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Sobre o MERCADO

Em uma reunião recente onde grandes representantes do Mercado estavam presentes, surgiu aquela frase que, quando chegou a mim, me levou a considerar apresentar aos meus poucos seguidores a minha visão do que entendo como Mercado. A frase foi a seguinte:

"O Brasil só tem um problema, é o Problema Fiscal"

Simples assim. O que leva um observador externo a concluir que uma vez resolvido este problema a desigualdade imensa com a qual convivemos irá aos poucos ser amenizada. Para demonstrar quão limitada é a visão do que chamamos de Mercado vamos colher alguma noção do que ele tenta nos ensinar a seu respeito.

Academicamente, o Mercado é definido como o processo de interação humana de troca voluntária de bens e serviços. Assim sendo ele envolve praticamente tudo o que conhecemos, nós somos parte dele e contribuímos de alguma forma para o seu funcionamento..

Por exemplo eu gosto imensamente de ir ao Mercado Municipal de Campinas. Sempre entro nele pela área das peixarias com seu cheiro característico, em seguida vou às lojas de temperos para me livrar do cheiro de peixe, compro a farinha de mandioca artesanal que só existe lá... 

Resumindo, como todos os que vão lá, sou parte dele, o que o torna importante para o mundo em que vivemos. É claro que as grandes empresas de abastecimento criaram um gigante chamado Supermercado, ou Hipermercado, que tirou grande parte do encanto dessa interação, na qual você conhecia todos os seus fornecedores pelo nome e pagava cada bem na medida em que o adquiria. Surgiu recentemente a ideia de você fazer suas compras nos Pães de Açúcar da vida diretamente no aplicativo que está no seu celular. O Mercado nesses caso se tornou virtual.

Mas a reunião a que nos referimos acima estava tratando de outro mercado. Ele envolve as operações de compra e venda de ativos financeiros: valores mobiliários, mercadorias e câmbio. Vejamos o que diz a Wikipedia:

  • "Valores mobiliários são títulos ou contratos de investimento que representam direitos, deveres e a possibilidade de participação, parceria ou remuneração. São emitidos por empresas ou entidades e podem der comprados ou vendidos, por exemplo, em bolsa. Os valores mobiliários são uma forma de financiamento alternativo para as empresas e de aplicação da poupança para os investidores.
  • Mercadorias são bens materiais que podem ser comprados e vendidos, e que estão disponíveis para consumo no mercado: matérias primas (ouro, prata...), fontes de energia (petróleo, gás natural...), produtos agrícolas (trigo, café....), produtos alimentícios, eletro eletrônicos, aço, cobre, alumínio, cosméticos, medicamentos, celulares, etc.
  • A taxa de câmbio é uma relação entre moedas de dois países que resulta no preço de uma medido em relação à outra. Mas, além de expressar a condição de troca entre duas moedas, a taxa de câmbio expressa relações de troca entre dois países".
Todo cidadão de qualquer comunidade do planeta, para sobreviver, tem que dispor de meios  lhe permitam adquirir os bens que lhe garantam a subsistência, o lazer, etc. Para isso foi criada a moeda, que não é mais que uma forma de facilitar as transações, que caso contrário teriam que ser feitas por meio de trocas, os chamados escambos.

Foram desenvolvidas várias formas de acumulação das tais moedas, sendo a principal delas a criação de uma hierarquia social que iria dar a um indivíduo mais acesso a elas que outro indivíduo. Com isso foi possível que uma pessoa tivesse escravos cujo resultado de seu trabalho revertesse a favor daquele que o escravizava. O Brasil foi talvez o maior beneficíário desta forma de acumulação de riqueza com a importação de milhões de pessoas, cujo resultado de sua força de trabalho revertia para poucas famílias.

Como fim da escravidão, com a necessidade enorme de substituição do regime escravocrata, passou-se ao regime de servidão. Para tanto foram importadas hordas de imigrantes, inicialmente da Europa, mas também do Japão. Essa solução prevaleceu nas regiões de clima mais temperado, e como essa nova força de trabalho era mais esclarecida, ela rapidamente se libertou, com a ajuda do poder público, do regime de servidão e passou a administrar ela mesma o seu negócio, no campo e na cidade. Isso entre outras coisas explica a grande diferença de riqueza entre o sul e o norte do Brasil. 

Esta mesma diferença ocorreu nos Estados Unidos, onde o fim da escravidão levou o país uma guerra entre aqueles que insistiam no regime escravocrata no sul e as comunidades mais esclarecidas do norte, que investiram na importação de mão de obra europeia. Tanto que a ilha de Ellis em Nova York mais tarde se tornou a maior porta de entrada dessa horda de europeus.

Simplificando, o que temos hoje então é que a sociedade brasileira é imensamente desigual, a ponto de muito poucas pessoas possam de alguma forma dispor de um excedente de moedas lhes possibilite investir no chamado Mercado Financeiro:

Em maio de 2024 o número de investidores pessoas físicas na Bolsa de Valores do Brasil (B3) era de 19,4 milhões (5,1 milhões em renda variável e 16,3 milhões em renda fixa). isso corresponde a não mais que 14% da nossa população adulta de 141 milhões de pessoas. Além disso a B3 em janeiro de 2024 não tinha mais que 445 empresas listadas. Esse número tende a não crescer, até a diminuir, já que em 2021 tínhamos 463 empresas listadas.

Por outro lado, de acordo com a consultoria americana Gallup, mais de 158 milhões de pessoas, ou 61% da população adulta dos Estados Unidos, investem em cerca de 6.000 empresas listadas em bolsas, com mais de U$$ 50 trilhões de capitalização, o que corresponde a quase 60% do valor de mercado das ações do mundo em janeiro de 2023. Nos Estados Unidos a poupança é majoritariamente feita através da renda variável, a compra de ações, enquanto no Brasil existe uma percepção de que a bolsa de valores é um investimento muito arriscado. Com, isso em 2022, 58% das famílias dos EUA detinham ações na bolsa.

Então podemos concluir que o que chamamos de Mercado Financeiro tem uma visão limitada das necessidades a sociedade brasileira, e nele tudo gira a favor dos interesses dos 14% da nossa população que têm acesso a ele. As necessidades dos restantes 86% são sistematicamente esquecidos na hora deste Mercado defender as sua prioridades junto aos instrumentos que o regulam. Vou dar dois exemplos:

1 - Salário Mínimo
O Salário Mínimo em 2024 fechou o ano no valor de R$ 1.412, e deve iniciar 2.025 valendo R$ 1.517. Uma correção de 4,43% que o governo deve decidir hoje sob pressão, valor menor que o previsto pela regra atual (R$ 1.528). Define-se o Salário Mínimo como "o valor mais baixo que os empregadores podem pagar legalmente aos seus funcionários pelo tempo e o esforço gastos na produção de bens e serviços no âmbito nacional".

É preciso que você receba um salário mínimo por mês para ter a ideia da diferença que fazem 11 Reais na sua definição. Mas vem cá, Salário Mínimo numa sociedade justa não deveria ser definido com base no mínimo necessário a uma família para a sua subsistência? Segundo o DIEESE, para cobrir as suas necessidades básicas de uma família em setembro de 2024, ele deveria ser de R$ 6.657,55.

Enquanto escrevo esses rascunhos vejo a Miriam Leitão no Bom Dia Brasil dizer que a fixação do Salário Mínimo é importante porque ele indexa 1 trilhão de Reais na economia como um todo. O lobby dos empregadores diz que aumento maior do Salário Mínimo gera desemprego. Então vamos, por várias décadas colocar a correção do Salário Mínimo de lado todo fim de ano e com isso aprofundar ainda mais o grande fosso social que existe em nosso país. Na verdade a ideia de indexar a economia a um valor que é fundamental à subsistência da maioria da nossa sociedade foi a artimanha que o Mercado usou para mantê-lo nesse valor vil.

2 - Correção da Tabela do Imposto de Renda (IR)

Como bem disse o DIEESE, o Salário Mínimo deveria ter o valor de R$ 6.657,55. Vamos então supor que uma família vá receber mensalmente esse valor em 2.025. Ela terá descontados pelo IR R$ 934,93, e terá a receber o valor de apenas R$ 5.722.62. O Leão ficará com 14,0% do seu salário bruto.

A correção da tabela do IR foi uma promessa de campanha desta governo, e o que eu vi hoje ao abrir o Google foi a seguinte tabela:

  • Renda de R$ 2.259 a R$ 2.826: possui alíquota de 7,5%.
  • Renda de R$ 2.826 a R$ 3.751: possui alíquota de 15%.
  • Renda de R$ 3.751 a R$ 4.664: possui alíquota de 22,5%.
  • Renda acima de R$ 4.664: possui alíquota de 27,5%.
na qual me baseei para calcular o salário líquido. A prometida isenção de R$ 5.000 foi empurrada para 2.026, ou seja, mais uma vez essa proposta não teve voz no Mercado e foi ignorada por ele e pelo governo vassalo. Aí surge a pergunta: alguém sabe o que vai acontecer em 2.026?

O último reajuste dessa tabela tinha ocorrido em 2.015, dez anos atrás, e infelizmente o Governo perdeu mais essa queda de braço com um Mercado que não dá a menor importância aos 86% dos brasileiros que não participam dele. É o lugar mais conveniente de se evitarem gastos adicionais..

Conclusão

O resultado disso é um Mercado totalmente alheio às reais necessidades dos brasileiros ditando regras que só fazem aumentar cada vez mais a enorme desigualdade existente. Os resultados alcançados recentemente pelo governo são imediatamente taxados de voo de galinha:

1 - A economia brasileira chegou até a metade de 2.024 tendo crescido 2,5% nos últimos 12 meses, o que coloca o país em 6º lugar entre as economias do G20 que mais cresceram este ano,


e é previsto para 2.024 um crescimento de 3,5%.

2 - De acordo com o IBGE a pobreza no Brasil atingiu  menor nível desde 2.012. A proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza caiu de 31,6% para 27,4%. A população pobre caiu de 67,7 milhões para 59 milhões. 

3 - A taxa de desocupação recuou para 6,4% no 3º trimestre de 2.024. O resultado é 0,5% menor que o do 2º trimestre, quando foi de 6.9%. Isso deve ser dito a que acha que a redução da pobreza se deve exclusivamente aos programas sociais do Governo.

Acho que com isso fica clara a minha posição a respeito do Mercado. Ele precisa se tornar mais representativo da sociedade da qual se diz porta voz.

Comentários

  1. Afirmar que o problema é o fiscal não é uma tolice é não é importante por afetar os títulos . Ocorre que desequilíbrios fiscais dificultam a rolagem da dívida. Será preciso pagar oferecer juros maiores aos interessados. ( ou alternativamente emitir dinheiro) . Resultado-mais inflação que fere mais os mais pobres. O quociente dívida/PIB no nível atual por volta de 80% é alto para um país emergente. Claro que na França é de 120 , no Japão mais de 200, mas veja com que juros eles rolam suas dívidas. Jogar dinheiro de helicóptero- expressão do Milton Friedman - tem limite. Não se faz voar um cavalo no qual estamos montados puxando-o pela crina. Quanto ao SM , que deveria ser o calculado pelo DIEESE dentro da filosofia que o criou no tempo do Getúlio , há um problema imenso. Melhor dizendo, dois. As prefeituras pagam a maior parte dos seus empregados com 1SM. Elas já estão quebradas no o nível atual. As empresas -e não falo das grandes que pagam bem mais, mas mesmo considerando que pagam bem mais ( o salário mínimo de engenheiro congelado desde março 2022 é 7.272), falo das empresas menores. Essas não tem condições de pagar 1SM,m DIEESE mesmo por que -veja cálculos do Pastore,-teriam de desembolsar mais que o dobro.
    Isso está fora da realidade Não poderão repassar esse custo, especialmente aquelas de mão de obra intensiva. OK , deveria ser maior , mas quão maior. Aí entra a retórica da ganância dos patrões e não chegamos a um acordo.
    Resumindo-
    Não se trata de saber se o problema do fiscal é o maior ou um dos problemas.
    O SM pode ser muito baixo , não tenho capacidade de afirmar qual seria o mínimo aceitável.
    No estou polemizando, apenas alinhavei umas reflexões, sem dedicar o tempo que seu trabalho exigiu.
    Abraço. A.S.

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    Respostas
    1. Caro Alex
      Obrigado por contribuir de forma aberta para essa discussão. Se ficou alguma dúvida quanto o que penso da importância do Mercado eu quero deixar claro que não foi isso que quis transmitir. O que eu questiono é que, por ele não ser inclusivo por razões históricas, todas as correções que deveriam ter sido feitas paulatinamente durante décadas, no sentido de aliviar o sofrimento dos menos favorecidos foram ignoradas, e como você bem disse, seria impossível corrigi-las de uma canetada.
      Só que chegamos em 2.025 e absolutamente nada foi feito, em um governo que foi eleito com a promessa de mexer nesse vespeiro e foi boicotado por um Mercado que não tem coração.
      Me resta a certeza de que, todas vez que o Mercado tiver que escolher entre medidas que retirem as proteções dadas aos poderosos (fim de subsídios, fim de super salários, etc.), e medidas que privilegiem toda uma enorme parte da sociedade que não participa dele, os mais fracos serão os atingidos

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  2. O problema fiscal não é o único crítico mas talvez seja o mais grave no curto prazo. Isso porque dele pode resultar a inflação da qual sabem se proteger os que " conhecem o Mercado mas que afunda em um maior empobrecimento a nossa população já pobre , agravando ainda mais o que certamente é o nosso maior problema estrutural, a péssima distribuição de renda.

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