Os próximos três Posts eu decidi dedicar à pessoa do meu Pai. Ele faleceu eu 2011, aos 100 anos e seis meses de idade, e eu desde 2008 tinha decidido escrever alguma coisa sobre a vida desse homem, que mais que meu Pai, foi um brasileiro que viveu com intensidade o século que lhe foi dado.
Entre maio e setembro de 2008, munido de um gravador digital, fiz três entrevistas bem longas com ele, sendo que a última, em Dezembro, ele pediu, em função do teor da conversa que iríamos ter, que ela não fosse gravada. Tive que fazer anotações.
Como se tratou da mais interessante das três, e para manter motivado o leitor que porventura se interessar pela vida desse grande homem, resolvi iniciar a série por ela. Afinal, o George Lucas usou esse expediente na sua famosa série Star Wars, e não vai se incomodar se eu resolver plagiá-lo:
Entre maio e setembro de 2008, munido de um gravador digital, fiz três entrevistas bem longas com ele, sendo que a última, em Dezembro, ele pediu, em função do teor da conversa que iríamos ter, que ela não fosse gravada. Tive que fazer anotações.
Como se tratou da mais interessante das três, e para manter motivado o leitor que porventura se interessar pela vida desse grande homem, resolvi iniciar a série por ela. Afinal, o George Lucas usou esse expediente na sua famosa série Star Wars, e não vai se incomodar se eu resolver plagiá-lo:
Entrevista de Dezembro de 2008
Meu Pai nunca quis falar da sua
aventura em Rio Branco, Acre, no período em que foi convocado para o Exército
da Borracha. Dessa vez, aos 97 anos e 8 meses, concordou em falar mas não quis
que eu gravasse. Começou falando do envolvimento que teve com a filha de um político do Acre. Ela se chamava D... e segundo ele se
apaixonou por ele de forma tal que ele teve que sair correndo de lá.
Isso porque ele tinha deixado
compromissos fortes em Belém e não podia aceitar esse envolvimento. O
compromisso forte era eu; minha mãe estava grávida e teve por isso que sair de
Marabá, onde vivia, e se esconder em Belém na casa da minha futura madrinha
Primênia, amiga da minha avó Anita.
O Posto de Saúde de Rio Branco
recebeu 3 médicos do Exército da Borracha. No período em que meu Pai esteve lá
esses médicos eram ele, o Nizomar, seu colega de faculdade em Belém, e o Júlio
Bacas, que ele também conhecia da faculdade. A função deles era atender os
Soldados da Borracha e também ir aos acampamentos, onde proliferava a malária,
dado que os Soldados da Borracha tinham sido convocados nos estados do
nordeste, em particular no Ceará, e não tinham a imunidade do seringueiro nativo
em relação a essa doença.
O Exército da Borracha é uma
dessas manchas que a nossa história faz questão de ocultar. Resumidamente, o
que aconteceu foi que a exploração da borracha na Amazônia se deu em dois
ciclos, sendo que o primeiro se iniciou em 1870 e durou até 1912, quando a
produção brasileira foi suplantada pela produção inglesa, oriunda
principalmente de seringais plantados na Malásia e no Ceilão com sementes
roubadas daqui. Com uma eficiência muito maior e custos menores, os ingleses
assumiram o controle do mercado mundial da borracha. Houve uma tentativa dos americanos
de recuperar a produção da borracha no Brasil, através do visionário Henry
Ford, que criou em 1927 a cidade de Fordlândia, no Pará, mas uma praga
conhecida como mal de folhas pôs a iniciativa a perder.
O segundo ciclo da borracha
durou apenas 3 anos e se iniciou em 1942, quando as forças japonesas assumiram
o controle militar do sul do Pacífico (A Ponte do Rio Kwai é um filme épico
dessa invasão), e os aliados se viram privados desse importante insumo de
guerra.
Foi então celebrado um acordo
entre os Estados Unidos e o Brasil para aumentar a produção local de 18 mil
para 45 mil toneladas, e para isso seria necessário que se aumentasse o número
se seringueiros na região dos 35 mil remanescentes para cerca de 100 mil.
Só do Nordeste foram convocados
54 mil trabalhadores, sendo que o Ceará contribuiu com 30 mil. Eles receberam
na região a alcunha de “brabos”, pela sua inaptidão para a tarefa e pouca
resistência às doenças da selva.
A pujança voltou às cidades de
Belém e Manaus graças ao dinheiro trazido pela Rubber Development Corporation
(RDC), que pagava ao Governo brasileiro 100 dólares por trabalhador entregue na
Amazônia. Foi criado o Banco de Crédito da Borracha para gerenciar essa
aventura, em que cada trabalhador recebia um pequeno salário durante a viagem à
Amazônia, que podia durar até 3 meses, e após a chegada fariam jus a 60% de
todo o capital obtido com a venda da borracha.
Voltemos ao meu Pai. Ele se
encontrava em Belém e foi convocado a se apresentar para o serviço de guerra.
Chegando lá houve um contratempo com os seus documentos: um deles declarava ser
ele Abílio Maranhão Gonçalves e outro o chamava de Abílio Gonçalves Maranhão.
Ele recebeu de forma bem grosseira um prazo de 24 horas para regularizar a
situação e voltar a se apresentar, para ser enviado para a Itália
imediatamente.
De volta ao hotel ele encontrou
um amigo de longa data, o Gama, colega de faculdade que foi dizendo:
- Rapaz, deixa essa história de
Itália pra lá, entra pro Exército da Borracha, que é melhor do que perder a
vida no campo de batalha.
Mal sabia ele que o Brasil viria
a perder cerca de mil soldados na Itália e em torno de 30 mil trabalhadores no
Exército da Borracha. Mas havia o problema com os documentos e o meu Pai
imediatamente decidiu se esconder na selva. Havia um incentivo adicional: um
soldo de 3 contos de reis para um oficial médico do Exército da Borracha,
contra algo como 1 conto de reis que ele conseguia clinicando. O seu colega de
faculdade Gama imediatamente providenciou o seu recrutamento.
Graças ao seu envolvimento com a
já citada D.. em Rio Branco, a estada do meu Pai no Acre não passou de 5
meses. Ele escreveu para o seu amigo
Albino em Belém:
- Rapaz, me tira daqui que eu
estou a perigo, e seja rápido, por favor.
O Albino era o coordenador geral
da operação médica do Exército da Borracha, e determinou que meu Pai fosse para
Manaus e apresentasse um relatório de suas atividades a um americano chamado
Rosenfeld, que era o representante em Manaus da RDC. O Rosenfeld leu o
relatório à noite e na manhã seguinte chamou o meu Pai e disse:
- Rapaz, você me interessa. Vou
determinar ao Albino que você fique por aqui comigo como meu assessor.
Era a última coisa que o meu Pai
queria, porque ele precisava era se esconder de Rio Branco, e Manaus com certeza
não era o melhor lugar. Havia também o problema com a minha Mãe, que estava
vivendo de favor na casa da minha futura madrinha em Belém. O certo é que dias
depois o meu Pai se apresentou em Belém e foi deslocado para Cametá, Pará, para
substituir o médico de lá, que voltava para a Bahia.
O Rosenfeld foi atrás do meu Pai
em Belém, não se conformando com a sua fuga, e o levou para Manaus. Acontece
que havia outro americano em Belém que também se interessou pelo meu Pai. De
hierarquia maior, Charles Chamberlain Wadel já tinha uma história reconhecida
no combate à malária do Brasil.
Com o crescimento do tráfego
entre Dakar e Natal, foram introduzidos navios ultra-rápidos que faziam o
trajeto em menos de três dias. Com isso eles trouxeram vivos passageiros
indesejados, os mosquitos Anofeles Gambiae, transmissores de um tipo de malária
até então desconhecido aqui. Em 1931 deu-se a primeira epidemia desse tipo de
malária em Natal, e em 1938 declarou-se uma pandemia nos estados de Rio Grande
do Norte e Ceará, que atingiu 40 mil pessoas a causou mais de 20 mil mortes.
Com a chegada dos americanos a Natal, e com o temor de que essa doença se
espalhasse por todo o continente americano, em particular com o temor de que o
tráfego intenso entre Natal e os Estados
Unidos transportasse o A. Gambiae para lá, foi criado o Serviço de Malária do
Nordeste (SMNE) que, com forte ajuda americana, em muito pouco tempo debelou a
pandemia, que já havia se espalhado por 55 localidades dos dois estados. Essa é
uma prova cabal de que o combate a uma epidemia como a Dengue dos nossos tempos
depende tão somente de vontade política para ser debelada.
Pois bem, quem entendia de
malária no Brasil exercia suas atividades na Amazônia, e o SMNE convocou
médicos em Belém para a tarefa. Foram o Nizomar e o Júlio Bacas, e lá
conheceram o Sr. Charles Chamberlain Wadel. Com a Criação do Exército da
Borracha esse grupo, que já tinha terminado a sua missão em Natal, voltou para
Belém.
Eu nasci no dia 5 de setembro de
1043. Meu Pai estava em Manaus e chegou a Belém 10 dias depois, chamado pelo
Sr. Wadel. Ele tinha 3 vagas para um curso de sanitarista no Rio de Janeiro e
queria que o meu Pai fosse um dos escolhidos. Isso porque ele sabia que o meu
Pai conhecia bem o Rio, onde já tinha passado uma temporada fazendo um curso de
obstetrícia. Fora isso ele tinha muito apreço pelo meu Pai. Falava um português
perfeito e era muito querido por todos.
Deram ao meu Pai uma passagem de
avião que tinha uma rota pela costa: São Luiz, Fortaleza, etc. Ele conseguiu
trocar por uma com rota pelo interior: Marabá, Carolina, Barreiras, Belo
Horizonte, Rio. Com uma parada de dois dias em Carolina, onde ele ia comunicar
o meu nascimento e dizer da sua designação para esse curso no Rio.
É interessante como o curto
alcance dos aviões da época fazia com que a nossa aviação fosse muito mais
distribuída em nosso território. Carolina era um aeroporto importante, que
recebia aviões internacionais da Pan Am na rota Rio – Nova York. Eu mesmo
quando menino comecei a aprender inglês com os gringos que desciam dos DC3 para
jantar em Carolina, no aeroporto, em recepção providenciada por meu avô
Diógenes, então gerente da Cruzeiro do Sul, para em seguida seguir para
pernoitar em Belém.
Meu Pai só veio a se casar com
minha Mãe em 1948, ocasião em que ela ficou grávida do meu irmão Cláudio. Meu
avô, um coronel do sertão, que tinha tido todos os seus bens roubados pelos
comandantes da Coluna Prestes e conseguido se reerguer como gerente da Cruzeiro
do Sul, tinha no seu primogênito a continuação da sua estirpe. O sacrifício que
fez ao enviá-lo para Belém para se tornar médico tinha sido enorme, e não havia
nesse processo espaço para uma moça que ele não conhecia, filha de uma dona de
castanhal em Marabá, e que tinha como diversão pescar nos barrancos do
Tocantins.
Eu desembarquei em Marabá com
minha mãe e meu pai seguiu para Carolina. Eu só viria a revê-lo 13 meses
depois, em Belém. Minha estada em
Marabá, em plena época de guerra, foi muito difícil. Eu com dias de idade,
morando com minha Mãe e minha avó Anita em uma pequena casa, já que a sua casa
grande estava alugada para ajudar nas despesas, passamos por grandes
dificuldades. A casa ficava no meio da zona de meretrício, havia muito barulho
à noite, e segundo minha Mãe eu desenvolvi uma aversão muito forte aos homens,
somente curada com o retorno do meu Pai do Rio de Janeiro, um ano mais tarde. A
fonte de renda da minha avó, que era a venda da castanha do Pará, estava
interrompida pela guerra, e o meu Pai tinha que enviar dinheiro do Rio para a
nossa sobrevivência. Para isso ele se valia de um americano sobrinho de um
exportador de diamantes, de cujo nome ele se esqueceu, que periodicamente fazia
o trajeto Rio – Marabá para comprar as pedras.
Meu Pai gosta de encerrar essas
narrativas com alguma declaração bombástica. Dessa vez ele fez referência à
injustiça que fizeram com ele em 1983, quando ele tinha 73 anos de idade e 50
anos de serviço público. Ele tinha votado no Fernando
Collor para presidente, e ficou inconformado com o fato do Collor o ter
incluído em uma compulsória que o fez se afastar de um serviço que ele amava,
que era disseminar a medicina preventiva na região amazônica. Nessa ocasião ele
foi chamado a Brasília para ser conhecido pelos burocratas que achavam incrível
um servidor público ter tanto tempo de serviço. Chegou a ser apresentado ao
Ministro da Saúde.
Fascinantes histórias Luís. Especialmente para quem conheceu o Dr. Abílio. Uma figura inesquecível. Espero que possas estender estas crônicas em, não 3, mas muitas mais.
ResponderExcluirÉ, caro Amaro. A vida da minha família, não sei se por puro acaso, envolve passagens importantes da nossa história, que incluem a Coluna Prestes, a Guerra da Borracha, a exploração da castanha do Pará e do babaçu. Meu Pai recebeu o título de cidadão tocantinence por ter instalado mais de 30 hospitais e postos de saúde naquela região. Acho que cabe a mim divulgar esses episódios para que pessoas que o conheceram tenham uma melhor ideia do que realizou o Dr. Abílio.
ResponderExcluirOi Pai, lindo texto. Espero poder logo ler mais sobre of vovo.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirLuiz:
ResponderExcluirSalvei no computador e no pendrive todas as entrevista com seu Pai.
Uma saga a sua vida, amigo.
Theodiano