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O Paraiso segundo Monteiro Lobato

Monteiro Lobato e o Tesouro da Juventude foram os meus companheiros de infância em Abaetetuba, no interior no Pará. Me lembro que no Natal de 1951 ganhei os 18 volumes do Tesouro da Juventude e só fui dormir direito após ter lido todo o primeiro volume. O mesmo já tinha acontecido com os 17 volumes de Literatura Infantil de Monteiro Lobato, o grande escritor que infelizmente se vê sob ataque feroz dos canceladores de ocasião, sob a alegação de racismo. 

No entanto ainda não tinha tido contato com o Monteiro Lobato adulto, até que minha esposa recebeu de presente de um sebo o livro de contos Cidades Mortas, segundo dos 17 volumes de Literatura Geral da Editora Brasiliense, 1964. Um conto em especial, "Era no Paraíso", me chamou a atenção pela sua atualidade; trata-se da versão do escritor do livro do Gênesis.

Segundo Monteiro Lobato o Bicho Homem não estava nos planos de Deus, e na verdade foi o produto do acaso, acaso esse que deixou Deus profundamente irritado por colocar sob suspeita a sua presciência, sua capacidade de prever os fatos e de evitar os que porventura ele não desejasse que viessem a acontecer. 

O lema maior dessa invenção Divina, o Paraíso, segundo Monteiro Lobato, era "comei-vos uns aos outros, e nos intervalos amai-vos". Deus tomou o cuidado de inserir na cabeça de cada uma das suas criaturas um código que as fizessem agir exatamente de acordo com seu lema. 

Aí então o acaso aconteceu. Um casal de chimpanzés, após se empanturrar de bananas, dormia em uma galho quando foi surpreendido por um golpe de vento que jogou o macho no chão. O tombo da árvore não foi o primeiro que aconteceu com esse casal, mas aí entrou a serpente, que colocou exatamente abaixo do galho fatídico uma pedra, na qual foi aterrissar de cabeça o pobre macaco.

O efeito dessa queda violenta foi que se apagou o código divino na cabeça do macaco, o qual passou a ser o único animal do Paraíso a não contar com ele. A partir desse instante o macaco iniciou um comportamento totalmente em desacordo com a vontade Divina; foi-se a despreocupação, e se iniciou um fenômeno novo que mais tarde recebeu o nome de ideia. 

O macaco passou a vacilar nos seus saltos, a examinar as outras macacas, comparando-as à sua, a comer frutas que Deus não o havia autorizado a comer, a ter inveja dos outros animais que tinham atributos que Deus não lhe tinha facultado, como voar por exemplo. Surgiu a vontade de alterar o calmo estado das coisas, e aconteceu que a disciplina reinante foi perturbada, o que levou Deus a ordenar ao anjo Gabriel a expulsão do macaco do Paraíso. 

Mas em seguida, por mera curiosidade, Deus suspendeu essa ordem, ansioso por ver até onde iria o desarranjo mental do macaco. Segundo Deus a característica que a queda plantou, que ele passou a chamar de inteligência, teria consequências funestas que ele resolveu investigar. O dialogo de Deus com Gabriel é uma joia que eu vou tentar resumir aqui:


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"- Suspende, Gabriel! Estou curioso de ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu macaco.

- Vossa Eternidade me perdoe, mas se lá deixarmos o trapalhão, aquilo vira "humanidade" .

-Sei disso. A lesão do cérebro do meu macaco põe-no à margem da minha Lei Natural e fa-lo-á discrepar da harmonia estabelecida. Nascerá nele uma doença, que seus descendentes, cheios de orgulho, chamarão inteligência, e que, ai deles, lhes será funestíssima. Esse mal oriundo de queda transmitir-se-á de pais a filhos, e crescerá sempre, e terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a superfície de maneira muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens ter-se-ão na conta de criaturas privilegiadas, entes à parte do universo, e olharão com desprezo para o restante da animalidade. E será assim até que um senhor Darwin surja e prove a verdadeira origem do Homo Sapiens. 

-?! (Gabriel nada entendeu)

- Sim. Eles nomear-se-ão Homo Sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e ter-se-ão como feitos por mim de um barro especial e à minha imagem e semelhança. 

-?! 

- Os demais chimpanzés permanecerão como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a prole do lesado é que se destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja resultante será cair o governo da terra nas unhas de um bicho que não previ. 

-?! 

- Essa inteligência se caracterizará pela ânsia de ver-me através das coisas, e para que bem a compreendas, Gabriel, te direi que será com asas sem ave, luz sem sol, dedos sem pés...

-?! (Vendo o ar aparvalhado de Gabriel, o Criador passou a falar de coisas mais palpáveis)

Essa inteligência apurará aos extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por meio da astúcia se farão eles engenhosos, porque o engenho não passa da astucia aplicada à mecânica. E à força de engenho submeterão todos os outros animais, e edificarão cidades, e esfuracarão montanhas, e rasgarão istmos, destruirão florestas, captarão fluidos ambientes, domesticarão as ondas hertzianas, descobrirão os raios cósmicos, devassarão o fundo dos mares, roerão as entranhas da terra.

-?! (Gabriel estremeceu. Apavorou-o a força futura da inteligência nascente; mas Jeová sorriu, e quando Jeová sorria Gabriel serenava).

- Nada receies. Essa inteligência terá alguns atributos da minha, como o carvão os tem do diamante, mas estará para a minha como o carvão está para o diamante. A fraqueza dela provirá da sua jaça de origem. Inteligência sem memória, inteligência de chimpanzé, o homem esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei aos seus precursores peludos e esquecerá de colher a boa lição da experiência nova.

Seu engenho criará engenhosíssimas armas de alto poder destrutivo, e empolgados pelo ódio se estraçalharão uns aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a que chamarão guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e cornetas, esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.

E transporão mares, o perfurarão montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na vontade louca de vencer as distâncias e chegar depressa, esquecidos de eu não criei a pressa nem o trilho.

E viverão em guerra aberta com os animais, escravizando-os e matando-os pelo puro prazer de matar, esquecidos de que eu não criei o prazer de matar por matar.

E inventarão alfabetos e línguas numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e quanto mais gramáticas possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo imperfeito, que aclamarão o messias do entendimento geral, um dr. Zamenhoff...

- Já sei! Um que proporá a supressão das línguas.

- Não! Apenas o criador de mais uma. E eles elaborarão ciências, e excogitarão toda a mecânica das coisas, adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo, menos o segredo da vida.

E um Pascal, muito cotado entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos, e os homens admirarão grandemente esses murros

E criarão artes numerosas, e terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden, a arte de ser biologicamente feliz. 

E organizarão o parasitismo na própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais. E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má fé, A Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, a Colocação dos Pronomes, esquecidos de que eu não criei nada disso e só o que eu criei É.

E em virtude de tais macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca resolver nenhum dos problemas elementares da vida, em contraste com os outros seres, que os terão a todos resolvidos de maneira felicíssima. 

Não saberá comer; e ao lado das minhas abelhas, de tão sábio regime alimentar, sábio porque por mim prescrito, o homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso em consequência de erros ou vícios dietéticos.

Não saberá morar, e ao lado das minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão asquerosas espeluncas, ou palácios.

Não resolverá o problema da vida em sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas. E revoluções tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de destruir o parasitismo criado pela inteligência, e as novas formas de equilíbrio surgidas afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas destruídas. E o homem olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários, que são felizes porque seguem a minha lei sapientíssima.

E não resolverá o problema do governo, e mais formas de governo invente, mais sofrerá com elas, esquecido de que não criei governo. E criará o Estado, monstro de maxilas leoninas, por meio do qual a minoria astuta parasitará a maioria estupida. E a fim de manter nédio e forte esse monstro, os sábios escreverão livros, os matemáticos organizarão estatísticas, os generais armarão exércitos, os juízes erguerão cadafalsos, os estadistas estabelecerão fronteiras, os pedagogos atiçarão patriotismos, os reis deflagrarão guerras tremendas e os poetas cantarão os heróis da chacina, para que jamais a guerra cesse de ser uma permanente. 

Queres ver ao vivo, Gabriel, o que vai ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do futuro e espia por um momento a humanidade. 

Gabriel viu um rebanho miserável, heterogêneo, que tinha à frente seres ricamente vestidos, com penas de ave na cabeça, cordões, fitas e missangas.

- Quem são?

- Os chefes, os magnatas, os reis, os condutores dos povos. Conduzem-nos ... não sabem para onde.

- Se vai ser assim, cortemos pela raiz tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no paraíso e estará evitando um desastre.

- Não! Tenho um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão desse macaco, e quero agora ver a que extremos se desenvolverá essa criatura aberrante a alheia aos meus planos. 

- Não sois então, Senhor, a Presciência Absoluta?

- Eu Sou, e se Sou, Sou também O que não interpela. 

Aqui termina o papo. Gabriel, descontente com a decisão, desce ao Paraíso e se depara com uma cena inusitada. Viu Adão escondido, esperando a onça sair de sua toca para em seguida nela entrar e a fechar com uma pedra. Eva não entendia o que estava acontecendo, mas obedeceu a Adão quando esse lhe chamou para com ele invadirem a toca da onça. 

Foi aí então que Gabriel inadvertidamente se tornou o primeiro difamador da mulher a dizer pra si mesmo:

- Ele já é inteligente. Ela não passa de imitação. É lógico, só ele foi lesado no cérebro; mas vão ver que Eva, a instintiva, ainda acabará fingindo-se lesada. 

(Encontrei o conto acima resumido na Internet. Aos que se interessarem em lê-lo inteiro segue o link: http://www.poeteiro.com/2018/11/era-no-paraiso-conto-de-monteiro-lobato.html  )

FIM

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Este Post tem múltiplas finalidades. A principal é homenagear o grande Monteiro Lobato, meu companheiro de infância com seus personagens maravilhosos, hoje em dia tão mal entendidos. Natural de Taubaté SP, esse grande homem hoje é nome de um município bem perto de São José dos Campos. 


Outra finalidade é que, com o resultados das eleições, parece termos chegado a uma situação de progressiva tendência a um marasmo, que só o tempo dirá para onde nos levará. Isso me motivou a voltar ao tema original deste Blog: o Ceticismo. 

A terceira finalidade é mostrar uma visão menos otimista da nossa presença neste pobre planeta. Tudo o que o Deus de Monteiro Lobato preconizou foi devidamente executado pelo bicho homem, e o que temos hoje é um planeta pedindo por socorro e devolvendo aos seus agressores tudo aquilo que recebeu, com juros e correção monetária. 

Uma coisa estranha que eu percebo é que os ditos Céticos são os que mais se preocupam com esse estado de coisas. Talvez seja porque a eternidade deles é aquela que eles acreditam permanecer na Terra, por meio de sua descendência a das coisas boas que eles realizaram aqui. Aos crentes resta a fé de um segunda vida no Céu. 

Comentários

  1. Seu ceticismo sequestra minha atenção. Nunca interrompi um texto seu pela metade. Leio-os de cabo a rabo, sem interrupção. A abrangência dos desafios que Vc lança vão ao limite da minha capacidade de processá-los. Obrigado por exigir tanto da minha mente. Há momentos em que eu prefiro a versão mais simples que aponta Adão e Eva apenas comendo o fruto da árvore do conhecimento. Pensar na fronteira de onde nossa inteligência há de nos levar é apavorante.

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    Respostas
    1. Caro Anônimo
      Este foi o maior elogio que recebi nesses 10 anos de Cético. Pena que tenha apenas uma vaga suspeita de onde ele vem. Sua percepção da mensagem de Monteiro Lobato, de atribuir à ideia, ao engenho, à inteligência (que o texto oficial apenas chama de fruto do conhecimento) a raiz de nossas mazelas complementa de forma perfeita aonde M.L .quis chegar.

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