- Geração de renda sobre juros, dividendos e ganhos de capital.
- Apropriação das reservas naturais e sua venda.
- Propriedade intelectual gerando renda sobre patentes, royalties, etc.
- Plataformas digitais, marketing.
- Contratos de serviços terceirizados.
- Privatização de empresas estatais e licenças governamentais.
- Privatização de terras públicas.
Segundo Dowbor não há nada de novo nessa estratégia. Shakespeare já tratou dos agiotas no Mercador de Veneza, os pequenos agricultores sempre sofreram com os atravessadores comerciais, os grandes barões do petróleo no início do século XX enriqueceram rapidamente. O fato novo aqui foi a Revolução Digital, que além de gerar grandes avanço na produtividade, criou novos processos em que os atuais controladores do planeta não mais são donos de empresas, mas sim de softwares que dão direitos sobre as empresas.
Ser dono de sinais magnéticos em vez de empresas concretas faz uma enorme diferença, porque a ênfase no produtivo passa a ser ênfase no financeiro. A economia real cedeu lugar a uma economia que dá aos donos de papéis direitos sobre os produtores reais.
Estamos agora mesmo acompanhando na mídia o caso da distribuição dos dividendos da Petrobrás. Vamos aos fatos. A Petrobrás foi ranqueada pela gestora inglesa Janus Henderson como a segunda maior pagadora de dividendos em 2022. O volume estimado foi de US$ 21,7 bilhões. Na verdade ela ficou em segundo lugar meramente por questões contábeis, já que o Brasil não tributa dividendos, e o valor líquido recebido pelos acionistas da Petrobrás foi na verdade maior que o da campeã, a anglo australiana BHP Billiton.
Só que os números da gestora inglesa estavam errados. O valor correto dos dividendos distribuídos em 2022 foi de R$ 217 bilhões, ou mais de US$ 50 bilhões. Esse dinheiro é distribuído da seguinte forma: 43% vai para fora do Brasil, 20,2% fica com os investidores privados nacionais e 28,9% vai para a União e 7,9% para o BNDES.
Enquanto a maioria das empresas listadas na Bolsa distribui 25% do seu lucro líquido, a Petrobrás chega a repassar aos seus acionistas mais do que o que fica com ela, e ela também já incorporou nos pagamentos parte dos valores da venda de seus bens. Com este artifício ela chegou a repassar mais de 100% do seu lucro sob a forma de dividendos:
O produto de onde a Petrobrás tira seu lucro vem do solo brasileiro, ou da sua costa marítima, pertence a todos os seus cidadãos, e o certo seria reinvestir todo o lucro proveniente dele no financiamento do desenvolvimento da economia. Discuto isso com meus colegas de bar e o contra argumento deles é que nesse caso o governo deve recomprar as ações e retornar a Petrobrás à condição de estatal e devolvê-la à rapinagem anterior.
A ideia de que uma estatal está sujeita a esse tipo de assalto é local, é uma jabuticaba. A estatal de petróleo norueguesa, a Equinor ASA, opera em 36 países e tem investimentos adicionas em energia renovável. Todos os recursos oriundos de suas operações são destinados ao fundo soberano Government Pension Fund, o maior do planeta, que tem mais de US$ 1,5 trilhões de ativos sob sua gestão, cuja taxa de retorno ano passado foi de 16,1%. Cada cidadão norueguês tem igual participação neste fundo.
Aliás, o Brasil está neste assunto sempre na contramão da tendência mundial. Enquanto o presidente Lula toma a iniciativa a cancelar privatizações, vários governadores insistem na direção contrária. São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo, Minas Gerais, e Goiás já venderam ou vão vender suas estatais. Fora do Brasil no entanto tem crescido o número de empresas que tiveram de ser reestatizadas.
Essa tendência aumentou depois da pandemia, quando foi constatado que muitos países ficaram dependentes de outros na prestação dos serviços estratégicos para a sua soberania. Desde o ano 2.000 houve 1.658 casos de desprivatização de serviços no mundo, sendo os mais comuns os das empresas de água e saneamento, e energia, e o mais notório foi a reestatização da Eletricité de France. Mês que vem vou visitar um neto que se casou e foi morar na Inglaterra, e vou viajar com uma empresa aérea que foi desprivatizada, a TAP.
O motivo dessa tendência foi a queda da qualidade dos serviços. As empresas privatizadas tomaram o lugar do Estado em um universo sem concorrência, o que é um campo fértil para decisões que resultam em dispensa em massa da força de trabalho, incluindo a terceirização, e a redução dos investimento de longo prazo. A consequência disso é a queda da qualidade do serviço prestado, o que causa danos enormes à população que dele depende e obriga o governo a agir.
Especialistas entendem que as empresas privatizadas que não investem sabem que prestam um serviço essencial e que o governo vai ser obrigado a tomá-lo de volta, lucrando com o sub investimento. Os órgãos reguladores criados para obrigar a manutenção da qualidade dos serviços em geral são captados pelos interesses privados e deixam de fiscalizar.
Aqui em nosso quintal o caso mais flagrante é o da multinacional italiana ENEL, que em função dos sofrimentos pelo que passam os paulistanos dispensa comentários adicionais. Bom lembrar que esta empresa opera em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Ceará.
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Outra coisa que Dowbor chama a atenção com muita propriedade é que o dinheiro e o conhecimento perderam sua materialidade. Ambos circulam na Internet na velocidade da luz sem a necessidade de serem vinculados a nenhum território. Isso ocorre com mais ênfase nas chamadas Big Techs, onde seus usuários ultrapassam as populações em ordens de grandeza. Os campeões Google, com 92,5 bilhões de acessos mensais, o You Tube com 34,6 bilhões, e o Facebook com 25,5 bilhões, lideram um total de 212 bilhões de acessos mensais. Estima-se que o Facebook tem hoje 3 bilhões de usuários, O Youtube 2,3 bilhões e o WhatsApp 2 bilhões. o que ultrapassa a população dos maiores países do mundo. Essas plataformas, junto com outras gigantes como Amazon, Apple, Microsoft, são em parte controladas pelos três maiores fundos de investimento do planeta.
Esse gigantes, os chamados GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Aplle, MIcrosoft) são em boa parte controlados pelos maiores gigantes financeiros mundiais: Vanguard Group Inc, Black Rock Inc, State Street Corp, FMR, PriceT Rowe Assoc,.Berkshire Hathaway, Geode Capital Manag, Morgan Stanley, Northern Trust Corp, JP Morgan Chase & Co. Quase todos americanos e ligados aos sistemas de informação, eles detêm cerca de 50% das ações dos GAFAMs. Isso adiciona a guerra política ao processo, principalmente contra as Chinesas Huawei e Tictok, e mais que isso, proporciona o controle algorítmico das pessoas, as submetendo à lógica dos gigantes financeiros.
A importância de sabermos até onde isso nos atinge é bem mostrada por Dowbor:
- Planos de saúde privados no Brasil possuem participação acionária desses gigantes financeiros, e assim a faxineira de Dowbor contribui com parte dos seus modestos ganhos para os acionistas do fundo Black Rock.
- Toda vez que você toma um Uber está dando parte de seu patrimônio para rentistas internacionais, dos quais depende o motorista para ter esse aplicativo em seu carro.
- Ao pagar com cartão de crédito você está contribuindo com cerca de 5% do valor pago para intermediários financeiros.
- Está cada vez mais difícil usar o computador sem autorizar a instalação de cookies e entrar no sistema global de informações pessoais.
O que as Big Techs estão fazendo com o comércio planetário é aos poucos eliminar a concorrência dos comerciantes físicos. O fornecedor de produtos para a minha piscina me confessou que está cada vez mais difícil competir com a Internet e está pensando em fechar sua loja. Enquanto ele competia com empresários que ele conhecia e que tinham as mesmas despesas que ele, havia justiça na concorrência. Quando o comércio físico for eliminado, e isso vai incluir os shopping centers, o oligopólio das Big Techs (Amazon, Ali Baba, Mercado Livre, etc.) vai poder praticar preços muito além dos que seriam praticados no que Dowbor chama de capitalismo concorrencial.
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O ataque do rentismo aos recursos naturais, segundo Dowbor, é sensível. A ONG Global Witness, que averigua a conexão entre a exploração dos recursos naturais e os conflitos, a pobreza, a corrupção ,e os abusos dos direitos humanos, afirma que o financiamento dos projetos de agricultura na Amazônia contam com aportes do Deutsche Bank, Santander, Black Rock, American Capital Group, etc, e isso também se aplica a minérios, petróleo, água, recursos naturais, o que leva à apropriação dos recursos naturais, que a rigor pertencem à natureza. Eles não são produzidos, e "existe a pressão das corporações globais que pressionam ou mesmo derrubam governos para conseguir o seu acesso" (Dowbor).
Outro exemplo de rentismo citado por Dowbor é o dos imóveis. Empresas financeiras adquirem o solo nas cidades e no campo, elevam os aluguéis adquirindo bairros inteiros. O novo censo revela que em 12 anos o número de domicílios vazios aumentou 87%. Dos 90 milhões de domicílios existentes no Brasil, 11,4 milhões, não abrigam nenhuma pessoa. Esse número é o dobro do número de famílias que não têm onde morar ou vivem em situação precária. Isso garante o lucro de grandes empresários do setor imobiliário, privando milhões de famílias que sonham em ter o direito a um teto.
O avanço sobre as políticas sociais também ocorre com força. Na saúde ele cresceu de uma forma tal que hoje chega a representar 20 do PIB nos Estados Unidos. Qualquer que seja o plano de saúde que você adote, é enorme a chance de você estar contribuindo com o lucro de rentistas que nele investiram. Sua despesa com a saúde é resultado da incompetência do poder público em oferecer o acesso a ela garantido pela Constituição, e boa parte dessa despesa vai parar nos bolsos dos rentistas. Por exemplo a Rede D'Or tem entre seus principais acionistas o grupo financeiro GIC Private Limited de Singapura. Estou assistindo um programa esportivo onde vi na propaganda que a CarePlus tem escrito abaixo do seu nome: Part of Bupa. Fui investigar e descobri que o Bupa Group, com sede no Reino Unido, é uma empresa internacional de assistência médica com 43 milhões de clientes no planeta.
O resultado disso é que a saúde se tornou um setor gigantesco da especulação econômica e um exemplo de ineficiência. O Canadá está entre os melhores países em padrão de saúde, enquanto os Estados Unidos estão entre os últimos nas nações desenvolvidas, com toda a tecnologia que possuem. Aqui os rentistas se aproveitam da insegurança das pessoas quanto a uma eventual necessidade de estarem na situação de ter grandes despesas.
A educação também é um dos alvos do rentismo, e isso gera um endividamento da nova geração, em que os jovens conseguem o seu diploma totalmente endividados e passam a trabalhar com o objetivo principal de pagar sua dívida para com o rentismo.
Dowbor também cita o caso das patentes. A ideia inicial das patentes era assegurar a remuneração para o inventor ou para o escritor, mas hoje, com a velocidade com que a tecnologia progride, 20 anos de proteção evidentemente são um absurdo, e o que temos é um esforço em dificultar o acesso às novas tecnologias por parte do rentismo.
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Dowbor não é uma voz solitária. Tive acesso esta semana a uma entrevista com o economista e ex ministro das finanças da Grécia Yanis Varoufakis. Nela ele defende que o capitalismo já não governa as nossas economias, e foi substituído pelo que ele chama de tecnofeudalismo, uma mutação do capitalismo, segundo ele "uma mutação mais poderosa que seu antecessor, que matou o seu hospedeiro".
A mutação a que ele se refere é o chamado capital na nuvem, que destruiu os mercados e os lucros. Eles ainda existem como existiam no feudalismo, mas não são mais os protagonistas; eles foram expulsos do centro do nosso sistema econômico e social, e substituídos pelas plataformas de negociação, que parecem mercados mas operam como feudos.
O lucro, o motor do capitalismo, deu lugar ao seu antecessor feudal, a renda, que é o aluguel que tem que ser pago pelo acesso a essas plataformas. O poder não está mais nas mãos das máquinas, nos edifícios, nas redes ferroviárias e telefônicas. O lucro continua a ser extraído dos trabalhadores, do trabalho assalariado, que agora são vassalos de um novo tipo de senhores feudais, os proprietários do capital das nuvens.
O triunfo do capitalismo sobre o feudalismo ocorreu quando o lucro superou a renda, o que resultou na transformação do trabalho produtivo e dos direitos de propriedade em mercadorias a serem vendidas. Foi uma vitória mais social que econômica, apesar da renda ter sobrevivido de forma vegetativa.
A nova mudança se deu a partir da decisão dos capitalistas de dar maior importância a dois tipos de profissionais: os gestores e os marketeiros, no esforço de que se trabalhasse mais rapidamente e se consumisse mais. Quando eu dei a minha modesta contribuição profissional durante décadas, percebi essa mudança a partir do momento que em o programa Power Point da Microsoft passou a ser mais importante que o Excel. A Boeing, uma empresa de engenheiros dedicada a produzir aviões que primavam pela excelência, foi contaminada por este vírus a partir do instante em que adquiriu a McDonnel Douglas, já decadente, principalmente por ter dado mais ênfase ao lucro.
A chegada do capital da nuvem automatizou estas duas funções, e o poder de comandar os trabalhadores e os consumidores foi delegado aos algoritmos, um processo talvez mais revolucionário que a chegada dos robôs, já que o poder de comando passou a ser exercido de fora da fábrica, da loja e do escritório.
Reconhecer que o mundo regrediu para uma situação feudal com a chegada da nuvem é fundamental para entendermos as transformações pelas quais o mundo passa. Toda a polarização que permeia as nossas relações é resultado do envenenamento da nossa realidade social feito pelos dispositivos que a nuvem nos oferece. Precisamos entender que a Internet foi concebida para facilitar as nossas vidas e fomos nós, os humanos, quem a transformamos nesse elemento desagregador que proporcionou o retorno ao feudalismo
Obrigado Luis por tua análise esclarecedora do artigo do Dowbor. Entendi que, dada a nossa crescente impotência em enfrentar esta situação avassaladora e que parece incontrolável, dada aos controles sobre as midias e da opinião pública e da discussão sobre alternativas, temos o enfraquecimento da democracia, absorvida e integrada ao poder rentista.
ResponderExcluirTalvez a Sociedade tenha que se reorganizar em torno de comunidades revivendo as teses anarquistas em um contexto digital. Vejo este tipo de re-organização nos assentamentos do MST, onde, tirando o ranço Ptista, emergem comunidades solidárias e humanas com valores muito positivos, fora da caixa rentista, mas capaz de contribuir para a sociedade brasileira como possível fator de transformação.
Ótimo artigo! Alguns sociólogos têm falado em "financeirizacao do cotidiano".
ResponderExcluirMuito bom artigo, pai.
ResponderExcluirFontenelle, excelente post - como sempre. Mais um pouquinho eles vão chamar este momento que você tão bem relatou como a 5ª Revolução Industrial. As revoluções industriais moldam novas sociedades e estamos já vivendo esta construção nessa sociedade digital. São novos destinos. mas o mundo melhora ainda sim.
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