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Os Fantasmas Modernos


Meio sem assunto, ou cansado de pensar no Lula e no Moro, resolvi abordar um que sempre me intrigou: o verdadeiro horror aos números pela quase totalidade das pessoas. Decidi apresentá-lo quando, assistindo ao programa "Estúdio i" da Maria Beltrão de 02 de abril, me deparei com uma joia desferida pelo jornalista Octávio Guedes. 

A certa altura do programa, Guedes começou a apresentar o resultado de uma pesquisa do Datafolha sobre a violência no Rio de Janeiro. Em programas anteriores ele já tinha atacado fortemente a intervenção "política" do Governo Federal no Rio, e começou tendo que se vergar aos números impressionantes de pessoas favoráveis à intervenção (detalhe: não gosto das posições que esse jornalista assume no programa). Para quem tiver a curiosidade de assistir, sua apresentação começa no instante 1:10 (uma hora e dez minutos) do vídeo abaixo:



Para mostrar seu "completo" domínio sobre o assunto que estava apresentando, ele me sai com essa:

"Eu que sou de humanas tive uma dificuldade tremenda de entender porque somando não dá 100%". 

O Artur Xexéo veio em seu socorro e disse que provavelmente os entrevistados podiam dar mais de uma resposta....

Por coincidência estou nesse momento lendo um livro que esteve na minha mira por mais de 40 anos: 

A Livraria da Vila, infelizmente, fechou suas portas e, no último dia da liquidação de seu estoque, me deparei com duas relíquias: o livro acima e uma coletânea no meu ídolo da juventude, o Príncipe Valente. Comprei os dois. Trata-se de um livro de 1974 que conseguiu a proeza de ter vendido mais de 5 milhões de exemplares em 23 idiomas, com uma narrativa ambientada numa viagem de moto realizada por um homem e seu filho, viagem essa que se transforma em um clássico sobre as questões fundamentais do nosso modo de viver. Vou tentar aqui mostrar como o autor, Robert Pirsig, apresenta essa diferença entre as pessoas com visões diferentes da realidade. 

"O mundo tal como você o vê aqui e agora é a realidade, independentemente do que dizem os cientistas a respeito dele". Essa é a conclusão daqueles que possuem uma visão artística imediata. A outra visão, a daqueles que necessitam de uma explicação científica, não consegue conversar com a anterior, muito embora o mundo tal como é revelado pelas descobertas científicas também seja a realidade. Essas duas visões não combinam, não se encaixam e não têm muito que ver uma com a outra. 

Essa revelação cai como uma luva sobre os meus (pre)conceitos por exemplo sobre a arte. Não consigo entender como e possível existir alguém que considere a "arte abstrata" uma expressão artística. Isso certamente se deve ao fato que minha cabeça de engenheiro quer ir um pouco mais fundo na interpretação daquilo que eu estou apreciando. Pra mim não é aceitável que um artista me dê a resposta sobre sua arte imitando uma criança que não sabe falar: "dadá". 

Mas o que tem tudo isso a ver com os números? Tudo. Na verdade, a visão artística da realidade sempre foi maioria no curso da história, e na falta de um Newton ou de um Galileu as interpretações da realidade sempre foram simplistas. Elas sempre recaíram em seres imaginados que nunca ninguém viu mas que livravam as pessoas de ter que se aprofundar sobre o assunto. Mas aí veio o ponto de vista científico e houve a reviravolta na qual a convivência com os outros pontos de vista se tornou difícil. Se alguém hoje falar de fantasmas ou espíritos é imediatamente taxado de ignorante ou até maluco. Não é mais possível se pensar em um mundo no qual existam fantasmas. 

A posição do autor a essa altura é a de que o intelecto do homem moderno não é superior ao do homem primitivo. A única coisa que mudou foi o contexto dentro do qual eles pensam. No contexto do homem primitivo os fantasmas e os espíritos são tão reais quanto os átomos, as partículas, para o homem moderno. 

O homem primitivo, feliz ou infelizmente, permanece vivo em cada um de nós, com ênfase naqueles de visão artística, e para eles os fantasmas modernos são exatamente as coisas que a ciência lhes apresenta que eles não conseguem ver: as leis da física, a lógica, o sistema numérico, a álgebra. 

Para os "artistas", não é natural supor que a gravidade e a lei da gravidade existiam antes de Newton. Já para nós os "cientistas" isso seria uma loucura. O artista então perguntaria quando a gravidade começou a existir. Vejamos o que dizem os motoqueiros a respeito disso:

"Antes da Terra e do Sol serem formados, antes da geração de todas as coisas, havia gravidade? Sem massa nenhuma, sem nenhuma energia, ela não estava na mente de ninguém, já que ninguém existia. Também não estava no espaço, pois ele também não existia. Por isso não se pode garantir já que havia gravidade. Se ela por acaso já existia, não sei o que é preciso para que uma coisa não exista. Logo, para mim é conveniente pensar que a lei da gravidade não existia antes de Newton, Nenhuma outra conclusão para mim tem sentido. Tem mais: ela não existe em lugar nenhum a não ser na cabeça das pessoas. É uma fantasma. Somos arrogantes e presunçosos ao desmitificar os fantasmas dos outros, mas somos tão ignorantes e supersticiosos quanto eles em relação aos nossos próprios fantasmas. A hipnose coletiva, uma forma ortodoxa de educação, faz com que todo mundo acabe acreditando na lei da gravidade.

As palavras de Newton estavam paradas no meio do nada bilhões de anos antes dele nascer, e ele, como por encanto, descobriu essas palavras. Elas sempre existiram, mesmo quando não havia nada a que se aplicassem. Aos poucos o mundo veio a existir e elas passaram a se aplicar a ele. Isso para mim é ridículo. O que aflige os cientistas é a contradição da mente. Ela não tem matéria nem energia, mas eles não conseguem fugir delas em tudo o que fazem. A lógica só existe na mente, os números só existem na mente. Ou seja, a ciência só existe na mente. O mesmo vale para os fantasmas.

As leis da natureza, como os fantasmas, são invenções humanas, As leis da lógica, da matemática, como os fantasmas, também são invenções humanas. Tudo é invenção humana, inclusive a ideia de que elas não são invenções. O mundo não tem nenhuma existência fora da nossa imaginação; todo ele é um fantasma e na Antiguidade era reconhecido como tal. É governado por fantasmas. Nós vemos o que vemos porque esses fantasmas nos mostram, os fantasmas de Moisés, do Cristo, do Buda, de Platão, de Descartes, de Rousseau, e assim por diante. Newton é um fantasma muito bom, um dos melhores. Seu bom senso não é outra coisa senão as vozes de milhares de fantasmas do passado".

Como não faz muito tempo que li o blockbuster "Sapiens" de Yuval Harari, tentei imediatamente traçar um paralelo entre os "fantasmas" de um livro escrito em 1974 e a "realidade imaginada" descrita em 2015. Cheguei à conclusão que os argumentos dos motoqueiros "on the road" é muito mais ousado. Harari não foi tão longe a ponto de ousar concluir que a gravidade é uma realidade imaginada, que os números são um fantasma. Nem por isso posso deixar de aceitar que pessoas com ênfase no "artístico" sigam os argumentos de Pirsig. Como os "artistas" são inegavelmente maioria, caso contrário os fantasmas divinos não estariam até hoje dominando os corações e as mentes, só posso chegar à conclusão que os números são realmente, para eles, fantasmas nos quais eles acreditam mas com eles não têm muita intimidade. 

Mesmo eu que me vejo como um ser livre da influência dos fantasmas divinos não me considero livre meus meus fantasmas pessoais. Felizmente a minha formação me manteve a salvo de qualquer estresse em relação aos números. Quando na ativa costumava me gabar ao dizer que eu era um profissional "Excel Driven" (um aplicativo de planilhas matemáticas), e que lastimava ter que conviver com uma maioria "Power Point Driven" (o aplicativo que se destina a apresentações gráficas). Os "Power Point Guys" eram e sempre serão maioria, sempre estarão mais perto da nascente de um rio de dinheiro que constitui uma empresa e vão beber a melhor água. Cabe aos Excel Guys beber a água da foz, a mais suja, contaminada pelas concepções dos sonhadores que nos obrigam a transformar em produtos suas ideias nem sempre factíveis. 

Mas onde estão os meus fantasmas, já que eles sem dúvida existem? A tecnologia se encarrega de criá-los pra mim. Dependo totalmente se um veículo que me transporta pra onde eu quero ir, sobre o qual eu penso que tenho controle mas confesso que entendo muito pouco de como ele funciona. Meus netos entendem muito mais dos aplicativos de relacionamento social do que eu, e ultimamente tenho tentado entender o que estou fazendo da minha vida me envolvendo tanto com eles (os aplicativos, claro). 

Nossa convivência com os fantasmas modernos nos levou a uma ênfase enorme no consumo. A Indústria se encarregou de tornar descartáveis todas as ferramentas com as quais convivemos e delas passamos a depender, desde o momento em que elas apresentam falha. Mês passado tive que me desfazer de um liquidificador que ganhamos de presente de casamento em julho de 1970, o qual já tinha sofrido vários reparos. O vidro tinha sido trocado por um plástico, o motor já tinha sido trocado, só que um reparo hoje sai mais caro que comprar um novo, mais potente e com mais facilidades que dificilmente eu vou usar. 

Assim é a vida. Nos acostumamos ao descartável a ponto de considerar os relacionamentos no mesmo rol das coisas que descartamos. Uma falha neles nos leva imediatamente à conclusão que deve haver uma alternativa melhor, sem levarmos em conta que temos pela frente um período difícil de termos que ler o "manual" do novo relacionamento e descobrir que o novo "produto" não era melhor que o anterior. Mas a troca já foi feita. 

É difícil a vida, e os fantasmas não contribuem muito para facilitar as coisas....


P.S. - Com a prisão do Lula o meu último Post precisa ser reavaliado. Meu próximo Post vai tratar disso. Como diz o Malan, nesse país até o passado é incerto, e teremos que lidar com isso. 


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