre a área de concentração amarela e a área do triângulo abaixo da reta de total igualdade. Então temos que:
- Coeficiente de Gini igual a 0% significa igualdade total (área de concentração = 0)
- Coeficiente de Gini igual a 100% significa desigualdade total (área de concentração alcançou toda a área do triângulo)
Voltando aos nossos campeões da Democracia o que temos são os Coeficientes de Gini abaixo:
- Noruega - 25%
- Nova Zelândia - 36,2%
- Islândia - 24,2%
- Suécia - 23,0%
- Finlândia - 26,8*
- Dinamarca - 24,8%
- Irlanda - 33,9%
- Suíça - 33,7%
- Holanda - 30,9%
- Taiwan - 32,6%
Vamos ver o que ocorre com este Coeficiente em alguns outros países:
- Argentina - 45,8%
- Brasil - 45.8%
- Cazaquistão - 26,7%
- Estados Unidos - 45,0%
- Etiópia - 30,0%
- Haiti - 59,2%
- Índia - 36,8%
- Japão 37,6%
- México - 51,7%
- Paraguai - 53,2%
- Rússia - 42,0%
- Singapura - 47,3%
- União Europeia - 30,4%
O que se vê aqui é que o Coeficiente de Gini baixo não é requisito para tornar uma sociedade democrática. Cazaquistão, Etiópia, são exemplos de "igualdade" em função de fatores alheios à democracia. Mas toda democracia, para merecer este nome, tem por obrigação perseguir este objetivo.
Um país que o destino me levou a estudar com mais detalhe é a Austrália, isso porque minha filha mais velha e dois netos decidiram migrar para lá em 2001. A Comunidade da Austrália, seu nome oficial, é uma monarquia constitucional com um governo parlamentarista e o rei Carlos III como monarca. O rei reside no Reino Unido e os poderes executivos são exercidos pelos seus representantes na Austrália.
Na prática, como em todo regime parlamentarista, o poder é exercido por um Primeiro Ministro, nomeado pelo Govenador Geral. Esta nomeação se dá pela indicação do partido que alcançou o apoio da maioria na Câmara dos Representantes.
A Austrália tem dois grandes grupos políticos que se revezam no poder: O Partido Trabalhista Australiano, de centro esquerda, e a chamada Coalizão, um grupo de partidos de centro direita. Ambos existem desde 1922. Vejamos como se deu este revezamento no governo australiano nos anos recentes:
- Antony Albanese: 2022 -
- Scott Morrison, Malcolm Turnbull, Tonny Abbott: 2013 - 2022
- Kevin Rudd Julia Gillard, Kevin Rudd: 2007 - 2013
- John Howard: 1996 - 2007
- Paul Keating, Bob Hawke: 1983 - 1996
- Malcolm Fraser: 1975 - 1982 vermelho - Trabalhista / azul - Coalizão
Então o que se vê na Austrália é um revezamento no poder entre um grande partido de Centro Esquerda e uma Coalisão de partidos de Centro Direita (todos os Primeiros Ministros da Coalisão aqui são do Partido Liberal).
A Austrália está na 14ª posição no Democracy Index, e eu acredito que esta colocação tem alguma relação com a dívida social que este país tem com os nativos deste grande território. Sua democracia é recente, mas cedo os australianos aprenderam que a oposição, ao tomar o poder, não precisa desviar o curso da sociedade totalmente para a direita ou para a esquerda. O norte de uma sociedade pode ser alcançado tanto com os valores da esquerda como da direita, a cabe aos políticos evitar ao máximo a perda de energia resultante das guinadas bruscas que acontecem em regimes de democracia frágil
Tomemos o exemplo americano. Embora para quem está vendo de fora pareça que o Partido Democrata não é na verdade uma organização de centro esquerda, lá a polarização é enorme e a palavra Centro nesse momento de eleição para presidente é inexistente; Se Trump for eleito seu maior objetivo é desfazer o que Biden fez, o qual por sua vez desfez o que Trump tinha feito, já que ele desfez, ou tentou desfazer, os feitos de Obama. Assim, o que se vê é uma alternância no poder cujo resultado é um imenso desperdício de energia. O resultado disso, juntado à enorme dívida social, esta resultante do contingente de escravos importados da África, colocam a "maior" democracia do planeta no 29º lugar, atrás por exemplo do pequeno Uruguai (também 14º), da Costa Rica (17º), do Chile (25º).
A campeã Noruega também é uma Monarquia Parlamentar multipartidária onde civilizadamente se chegou a dois grandes blocos políticos:
- O Bloco Vermelho Verde, composto pelo Partido Trabalhista, o Partido da Esquerda Socialista (ambos social democratas), e o Partido do Centro (agrário),
- O Bloco Azul Azul, composto pelo Partido Conservador, o Partido do Progresso (conservador), o Partido Liberal e o Partido Democrata Cristão.
- Jonas Gahr Store: 2021 -
- Erna Solberg; 2013 - 2021
- Jens Stoltemberg: 2005 - 2013
- Kjeli Magne Bondevik: 2001 - 2005
- Jens Stoltemberg: 2000 - 2001
- Kjeli Magne Bondevik: 1997 - 2000
Aqui vemos de novo o mesmo bate-bola australiano entre Centro Esquerda e Centro Direita, com Jens Stoltemberg e Kjeli Magne Bondevik se revezando no poder entre 1997 e 2013. Se formos investigar todas estas nações consideradas como Democracias Plenas veremos a mesma característica de termos fortes coalizões de Centro Esquerda se digladiando com Coalizões de Centro Direita. A vice campeã Nova Zelândia foi mais longe e colocou frente a frente duas mulheres, Jacinda Ardern (Social Democrata) e Judith Collins (Conservadora) no comando destas coalisões.
Não deve ter escapado ao leitor a observação de que as dez maiores democracias adotaram o regime Parlamentar, monarquias ou repúblicas. Isso tem um bom motivo: historicamente o Presidencialismo, onde o chefe de governo é também o chefe de estado, dá uma autoridade muito grande a uma só pessoa, o que a leva muitas vezes a se julgar outorgado do papel de rei absoluto. Esse regime foi estabelecido nos Estados Unidos, e diz-se que George Washington, tendo recusado o papel de Rei que lhe foi oferecido. acabou por permitir um regime que lhe daria um poder quase imperial sobre os Estados que elegem o Presidente, de acordo com critérios estabelecidos na independência, critérios estes não tão adequados à demografia atual.
O Brasil, ao extinguir a Monarquia e criar a República, como grande país que também era, seguiu o caminho presidencialista adotado pelo irmão no norte. Podemos até dizer que a nossa legislação é talvez até melhor que a americana, já que o presidente aqui tem que se eleger pelo voto da maioria de todos os eleitores. Já nos Estados Unidos uns poucos estados são decisivos para eleger o Presidente, os chamados "Estados Pêndulo". O que temos com isso é que às vezes o Presidente é eleito com minoria dos votos totais.
O grande problema do Brasil no campo político é a sua incapacidade de dar uma identidade séria aos partidos políticos que inventa. E eles são inventados em grande quantidade, já que o site do Tribunal Superior tem na data de hoje registrados 29 Partidos, e também 16 partidos em formação: coisas como PSP (Partido da Segurança Privada), PCP (Partido Capitalista Popular), AFRO (Partido Afrobrasilidade), e por aí vai.
Mesmo no nosso regime Presidencialista, o governo para aprovar leis tem que contar com maioria nas casas do Congresso, e com essa quantidade de partidos a solução encontrada é a pior possível: aumentar o numero de ministérios, o que é uma péssima solução em termos de eficiência. O Governo Bolsonaro iniciou o governo com 22 ministérios e saiu do governo com 23, e Lula imediatamente elevou esta número para 37. Então o que temos é a quantidade de partidos interferindo na forma como se governa para se obter maioria no Congresso, e os partidos de esquerda, como são menos coesos, têm que ser atendidos nas sua facções.
Já fiz uma série de Posts sugerindo o número limite de 12 Partidos para que o bate cabeça no comando do governo seja o menor possível. Este é o número de ministérios do governo Alemão por exemplo. A série se iniciou com o Post abaixo e pode ser lida a partir dele:
O Brasil é um país polarizado com um imensidão de partidos, o contrário dos Estados Unidos que é polarizado mas com a rigor apenas dois partidos a nível nacional. Isso obviamente não torna por lá necessário inchar a máquina do governo para obter o apoio do congresso. Por lá o mais comum é um presidente governar com minoria no Congresso, e tudo bem. Aqui sempre existe a oportunidade de se criar a maioria, e o que temos são os "Partidos Pêndulo", que mudam sua ideologia de acordo com a do Presidente.
Minha opinião é que na situação em que se encontra a relação entre o Governo e o Congresso, com a criação do chamado Governo de Coalizão, tende a se agravar. O número de partidos não vai parar se crescer e com isso o número de ministérios não vai diminuir. Acho que a implantação do modelo semi presidencialista já imaginado, onde o presidente partilha o poder com um primeiro ministro e um conselho de ministros, levaria a uma criação de grandes coalizões seguidas da diminuição do número de partidos.
Meu ceticismo nessa solução vem do fato da qualidade dos nossos políticos ser muito baixa. Para tanto seria necessária uma reforma política que tornasse o Congresso mais representativo dos seus eleitores. Uma boa solução para a Câmara seria o voto distrital. Dividir o país em por exemplo 600 distritos com aproximadamente o mesmo número de pessoas, ou eleitores, tornaria a Câmara muito mais representativa.
Outro problema a ser resolvido é o do Senado. O Brasil tem grande quantidade de estados no Nordeste, o que torna impossível qualquer mudança sem a aprovação nesta bancada coesa quando o assunto é a fusão de alguns estados. Talvez a divisão dos estados populosos do sul fosse uma alternativa, mas também difícil de ser implementada.
Como diria o grande Tom, o Brasil não é para principiantes.
Na data de hoje estamos acompanhando as eleições daquele que se auto intitula o farol da democracia. Ao contrário daqui, onde ficamos sabendo do resultado duas horas após o fechamento da última urna, e nem por isso há um reconhecimento dessa qualidade que temos, lá o que vai acontecer vai ser uma demora imensa de se chegar a um acordo sobre o vencedor. Para se dar um exemplo a eleição de quatro anos atrás ainda não foi reconhecida por metade da sociedade.
E fica o mundo à mercê de tamanha polarização.
Ótima análise! É um estímulo à reflexão e ao debate.
ResponderExcluirMais um excelente texto! Uma análise muito interessante, detalhista, com uma riqueza de dados e informações, acompanhada de uma bela redação! Obrigado pela oportunidade dessa leitura!
ResponderExcluirFontenelle, excelente POST. De fato o Brasil é complexo. Em todo o mundo, o governo central prioriza a defesa de interesses de grupos de força com as devidas alternâncias. Em alguns casos estas prioridades são extendida à sociedade provocando o progresso coletivo como você demonstrou. Desfazer o que foi feito pelo governo anterior afasta os benefícios para a sociedade. Abração
ResponderExcluirComo de praxe, nosso Mestre conseguiu espelhar muito bem fatos e dados estatísticos em seus artigos e comentários. Realmente é um entrave para nossa democracia, esse elevado nº de partidos políticos que tende a crescer ainda mais...
ResponderExcluirA realidade dos países nórdicos é intangível à nossa formação politico-partidária; acredito que por lá, o Patriotismo ainda tem um peso importante para os políticos, o que não acontece por aqui...