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O Político pode ser Ético?

Essa á e pergunta recorrente para todos aqueles que procuram julgar o comportamento daqueles em quem votam, com base no seu próprio ideal de Ética. Para os que não se aprofundam muito no que Michael Sandel chama de "decisões categóricas", rigorosamente aderentes a um conceito ético fundamental, os políticos podem agir com vistas a priorizar os fins, deixando os meios em uma situação mais volátil. É o que Sandel chama de "decisões consequenciais". 

Barak Obama em seu best seller atual "Uma Terra Prometida", que eu comprei mas minha esposa ainda não deixou ler, segundo ela se demora bastante em tentar explicar porque o Presidente Obama teve que deixar de lado a forma de pensar do Cidadão Obama para poder governar. Ele teve que entender que Política é a arte de transigir no secundário para atingir o essencial. A Ditadura pode ser perfeita e chegar a um estágio de não ter nenhuma contestação; a Democracia é necessariamente imperfeita, sem o que se torna Ditadura. 

E isso causa problemas com a Ética. Mas minhas dúvidas foram de certa forma mitigadas quando cheguei a um livro que me tinha sido dado por uma grande amiga, que veio a falecer recentemente de Covid. O livro se chama "Anatomia de um Instante" e o instante é o retratado abaixo:


Nela vemos um Congresso invadido por soldados comandados por um coronel, Antonio Tejero. Tiros já foram dados e todos os congressistas estão escondidos atrás dos balcões, à exceção de 3:
  • o vice presidente Gutiérrez Mellado, de pé com as mãos na cintura conversando com
  • o presidente Adolfo Suárez sentado, e
  • o líder do Partido Comunista Santiago Carrillo, que não aparece na foto por estar no lado oposto ao de Suárez. 
Todo o livro de autoria de Javier Cuevas procura desvendar os motivos que levaram a nascente Democracia Espanhola a ter que passar por essa situação traumática, que quase levou à sua extinção. Os cinco protagonistas do livro, Suárez, Carrillo, Mellado, Tejero e os generais mentores do golpe Milan e Armada, têm visões diferentes sobre o Instante, que são exploradas com maestria pelo autor. 

Em um dos capítulos em que procura explorar a atuação de Suárez, um falangista levado a ser o primeiro presidente da Espanha, nomeado pelo Rei com a missão de transformar a Democracia imposta por Franco (então já falecido), que não era mais que um sistema de partidos submissos ao Franquismo (o Partido Comunista era proibido por lei), em uma Monarquia Parlamentar. O que vou transcrever aqui é o pensamento do autor.

As perguntas lançadas por Cuevas são as que todos nos fazemos: 
  • "É possível chegar ao bem por meio do mal?
  • É mesquinho julgar eticamente um político que só deve ser jugado politicamente?
  • Serão incompatíveis a ética e a política e é contraditória a expressão 'ética política'?"
Essas questões remontam aos tempos de Platão e desde lá se tem discutido se é lícito utilizar meios duvidosos, perigosos, maus, para se atingirem fins bons. Cuevas fez um breve apanhado do pensamento de ilustres estudiosos desse tema que resumimos aqui:
  • Maquiavel: para ele não existe essa dúvida de que não é permitido se chegar ao bem por meio do mal.
  • Michel de Montaigne: "o bem público requer que se traia, que se minta, e até que se assassine", logo a política deve ser deixada nas mãos de "cidadãos mais vigorosos, menos pacatos, que sacrificam a honra e a consciência pela salvação de seu país".
  • Max Weber: para ele ética e política não são exatamente incompatíveis, mas a ética do político é específica. Diante da "ética absoluta", ele define uma "ética da responsabilidade" que em vez de se ocupar da bondade dos atos, se ocupa principalmente da bondade das consequências dos atos. O ofício do político seria então usar até meios violentos para, atendendo à ética da responsabilidade, atingir fins benéficos. 
O político seria assim um homem perdido, condenado a sofrer as consequências desse pacto com o Diabo. O poder se transforma numa chaga que com o tempo deixa uma sensação de vazio que é tão grande quanto o tamanho que ele possui. Todo político legítimo mais cedo ou mais tarde vai concluir que sacrificou a sua honra e a sua consciência pela salvação do seu país. 

Esse é o pensamento de Javier Cuevas, e com base nele podemos avaliar o desempenho dos políticos que agiram de forma a influenciar as nossas vidas ao analisar a crítica que eles fizeram de si mesmos.

Para mim foi uma satisfação imensa ler por exemplo "A Arte da Política", onde se percebe que Fernando Henrique Cardoso se propôs a uma profunda análise de seus 8 anos de governo. Sua figura como governante foi vilipendiada pelos dois extremos do nosso espectro político, um criando uma frase que pegou ("Fora FHC"), saída do nada e sem explicar o porque, outro chegando ao absurdo de defender seu assassinato junto com mais 30 mil brasileiros que não pensavam como ele. Como disse Ricardo Setti, coordenador editorial do livro, "em 116 anos de República nunca um ex Presidente mergulhou na análise de seu governo como FHC fez nessa obra". 

Ontem finalmente minha esposa disponibilizou "Uma Terra Prometida" pra mim, e eu já passei da página 70 (são 750). Obama possui o dom de escrever fácil e cativar o leitor. È sincero e lúcido e mais que isso, humilde. Pensem num chefe de Estado que inicia um livro falando de seu trajeto diário de seus aposentos na Casa Branca para seus escritórios, e parando para conversar com um jardineiro com 40 anos de trabalho nos jardins da Casa Branca, dizer no livro que "precisava cumprir sua missão com o mesmo empenho e o mesmo zelo com que eles faziam seus serviços". 

Para ele "a presidência não passa de uma função administrativa, e nosso governo federal é uma empreitada como qualquer outra, tendo os homens e as mulheres que trabalham na Casa Branca a mesma mistura de alegrias, frustrações, atritos com colegas, erros e pequenos triunfos como os demais cidadãos do país".

De qual outro Chefe de Estado atual você esperaria tal declaração de humildade? De Trump? de Bolsonaro? Isso é o que mais próximo de José Mugica se pode chegar.


Mas voltemos a Adolfo Suárez e Santiago Carrilho. Eles foram o que Javier Cuevas define como políticos puros. Suárez foi secretário geral do Movimento, o partido único fascista, Carrillo foi por três décadas o comandante supremo do clandestino Partido Comunista. Ambos inimigos irreconciliáveis que perceberam que somente eles poderiam reconciliar a Espanha. Guardadas a devidas proporções seria algo como se Trump e Obama quatro anos atrás, ou Biden e Trump agora, ou Bolsonaro e Lula, abrissem mão de suas diferenças para dar a esperança às sua sociedades carentes de uma convivência pacífica. 

Não faz tanto tempo assim, foi em fevereiro de 1981, são apenas 40 anos. O que tornou a política uma entidade onde que se tornou impensável esse tipo de acordo? O que levou a sociedade a esse estado de total desilusão em relação ao comportamento dos seus representantes? Minha opinião é que o político puro perdeu espaço para o politico artificial forjado pelos algoritmos das redes sociais.

O livro "Os Engenheiros do Caos", de Giuliano Da Empoli, trata desse assunto com uma imensa quantidade de detalhes, e eu o recomendo aos interessados em se aprofundar nas enormes modificações ocorridas nos processos eleitorais nos últimos anos. Os partidos se preparavam para uma eleição através de um processo que os físicos chamariam de centrípeto, aglutinador para os leigos. Eles lançavam uma plataforma programática e saíam à procura de adesões com base em pesquisas rudimentares e principalmente do instinto dos candidatos. Toda a estratégia era um enorme desapego à realidade. Ninguém lia o programa proposto e tudo girava em torno de experiências passadas que geralmente não deram certo. 

Atualmente a quantidade de dados disponível é imensa e está à disposição nas redes sociais. Elas mostram as nossas preferências, as nossas opiniões e mesmo os nossos defeitos, e estão à  disposição do candidato principalmente para descontruir o adversário. Segundo Da Empoli na campanha de Trump de 2016 Mark Zuckerberg disponibilizou técnicos que testaram 5,9 milhões de mensagens diferentes, contra 66 mil de Hillary. Essas mensagens tinham duplo destino: os apoiadores de Trump e os da adversária Hillary Clinton

Em particular quanto a esses últimos havia três alvos: 
  • Os apoiadores de Bernie Sanders, rival de Hillary nas primárias. Para esses as mensagens aludiam às ligações de Hillary com a comunidade financeira, os negócios suspeitos da fundação de Bill Clinton, e seu comprometimento com a globalização.
  • As mulheres jovens de 18 a 35 anos. A essas as mensagens lembravam os escândalos sexuais de Bill Clinton, que datavam de mais de duas décadas, e apresentavam Hillary como cúmplice de um marido pervertido.
  • Os negros, ou afro americanos, para quem as mensagens mencionavam a reforma na assistência social, que limitaria as ajudas a essa classe, e um discurso de Hillary onde ela descreve os homens de cor como predadores que precisam ser postos de joelho. 
Havia a parte legal dessas mensagens que era conduzida pela campanha digital de Trump, mas havia também a parte ilegal, baseada na manipulação das fakes gerenciada por terceiros, segundo consta partindo de lugares fora do país, como a Macedônia e a Rússia. As acusações eram as mais absurdas, como por exemplo de ter vendido armas para o Exército Islâmico e comandar uma rede de pedófilos. 

O que ficou provado com isso foi que o Facebook possui uma arma poderosa, que não foi concebida para fins políticos, mas comerciais. Suas plataformas disponibilizam instrumentos avançados para se chegar aos clientes, mas uma vez criadas elas podem igualmente ser usadas para fins políticos. As campanhas eleitorais se transformaram numa guerra de softwares onde os oponentes se digladiam usando armas convencionais mas também as não convencionais na forma de fake news. 

O jogo mudou. o candidato deixou de precisar fazê-lo publicamente por meio de mensagens moderadas. Me lembro que na campanha contra Barac Obama, John MacCain, ao ser interpelado por um apoiadora com alusões negativas quanto ao caráter de seu adversário a repreendeu e disse que Obama era um adversário íntegro, com quem sempre teve um bom relacionamento. A tendência centrípeta do jogo democrático fazia com que o ganhador seria aquele que conseguisse ocupar o centro da arena política. 

No universo dos físicos o lançamento de um projeto político não funciona mais. O povo deixou de existir e foi fatiado em grupos separados, e a tarefa passou a ser seguir esses grupos e descobrir as mensagens adequadas para cada um. Não se pensa mais em unir os eleitores em um denominador comum, mas sim inflamar as paixões em um grande número de grupos pequenos, com mensagens muitas vezes discrepantes e por isso mesmo invisíveis do público em geral.

Se você gosta de caçar, vai receber mensagem afirmando que Hillary vai combater a caça; se é naturalista a mensagem será contrária, ela vai incentivá-la. Esse raciocínio abrange todas as comunidades, desde os colecionadores de selos ou amantes do kitesurf aos fanáticos religiosos ou membros da Ku Klux Klan. Os extremistas, que eram marginalizados na velha política, passaram a ter um papel de protagonistas na lógica centrífuga dos físicos.

A sorte dos americanos foi o surgimento da Covid, e eles ainda vão achar que foram salvos por ela. Em fevereiro passado a reeleição de Trump era favas contadas. Seu negativismo conseguiu a proeza de reverter essa situação, levando-o a ser derrotado pelo mais improvável oponente que os Democratas conseguiram apresentar. Mas fica a pergunta: será que a massa vai aceitar o retorno à convivência civilizada nos embates políticos, agora que ela está acostumada a vê-los como uma espécie de arena de UFC?

Tenho dúvidas. As redes sociais nos transformaram do ponto de vista político em apreciadores das Mixed Martial Arts, e por consequência perdemos o direito de exigir postura ética dos nossos candidatos.

Comentários

  1. Dá para concluir que o sistema político chinês é melhor do que a democracia, cujo objetivo de atender a maioria sem ferir as minorias é um alvo fácil de se distorcer pelas atuais possibilidades de manipulação das redes sociais.

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  2. Sensacional, Luiz.
    Instigante, como sempre.
    Eu tento expandir meu conceito simplista da ética como o princípio de não fazer aos outros o que não queres que façam contigo, sem nenhum compromisso com resultado.
    Há quem defenda que não é tão simples.

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