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Sobre o Apego (e o Desapego)

Faz tempo que pretendo defender neste espaço uma imagem que nos meus quase oitenta anos tenho cultivado e procurado aperfeiçoar. Trata-se de fazer uma ligação entre a forma como lidamos com as coisas que adquirimos e as relações que cultivamos.

Climene e eu nos casamos um julho de 1970, e entre os presentes que recebemos apareceu uma faca de cortar pão, dada por uma pessoa que não tinha como oferecer algo mais valioso, mas que certamente sabia que o presente que escolheu seria de grande utilidade. A faca permanece conosco até hoje:


É claro que estou falando da faca menor, e tenho que dizer que a prefiro à outra maior, comprada 13 anos depois em uma feira na Califórnia. Oportunidades de comprar o que hoje chamam de gadgets muito mais caros, que fazem a mesma coisa, nos impedindo de fazer aquele movimento agradável de levar e trazer a faca pressionando-a sobre o pão, não faltaram. O Alibaba está cheio de opções, mas eu tenho que confessar que desenvolvi uma relação afetiva com minha velhinha, e que sempre haverá para ela um lugar na régua imantada que fixei na cozinha para segurar as minhas facas. 

Não estamos tratando de acumular coisas inúteis; estou falando de um dispositivo que me serve há exatos 52 anos e 7 meses. Quando iniciei minha vida de casado a coisa era assim:
  • Precisamos trocar a borracha de vedação do liquidificador,
  • Queimou o tubo de vídeo da TV,
  • Vazou o gás da geladeira
Meu Fusca 66 um dia parou e o problema era simples: o diafragma da bomba de gasolina. Eu mesmo comprei o tal diafragma e o troquei com a ajuda do Amaral, funcionário da oficina mecânica do ITA, escola onde estudei e lecionei por 15 anos. O Amaral um belo dia levou esse carro pra casa no fim de semana e descarbonizou o motor, que se negava a parar de funcionar quando desligava a chave. Andei 160 mil quilômetros com ele.

Anos depois, já com um Fusca 70, aconteceu o mesmo problema e fiquei sabendo que não era mais necessário trocar o diafragma; se trocava agora a bomba inteira. Acabou o prazer de se soltarem os 12 parafusos que abriam a bomba. Já recentemente meu Hyundai HB20X estava com um barulho que parecia ser no câmbio (não era), e o consultor que me atendeu disse que se fosse o caso ele trocaria o cambio. Perguntei quanto tempo ficaria sem o carro, e ele disse que as caixas de câmbio agora são seladas, e que o tempo de troca era mínimo.

Em janeiro passado caiu uma descarga perto de casa, que entrou pelo cabo coaxial da Claro-NET, e saiu queimando tudo o que encontrava no caminho: os dois modens da NET, o DVR e as 4 câmeras do casa, um monitor de vídeo, uma impressora. Só não fez estrago maior porque a TV e o Laptop tinham um estabilizador de tensão os protegendo, que também se foi. A seguradora pediu orçamento do monitor e da impressora, equipamentos que têm algo além de uma placa de circuito impresso.

A moça que me recebeu pra tratar do monitor entabulou comigo um papo que despertou meu desejo de desenvolver a minha teoria do Desapego nesse Blog. Me disse ela:

- Seu Luiz, hoje ninguém conserta mais essas coisas. Não há mais peças pra esses equipamentos que mudam todo ano. Vou dizer que não dá pra fazer o orçamento por esse motivo. 

Aí eu entrei com a minha teoria. A moça era um bom papo eu eu resolvi expô-la. Disse que isso era triste porque quando tudo se torna descartável a gente leva essa conclusão para os relacionamentos pessoais. Ela me olhou como se eu tivesse me tornado uma espécie de João de Deus do bem, arregalou os olho e me disse:

- Isso quase aconteceu comigo meses atrás. Compramos uma TV 52 polegadas, e eu queria comprar uma mesa pra sua instalação no nosso apartamento. Meu marido argumentou que a mesa iria ocupar muito espaço e era melhor colocar a TV em um suporte bem acima do solo. Depois de semanas olhando pra cima e com dor no pescoço, ao chegar em casa a TV estava no chão junto com o bloquete de concreto onde tinha sido fixada, toda quebrada. Depois de dias de DR resolvemos comprar outra TV e dessa vez com uma mesa. Quase nos separamos.

Disse a ela que quando eu tinha a sua idade isso não iria acontecer. Não havia suporte que aguentasse uma TV a válvula, e qualquer acidente seria resolvido numa oficina de reparo.

Agora deem uma olhada no Fiat 147 ano 80 na foto acima. É o Fiat mais cobiçado de Brasília, estacionado numa vaga de idosos, que ele bem merece. Meu irmão Claudio tem todos os motivos do mundo para justificar esse investimento, e vocês vão concordar que manter um automóvel de 42 anos é mais difícil que manter uma faca de cortar pão. 

Disse ao meu irmão que seu Fiat iria ser o personagem de um Blog meu, e ele me veio com uma história de cortar o coração. Que ele teve que vender a Brasília que tinha sido presente do nosso Pai, que então surgiu esse carro ganho no consórcio da mulher com quem ele acabou se casando e que veio a ser parte da nossa família.....

É fácil perceber que a chegada do Fiat foi ligada à chegada do primeiro filho, e essa é uma conexão que infelizmente estamos perdendo. O Fiat até hoje tem o seu lugar de protagonista na vida do casal, que não deixa de enfatizá-lo saindo com ele nas belas manhãs dos fins de semana da ensolarada Brasília, e recebendo os elogios pelo estado de conservação do carrinho.

Assim como toda vez que vou usar a minha velha faca de cortar pão passa pela minha cabeça toda a história da minha vida com minha esposa, eu entendo muito bem o que está por traz dessa fixação em manter vivo esse Fiat 147.

Isso se chama Apego. Pena que o Desapego se encontra em vantagem, a ponto dessa palavra se tornar a chamada de um site de venda de usados.





Comentários

  1. Recentemente achei tempo para arrumar três galpões no fundo do meu terreno.

    Encontrei três trens elétricos, dois microscópios, duas pinças de soldar, daquelas com uma lente no meio, 74 modelos de aviões em escala, 40 daqueles carros em escala, e estou me divertindo com minhas riquezas, isso sem contar com a remontagem do meu LTD 1980 que foi pintado e requer remontagem.

    Tirei o radiador para consertar um pequeno vazamento e descobri que vou ter que trocar a colmeia.

    Descobri 50 razões para estender minha vida, além de ver meus netos crescerem, é claro.

    Tenho jogado muita coisa fora.
    Faz parte de uma vida feliz.

    As garras de solda me livram da reclamação da imprevisão de Deus, ou quem nos projetou com apenas dois braços, sem considerar que além das duas partes a soldar, precisamos de uma mão para o soldador e outra para a solda.

    Sempre fui muito antecipativo de necessidades futuras.

    Reconheço que não há necessidade de duas coisas de cada.

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  2. Também tenho uma régua imantada onde estão duas facas de pão que estão comigo há 53 anos!! E mais uma lista de itens que tem a mesma idade.

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  3. Mestre, achei de um oportunismo positivo, esse tema. Todos temos nossos pertences de estimação. Somem de vez em quando em casa, mas quando os reencontramos volta a alegria de criança. Minha primeira caneta tinteira dos anos 50, uma Compactor, minha régua de cálculo dos anos 60, além das moedas e notas de coleção. E os porta retratos?
    Reconheço que é difícil desapegar. E o valor estimativo? não tem preço.

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    Respostas
    1. Caro Marcos
      Tive um professor que chamava régua de cálculo de computador de axilas.

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  4. Procede. Realizei alguns cálculos por osmose. É verdade.

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