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O Mito do Livre Comércio

Acabo de ler um livro interessante sobre finanças internacionais: "O Caminho para a Ruína", de James Rickards, lançado pela Empíricus, com uma tradução que eu recomendo que melhore nas próximas edições. A mensagem do autor é bem pessimista quanto ao destino das finanças globais, mas existem itens do livro que me impressionaram, entre eles a forma como o livre comércio foi tratado

Segundo Rickards o livre comércio teve sua base teórica proposta por David Ricardo em em 1817, em seu livro "Teoria das Vantagens Comparativas". Ricardo está para a Economia assim como Newton está para a Física. Suas ideias eram geniais para o ambiente da época, que ainda não tinha em conta os efeitos da globalização nos mercados, mas segundo o Rickards (o autor do livro, não o Ricardo) elas não são mais aplicáveis no século XXI. 

Inicialmente vamos ver o que é uma Vantagem Comparativa, termo criado em contraponto à Vantagem Absoluta. Se duas nações são parceiras comerciais e uma produz um bem de forma mais eficiente, a melhor solução é que esta nação exporte para a nação menos eficiente. O importador na nação menos eficiente recebe produtos melhores e mais baratos e o exportador ganha mercado. Ambos acabam ganhando para este bem em questão. Essa é a chamada Vantagem Absoluta. 

A Austrália por exemplo chegou à conclusão que o bem automóvel é negociado mais eficientemente se importado, dado que o seu mercado não é tão grande, e o esforço empregado na produção local não compensa. Um país com uma população de 25 milhões de habitantes, que teve o seu pico de produção em 1974 com 500 mil carros, chegou em 2016 com uma produção de apenas 87 mil. Ficou evidente aqui que as autoridades australianas não acharam prioritário fazer da Austrália um grande exportador de carros, até porque os grandes fabricantes eram todos estrangeiros: Mitsubishi, Ford, Toyota e Holden (GM). Por sinal a Holden andou exportando Omegas para cá em 1999. Sendo assim a rica Austrália decidiu se juntar a Botsuana, Quênia, Sudão, Chile, Peru, Uruguai, etc., como um país que não produz carros. 

Vejamos agora a Vantagem Comparativa. Basicamente o que ela diz é que é vantagem por exemplo para os Estados Unidos importar bens que eles produzem com eficiência e com um enorme mercado, liberando sua força de trabalho para produzir bens mais valiosos. Então faz sentido importar carros da Coreia e do Japão, liberando o trabalho e o capital para produzir bens que deem Vantagem Comparativa maior que aquela dada pelo carros.

Vê-se aqui que essa teoria de baseia no conceito de eficiência no trato dos fatores de produção: 
  • O trabalho, que pode ser qualificado, não qualificado, intelectual, físico, e
  • O capital, que inclui finanças, patentes, segredos comerciais, conhecimento, recursos naturais. 
A Teoria das Vantagens Comparativas depende dessa rede de fatores, e ela pode ser distorcida pela política industrial do país em questão. O Brasil é um exemplo acabado de que a ideologia sempre influiu de forma altamente negativa na atividade industrial, sendo o principal fator a relação incestuosa entre os caciques da indústria e os governantes. O pais que não entendeu que sua política industrial deve se ater aos fatores de produção, trabalho e capital, facilitando ao máximo a presença global em seu território, caso contrário ficará para trás na corrida pelo mercado internacional. É isso que os nossos políticos não entendem. 

Segundo Rickards (o autor) quando Ricardo elaborou essa teoria o mundo estava com suas finanças ancoradas no padrão ouro. Isso tornava possível a comparação de preços entre um país e outro. O padrão ouro, que vigorou desde o século XIX até a Primeira Guerra Mundial, obrigava o Banco Central de cada país a manter grande parte de seus ativos sob a forma de ouro. Se um país fosse superavitário em sua balança de pagamentos, ele tinha que importar ouro dos países deficitários. Como sua moeda era lastreada no volume de ouro que ele tinha, sua moeda passaria a valer mais em ouro, o que provocava um aumento de preços (seus produtos iriam valer mais em ouro), diminuindo sua competitividade e freando novos superávits. Caso o país fosse deficitário na balança comercial ele iria exportar ouro, seus preços iriam cair e isso aumentaria sua competitividade. 

O fim do padrão ouro permitiu todo tipo de manipulação, a começar pelar taxas flutuantes da moeda em relação à moeda maior, no caso o dólar, e isso resultou na criação do conceito de mobilidade dos fatores de produção. Segundo Ricardo os fatores de produção eram característicos de cada país, estavam enraizados à sua cultura. Hoje eles não estão mais, são móveis. A migração das fabricas para países de mão de obra mais eficiente em função do seu baixo custo é uma prova disso. Os Estados Unidos ainda têm uma vantagem comparativa em função do seu baixo custo do capital, mas se o empresário decidir transferir sua fábrica para o país de mão de obra mais barata a vantagem comparativa muda para esse pais. 

Outra coisa que Ricardo não viu foi a trapaça sob a forma de protecionismo. Os Estados Unidos usaram com eficiência o protecionismo para construir seu enorme parque industrial por quase dois séculos, mas dede 1970 eles estão reclamando do Japão, da Coréia, de Taiwan e da China, que ganharam vantagem comparativa em função do protecionismo e da manipulação cambial. Ou seja, para a Teoria das Vantagens Comparativas funcionar seria necessária a adesão ao livre comércio pelos signatários, mas isso está longe do que se vê na prática. 

Segundo Rickards a política econômica da China é idêntica à do Reino Unido no século XVIII, e à dos Estados Unidos no século XIX. Elas envolvem protecionismo, roubo de propriedade intelectual e acúmulo de ouro. Reino Unido e Estados Unidos iniciaram um longo processo de declínio, que resultaram na quase falência do Reino Unido em 1914, e na crise de 2008 no caso americano. A vantagem comparativa dos Estados Unidos é sabotada pela elite neoliberal mediante a criação de empregos nos lugares onde essa vantagem comparativa seria menor. 

O argumento que, sendo os Estados Unidos líderes no ensino superior a na alta tecnologia, isso compensa a transferência de suas fábricas para outros países, não funciona. Os empregos criados nesse campo são insignificantes se comparados com os empregos perdidos na produção. A isso se soma o crescimento da desigualdade de renda, que os Estados Unidos experimentam desde os anos 90. 

Outro erro importante é achar que, já que o nível de emprego por lá continua elevado, não há nada de errado em exportar fábricas. Os Estados Unidos, num esforço de manter a sua economia funcionando, imprimiram algo em torno de 2,3 trilhões de dólares e baixaram a remuneração de seus títulos do governo a valores irrisórios. Isso fez com que os detentores desses títulos os revendessem ao Tesouro americano, que os pagou com os dólares impressos. Esse dinheiro na mão dos investidores foi reaplicado em atividades que reaqueceram a economia, tais como a compra de ações. O Brasil sofreu muito com essa estratégia, já que boa parte desse dinheiro migrou para países que remuneram bem seus títulos, e isso ocasionou numa grande valorização do Real, dado o volume de dólares que entrou aqui. Caso o Padrão Ouro estivesse vigente essa estratégia não seria permitida. 

Isso posto, já que a vantagem comparativa não funciona e o livre comércio é uma fraude, o que leva a elite americana a insistir nela? Segundo Rickards as corporações globais lucram enormemente com esse sistema, que na verdade produz crescimento mundial às custas dos Estados Unidos, tirando emprego de lá. Ele cita duas empresas que têm visões totalmente diferentes dessa divisão mercantilista: A Apple e a Caterpillar.

A Apple exportou capital para a China e empregou mão de obra barata para produzir iPhones com vantagem absoluta e comparativa. A China por sua vez mantém sua moeda barata, aumentando o poder de compra dos americanos em função dos custos unitários baratos dos produtos com mão de obra chinesa. A China ganha propriedade industrial, empregos e reservas de moeda. A Apple colhe grandes lucros e foge dos impostos americanos. Ela na verdade prospera sem criar empregos nos Estados Unidos. 

Já a Caterpillar tem sua fábricas majoritariamente nos Estados Unidos e vende majoritariamente no exterior. Ela tem que enfrentar o protecionismo, as barreiras não tarifárias e as moedas baratas. Mesmo assim a Caterpillar consegue criar empregos bem remunerados nas suas fábricas americanas, mesmo tendo que enfrentar com desvantagem os japoneses e os coreanos.

Disse o economista Thomas Palley a respeito desse assunto:

"Quando as empresas norte-americanas produziam internamente e procuravam exportar, um dólar mais fraco era do seu interesse comercial, e elas faziam lobby contra a supervalorização do dólar. No entanto, sob o novo modelo, as empresas norte-americanas procuram produzir produtos no exterior e importá-los nos Estados Unidos. Isso reverteu seu interesse comercial, tornado-as proponentes de um dólar forte. Isso ocorre porque o dólar forte reduz os custos em dólar da produção estrangeira, elevando as margens de lucro sobre a produção estrangeira vendida nos Estados Unidos, a preços dos Estados Unidos"

Vemos assim que se o interesse das empresas não for o mesmo dos países a quem elas pertencem, não faz sentido falar em globalização ou vantagens comparativas. As vantagens perseguidas pelas empresas nada têm a ver com as vantagens que seus países almejam. Essas manipulações são praticadas com muito sucesso pelas empresas americanas, japonesas, alemãs, e mais recentemente, com enorme sucesso, pelos próprios chineses. 

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