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Os Estados Unidos sempre tiveram um Trump a seu dispor

  • Seremos a inveja de todas as nações, e não permitiremos que tirem vantagem de nós por mais tempo.
  • Perseguiremos nosso destino manifesto nas estrelas, lançando astronautas americanos para plantar as estrelas e as listas (stars and stripes da bandeira americana) no planeta Marte.
  • A China está operando o Canal do Panamá (mentira). Nós o estamos tomando de volta.
  • O controle da Groenlândia é uma necessidade absoluta.
  • O Canadá deveria se tornar o 51º estado.
  • Os Estados Unidos mais uma vez se considerarão uma nação em crescimento, que aumenta a sua riqueza, expande o nosso território, constrói nossas cidades, eleva nossas expectativas e carrega nossa bandeira para novos e belos horizontes.
As seis frases acima, duas delas tiradas do seu discurso de posse, resumem de forma clara a posição do presidente eleito dos Estados Unidos a respeito do tratamento que ele pretende impor à sua política externa. O site Persuasion, que eu sigo com frequência, em artigo do jornalista convidado Matt Johnson, tenta mostrar que Trump quer reconstruir a política externa americana nos moldes do século XIX. 

Sua ambição não para na Groenlândia, que ele já tentou comprar no primeiro mandato. Agora ela se estende ao canal do Panamá, ao vizinho Canadá, e chega até o planeta Marte. Johnson tenta não levar a sério essa atitude, que ele considera que seria uma clara "ação militar no Hemisfério Ocidental", mas sua fixação no Panamá e na Groenlândia devem ser o passo inicial dessa política expansionista.

Aqui o que se observa é uma ameaça a um pequeno país da América Central e a um aliado da OTAN, a Dinamarca. Enquanto isso ele coloca em segundo plano a promessa de acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas, ridiculariza o presidente ucraniano Zelensky, chamando-o "o maior vendedor de todos os tempos", culpando-o pela guerra, e seu vice presidente já declarou não se interessar com o que acontece na Ucrânia.

Então o que estamos vendo é uma política imperialista do século XIX quando se trata da esfera de sua influência imediata, e um isolacionismo quando se trata do restante. Ele diz que os aliados europeus devem gastar 5% do PIB em defesa, e isso é mais do que gastam os Estados Unidos e totalmente irrealista, já que a meta hoje é de 2%. É evidente que sem a ajuda americana Putin terá muito menos problema em levar sua invasão à Ucrânia a bom termo..

Com a China acontece o mesmo que com a Rússia. Em relação a Taiwan ele diz que por lá os Estados Unidos "operam como uma companhia de seguros", e que Taiwan deveria gastar 10% do seu PIB em defesa, quatro vezes o que gasta hoje. Ou seja, Taiwan para a China seria algo como a Ucrânia para a Rússia, que não quer uma democracia perto de Moscou. Então seria natural para uma ditadura poderosa exercer controle sobre uma democracia vizinha, e nessa visão seria melhor para a Ucrânia uma proximidade com a Rússia às custas da sua autodeterminação.

Segundo Johnson, durante boa parte da história, era assim que as coisas aconteciam a nível internacional. Os países poderosos dominavam regiões e os fracos pouco podiam fazer a respeito. Esse sistema produziu ciclos de expansão e retração de impérios, e mudar fronteiras era um fato corriqueiro. Somente após a segunda guerra mundial os Estados Unidos promoveram com seus aliados as regras, as normas e as instituições para restringir as agressões. Ao se opor a esta ordem Trump efetua uma mudança grave no entendimento da chamada ordem internacional.

Trump entende que a política externa Americana nada deve ter a ver com os valores liberais e democráticos, e a única variável que importa é o poder. Proteger a Ucrânia é uma tarefa tola por violar uma lei natural onde os grandes países têm o direito de intimidar os menores. Com isso Trump abandona o pilar central da política externa americana, onde uma ordem internacional com regras daria maior estabilidade que o sistema anterior a ela, desregrado. Foi este sistema que garantiu a enorme prosperidade econômica pós guerra e promoveu a democracia em todo o mundo, reduzindo a possibilidade de conflitos.

Ao lançar a ideia de que os Estados Unidos são uma nação em crescimento, com direito a roubar terras e forçar países a aceitar soluções para eles sem a sua participação, Trump retorna a política mundial à idade da pedra. O resultado disso será a diminuição da sua esfera de influência, o que não será mais que a aceleração da mudança da liderança mundial em curso. 

Isso se o planeta continuar existindo, com tantas ogivas à disposição desses malucos.

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Andrew Jackson foi o sétimo presidente dos Estados Unidos, a foto acima data de 1844.


Fonte: Site Persuasion

A reprodução acima é uma tentativa de mostrar que, de vez em sempre, aparece um Trump na política americana. Estamos em 1833 e a figura discursando é o candidato à reeleição Andrew Jackson, cujo retrato Trump levou para o salão oval no primeiro mandato. Um ídolo.

Jackson nasceu em Nashville, Tenessee. Fazendeiro, mercador de escravos, militar e estadista, foi o sétimo presidente americano de 1829 a 1837. Sua presidência foi marcada pela "defesa do homem comum em oposição ao aristocrata corrupto", pela defesa da unidade nacional e por políticas racistas, especialmente contra os povos nativos.

Em seu primeiro mandato Jackson já havia tomado muito poder do Congresso, ignorado o Judiciário e perseguido rivais. Ele estava seguindo à risca o comportamento dos políticos da Europa, que com forte controle das ferramentas do poder destruíam as liberdades dos seus cidadãos. Seus apoiadores rejeitavam estas acusações, com o argumento de que um político democraticamente eleito, popular, estava apenas tirando os privilégios da elite de Washington, seguido as promessas dadas àqueles que o elegeram.

Jackson exerceu o poder de forma a romper as barreiras da democracia, e muitos dos seus apoiadores não se importavam com isso. Ele ignorou as decisões da Suprema Corte quando forçou os nativos a se mudar para o oeste do Mississipi, na chamada Trilha das Lágrimas. Houve resistência dos americanos, como está acontecendo com a campanha de Trump contra os chamados ilegais.

A popularidade de Jackson era baseada no seu domínio da comunicação, que a exemplo de hoje estava mudando. Os jornais nacionais eram uma novidade, e Jackson criou do zero um jornal apenas para contar a sua versão de qualquer história, a exemplo do que está acontecendo com o Twitter (X) e os podcasters, que permitem que os eleitores recebam as notícias diretamente, sem nenhuma mediação.

Seu vice presidente Martin Van Buren idealizou a estratégia de campanha eleitoral  em massa, e lançou um novo cenário político que superou o da política de poder inicial, de acordos em Washington, se valendo da personalidade polarizadora de Jackson. Seu apelido, "Old Hickory (Nogueira Velha)", deu margem à criação dos "clubes Hickory", os precursores dos MAGA atuais, que permitem que pessoas deixem seu isolamento e se juntem a outras e possam proclamar sua lealdade a uma identidade forte.

Além de criar um partido de massa, Jackson e Van Buren demitiram do serviço público todos aqueles que estavam resistindo à sua agenda, o que representou 10% dos servidores da época. Em seguida ele alegou que os empregos públicos não exigiam especialização, e poderiam ser concedidos a qualquer apoiador, o que facilitou a contratação dos que o ajudaram em sua campanha. Essa generosidade se estendeu aos membros do Congresso que votavam com ele, que recebiam recursos que garantiam suas próprias eleições, estratégia esta que passou a fazer parte da política americana daí em diante por m,uito tempo.

Bem, os Estados Unidos sobreviveram a Jackson e ao seu sucessor Van Buren, então seria cômodo pensar que eles irão sobreviver a Trump. Mas um pouco de pessimismo é importante, dado o dano que Jackson causou à democracia americana. Para os Fundadores o Congresso deveria exercer controle sobre o poder presidencial, e Jackson foi o artífice da estratégia que mudou esse equilíbrio para sempre, ao vetar com grande frequência as decisões do Congresso e ignorar a Suprema Corte.

A mancha moral da remoção dos índios dura para sempre. A violência popular cresceu sob a liderança de um líder que promoveu a violência e reprimiu os direitos políticos dos abolicionistas. A estratégia de distribuir cargos aumentou a corrupção nas grandes cidades e em muitos estados e perdura até hoje. Então é necessária uma mobilização de forma a coibir as iniciativas antidemocráticas de um presidente "popular".

Começando pela ameaça do terceiro mandato. Trump já lançou a semente para seus apoiadores, e devemos lembrar que ele não se sente incomodado pelas leis contrárias a esta hipótese, e está em curso uma campanha para cercear movimentos em defesa da constituição, uma campanha que fará inveja ao ditador Maduro. Mesmo que o terceiro mandato consiga ser evitado, o seu sucessor pode vir a ganhar a eleição por causa da sua política populista e do domínio da mídia. 

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Jackson é talvez o presidente americano de mais triste memória. Além de grande escravagista, sua fama com herói militar como coronel da milícia do Tenessee provém de vitórias contra a população nativa e os britânicos:
  • Na guerra Creek foram anexados os atuais Alabama e a Geórgia.
  • Contra os britânicos foi anexada a Luisiana
  • Na Guerra Seminole foi anexada a Flórida, que pertencia à Espanha
Em 1824 Jackson concorreu à presidência e foi derrotado por John Quincy Adams, com o apoio de Henry Clay, o que levou seus adeptos a criar um partido próprio, o Partido Democrata, pelo qual se elegeu em 1828 e se reelegeu em 1932.

Em 1830 ele assinou o Indian Removal Act (Lei de Remoção dos Índios) que deslocou à força os nativos do Sul para terras no Noroeste, o que resultou na morte da maioria deles. Em seu segundo mandato fez forte oposição aos movimentos abolicionistas. Em 1935 reconheceu a República do Texas, que seria mais tarde anexada. 

É este o presidente que Trump escolheu para pendurar seu retrato no salão oval:


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Só que o site Persuasion acaba de me brindar com mais um "Trump". Em seu artigo de 17 de fevereiro intitulado: "Trump é na verdade Warren Harding", de autoria de Sam Khan, a conclusão a que se chega é que "o governo está revertendo o New Deal e retornando para a década de 1920".

Segundo o artigo ia haver uma guerra comercial com o México e o Canadá, mas no dia seguinte não houve. Os Estados Unidos vão colocar a América em primeiro lugar e abandonar o mundo, mas devem conquistar a Groenlândia, a Zona do Canal do Panamá, e transformar Gaza numa Riviera. Então o que Kahn vê se parece menos com Andrew Jackson que com Warren Harding, que governou os Estrados Unidos de 1921 a 1923. O pouco tempo de governo se deveu à sua morte na Califórnia, numa viagem de retorno do Alaska, sendo sucedido pelo seu vice Calvin Coolidge.

Harding, em 1921, introduziu cotas de imigração que se tornaram restrições radicais em 1924, com a proibição de asiáticos. Em 1922 ele aumentou tarifas para proteger os fazendeiros, o que terminou mais tarde em restrições massivas. Os governos que se seguiram a Harding foram todos isolacionistas, rejeitando a Liga das Nações e não vendo nenhuma necessidade evidente de prestar atenção ao resto do mundo. A posição de seu sucessor Coolidge foi a de que "o principal negócio do podo americano são os negócios".

Harding era republicano, como também eram Coolidge (1923 - 1929) e Hoover (1929 - 1933),. Os três venceram as eleições de forma esmagadora, o que dava a impressão de que se estava criando uma maioria republicana permanente. O que importava eram os negócios e a riqueza, e se as pessoas comuns sofriam com a depressão, era assim que devia ser, e no que tange a política externa, o resto do mundo que cuidasse de si mesmo.

Essa política funcionou até deixar de funcionar. As tarifas foram um erro enorme e levaram à Grande Depressão. O isolacionismo significou permitir que Hitler e  Japão se unissem para atacar o resto do mundo para o qual os Estrados Unidos tinham virado as costas, permitindo que mecanismos como o Holocausto fossem criados.

A política de fronteiras e a reversão da imigração se tornaram criminosas, com navios de refugiados da guerra sendo rejeitados, retornando à Europa. O Japão tinha sido totalmente ignorado. A abordagem frouxa dos negócios, sem qualquer controle, inaugurada por Harding resultou na quebra da Wall Strret, e os Estados Unidos viram a guerra mundial chegar sem a capacidade e a vontade de ajudar quem quer que fosse.

Aí chegou o New Deal (Novo Acordo) para eliminar as administrações republicanas, e em 100 dias, de forma totalmente improvisada, nos deu o estado administrativo como conhecemos hoje, com um certo intervencionismo governamental. Essa reviravolta deu tão certo que hoje em dia estamos nos esquecendo dela e, por força do retorno republicano dominado totalmente por Trump, retornando as anos 1920.

O que estamos vendo hoje tem um nome: a administração Trump está rejeitando totalmente o lado esquerdo do prato que os americanos comem. Que Deus os ajude, e a nós também.

Comentários

  1. Obrigado por reunir e expor tanta informação interessante. Os EUA definitivamente não saem bem nesta fotografia. Resta-nos torcer para que lideranças mais humanistas e ambientalistas consigam recolocar essa poderosíssima Nação de volta aos trilhos da paz global.

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  2. Excelente e de grande valor histórico

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