Pular para o conteúdo principal

Sobre a Constituição "Cidadã"

Recentemente comemoramos os 30 anos de um documento que pretende dar ao Brasileiro o status de Cidadão. Foram feitas as mais efusivas comemorações, nas quais os derrotados se valeram delas para advertir Bolsonaro de que a democracia tinha que ser protegida, que o documento alvo das festas era intocável, posto que nela estão claramente definidos os seus direitos adquiridos. 

Segundo Fernão Lara Mesquita, cujo sobrenome já define o seu posicionamento e que eu nunca deixo de ler na página 2 do Estadão, para esses, graças à "Constituição Cidadã" vivemos numa sociedade justa, livre e fraterna, e devemos nos mirar no exemplo dos Irmãos do Norte toda vez que quisermos alterá-la.

Isso é hipocrisia no seu estado mais puro. A Constituição Americana contém 7 artigos e 27 emendas nos seus 232 anos de existência. A cópia traduzida que tenho possui apenas 13 páginas, já incluídas as 27 .emendas:

http://www.uel.br/pessoal/jneto/gradua/historia/recdida/ConstituicaoEUARecDidaPESSOALJNETO.pdf

Já a Constituição Brasileira de 1988 possui 250 artigos, e nesses 30 anos já teve que engolir 107 emendas (espero que esse número não seja maior). A cópia que possuo tem a bagatela de 98 páginas.

O grau de detalhe a que ela chega é uma demonstração clara de que foi elaborada com o intuito de proteger, da forma mais absoluta, o status quo estabelecido pela elite política. É de se notar que estamos falando da versão número 7 da nossa Carta Magna, que sucedeu as de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967. O pior é que aqueles que têm por atribuição interpretar esse saco de retalhos sempre dão um jeito de levar além esses privilégios.

Vamos dar um exemplo: deve estar na memória de todos nós algum político escondendo as algemas com um livro. Vejamos o que diz a nossa Constituição a respeito disso:

Artigo 5º inciso 49: É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Observem que esta artigo trata "DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS" e possui 78 incisos (3 páginas). A Constituição Americana só foi tratar desse assunto na sua Emenda 5, e resumiu os nossos 78 incisos da seguinte forma:

Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público sem a junta indenização.

Ou seja, por mais prolixa que seja a nossa Constituição, ela não chega ao ponto de regulamentar o uso das algemas. O nosso STF então resolveu judicializar esse assunto, sem conhecer a fundo o cotidiano do trabalho policial. Em 13/08/18 ele emitiu a Súmula 11:

“Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Essa é a interpretação do órgão responsável pela interpretação da Constituição. Diante disso o policial acaba tendo que escolher entre:
  • agir com energia e responder por abuso de autoridade
  • correr risco de vida, permitir que o bandido fuja ou envolva terceiros, e acabe respondendo a inquérito policial.
O policial americano não tem esse problema. Qualquer pessoa a ser abordada é logo algemada, e ouve da polícia: "Estou te algemando para tua segurança, para a minha segurança e a de meus companheiros". Ao ser algemado o indivíduo passa a ter a sua integridade sob a responsabilidade do Estado. Promover uma busca sem antes algemar o suspeito é inadmissível, O raciocínio no caso é: "Aquele que tem a função de proteger deve estar protegido".

É claro para mim que, sendo todos iguais perante a lei, não pode haver distinção entre um suspeito encontrado na rua e um congressista abordado em sua residência, ou em seu esconderijo, com o produto de suas falcatruas. 

Sobre essa diferença de abordagem entre os gringos e nós, o que Fernão Mesquita me ensinou foi que existem dois tipos de direito, o "direito negativo" e o "direito positivo":
  • Direito negativo é aquele que proíbe uma pessoa ou entidade (por exemplo o governo, empresas, etc) de agir contra o beneficiário dele (do direito).
  • Direito positivo é o que obriga outra pessoa ou entidade a agir para que o beneficiário possa desfrutá-lo. 
A Constituição Americana é sucinta pelo simples fato de ser baseada exclusivamente no direito negativo. Ela define apenas o que o governo está proibido de fazer. O que ele está obrigado a fazer é uma coisa que não consta dela. Ela descreve os três poderes e define até onde vão os seus limites, define a federação e a relação entre os Estados e a União. Por isso ela contém não mais que 7 artigos. 

Uma vez fechados os 7 artigos, os constituintes passaram a forçar a adição de mais direitos. Aí surgiu a ocasião para político aparecer, e felizmente venceu o argumento que o aumento de emendas, se não fosse restrito, embora nunca se tornasse completo, acabaria por tornar inviável o uso da Constituição como instrumento de governo. Surgiu assim a Emenda 9:

A enumeração de certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando ou coibindo outros direitos inerentes ao povo. 

Essa emenda de 20 palavras é uma das coisas mais geniais que já vi, e foi a responsável pela grande diferença de tamanho entre as duas Cartas que estamos discutindo. Com isso passou para os estados a responsabilidade de definir os direitos positivos 

Os Estados de fato estão mais próximos das pessoas. Idealmente eles estariam mais perto de saber que cada direito positivo dado a uma pessoa resulta num encargo para as outras pessoas. Isso claramente viola o direito negativo dessas pessoas. As verdadeiras democracias só criam direitos positivos por consentimento da sociedade. Se criado sem consulta temos o caminho aberto para o populismo, com a criação dos privilégios. 

Conclui-se daí que os direitos positivos só podem ser criados através do voto, as chamadas "iniciativas" que aparecem nas eleições estaduais. Se por exemplo uma proposta de direito positivo for aprovada pelo voto mas a conjuntura que levou à sua aprovação se alterar, é possível que ela seja revista em eleição posterior. As Constituições Estaduais não têm nenhuma cláusula pétrea, elas possuem mecanismos para aceitar que revisões sejam feitas. 

Nada como um exemplo para tornar as coisas mais claras. Uma disputa judicial sobre financiamento injusto de escolas públicas na cidade de San Antonio, em 1973, foi parar na Suprema Corte. Ela então declarou que, como não há direito à educação na Constituição Americana, a federação não é responsável por abordar essas desigualdades. A Suprema Corte sugeriu que o governo estadual seria o lugar mais adequado para esse caso. 

Ou seja, o direito à educação seria uma obrigação positiva do governo. Ele é obrigado cumprir essa obrigação, certamente às custas da sociedade como um todo. Sendo assim os 50 estados são os agentes centrais da política de educação. Cada estado criou um sistema para fornecer serviços educacionais de forma independente. Vejamos o que diz a Emenda 10:

Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos Estados ou ao povo. 

Ou seja, se a Constituição não dá ao Governo Central um poder, nem nega esse poder aos governos estaduais, esse poder pertence aos estados ou ao povo desses estados. Exemplos existem: educação, pena de morte, uso da maconha, etc. 

Na Constituição de 88 a coisa é diferente. Ela possui 250 (!) artigos, todos escritos por políticos distribuindo direitos positivos para ganhar mais votos, sem consultar a sociedade. Lembrem-se que encher o livro com direitos positivos resulta num custo que cai nas costas da sociedade sem que ela tenha opinado sobre eles. Isso nos levou à situação atual, de onde não vamos sair a menos que façamos voltar à pauta a necessidade de uma oitava Constituição. Mais uma, que para ser aprovada teria que partir da "clausula pétrea" de só conter direitos negativos. 

Hoje vivemos na situação de termos os brasileiros, não membros da casta dos três Poderes, se vendo na obrigação de se especializar em viver numa situação de eterna redução do seu padrão, porque cabe a eles sustentar os direitos positivos criados pela casta privilegiada. Os direitos positivos levam ao crescimento do governo, cujos mandatários estão dispensados de cogitar sequer a perda de seus empregos.

É isso que temos que enfrentar.

Segundo os profetas da nova era, os dataístas, tudo isso se resume em termos que escolher o algoritmo certo para tocar as nossas vidas. Em que pesem as tentativas de Donad Trump, os Estados Unidos possuem a sua sociedade mais focada num algoritmo de "processamento distribuído", enquanto nós continuamos com o velho algoritmo de "processamento central". Isso está em nossa mentes até quando demonstramos maior interesse na política federal que na estadual ou municipal. 

Mas discutir isso agora tornaria esse Post grande demais. Até breve. 




Comentários

  1. Devo lhe agradecer por ter me chamado a atenção do aniversário de nossa Constituição e da diferença entre direito positivo e negativo. Mas parece-me que há outras perspectivas a serem acrescentadas na comparação entre as constituições americana e brasileira. Uma é a aquela estar sustentada no conceito do "common law" em que a lei vai sendo estabelecida (uma sentença é base para futuros julgamentos) enquanto nossa tradição jurídica é a romana em que "vale o que está codificado". Outra perspectiva, talvez mais complexa de ser considerada, é o grau de confianca intrínseco à cada sociedade, como nos explicou Fukuyama no seu clássico "Trust". Quanto menor o grau de "trust" entre os cidadãos de uma sociedade, mais complicadas são as negociações e mais longos os contratos. Considerando a profusão de cartórios ganhando fortunas reconhecendo firmas aqui no Brasil e sua inexistência nos EUA, pode-se ver que o grau de "trust" aqui é bem menor que o de lá. E assim sendo, é razoável concluir que, por menor que seja, a nossa Constituição será mais detalhista e portando mais longa que a americana.
    Roberto Gadelha

    ResponderExcluir
  2. Caro amigo. Concordo em parte com os seus argumentos assim como você concordou em parte com os meus. Meu Distrito em Campinas, que você conhece bem, está passando por uma experiência interessante. Por todo lugar se veem bicicletas amarelas novas abandonadas nas calçadas. A Prefeitura acredita que o seu números não vai diminuir. Sua intenção é fazer com que elas sejam um transporte comunitário grátis para os milhares de estudantes da Unicamp, e por quem mais precisar usá-las. Parece que está dando certo. Voltando à Constituição Cidadã, resta saber se o fato dela ser prolixa não incentiva o comportamento citado por você. Um exemplo claro são as leis trabalhistas, que ao serem simplificadas colocaram os escritórios de advocacia em pânico.

    ResponderExcluir
  3. Fui a estreia do filme On the Basis of Sex sobre a juíza da suprema corte Americana, Ruth Bader Ginsburg. Recomendo como um bom exemplo do esquema common law e sistema constitucional Americano.
    Dar poderes aos estados tem também seus sérios problemas, principalmente num mundo global e transiente. Um exemplo macro e a inabilidade de grandes empresas de ter procedimentos comuns quando eles tem operações em estados, e um exemplo para indivíduos e a dificuldade de famílias mudarem de estado quando estão perante um processo de adoção: eles têm ué recomeçar tudo do zero. Outro problema que tive experiência própria e que no estado onde moro não havia possibilidade de processar a empresa de viagens pela responsabilidade do acidente do meu filho. Se eu morasse no estado vizinho, meu processo seria garantido e nos provavelmente não teríamos que nos preocupar com nosso futuro financeiro.

    ResponderExcluir
  4. Meu caro.
    Uma Federação tem por princípio criar algo parecido com o que os europeus não conseguem fazer com a sua União. Se lá um acidente tivesse que ser legislado em Bruxelas certamente teríamos uma imensa lista de direitos positivos, que inviabilizaria ainda mais a União. Cabe ao estado em que você vive ser pressionado nesse sentido.
    Tem mais. Seria bom que você se identificasse.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Sobre o Agronegócio

A nossa sociedade, a nível global, está passando por um processo desafiador a respeito do nosso comportamento, onde as ferramentas, que foram criadas para melhor nos informar, nos desinformam. Uma das questões que se apresentam é: por que discutimos?  Vamos concordar que se não discutíssemos o mundo seria diferente, mas não tenho muita certeza se ele seria melhor. A discussão é uma forma de vendermos o nosso entendimento das coisas, na esperança de arrebanhar adeptos para ele. Para tanto lançamos a nossa opinião sobre um assunto e aguardamos o efeito que ela faz. Hoje em dia isso está se tornando uma missão quase impossível, porque se tornou lugar comum sermos impedidos de levar o nosso raciocínio em frente, com interrupções constantes, que são a arma utilizada para nos desqualificar de antemão, nesse ambiente tóxico que estamos vivendo. O ideal a meu ver seria voltarmos à velha fórmula de comunicação via rádio, em que nossas falas terminariam com a palavra "câmbio", a qual s