Pular para o conteúdo principal

Sobre a Cloroquina

Vamos começar pela Fosfoetalonamina, e espero que se lembrem dela. Se não vamos refrescar a memória. Estamos falando da "pílula do câncer" que foi distribuída gratuitamente por 20 anos pelo Professor Gilberto Orivaldo Chierice, na época chefe do Instituto de Química de São Carlos (USP). 

O Instituto proibiu em 2014 a produção e distribuição da droga, seguindo uma regulamentação da Anvisa. O caso foi parar no STF, que julgou em favor de uma pessoa que solicitou judicialmente o consumo da droga. O TJ-SP teve então que liberar a droga para cerca de 800 pacientes, e a USP passou a receber 50 pedidos com liminares por dia.

Em 2016 o então Deputado Jair Bolsonaro apresentou, junto com vários colegas, projeto a favor da liberação do remédio. O Deputado Médico Luiz Henrique Mandetta fez oposição ao projeto, afirmando que "a ciência não é dever dos que não são da área", e que a droga "não serve nem como placebo". A Fosfoetanolamina foi aprovada no Congresso e sancionada por Dilma Rousseff, mas teve sua distribuição suspensa pelo STF a pedido da Associação Médica Brasileira. 

Aí finalmente entrou a ANVISA informando que "a substância jamais passou por qualquer estudo clínico que comprovasse sua eficácia e segurança". As leis costumam receber apelidos que as tornam mais fáceis de ser identificadas. Temos por exemplo a Lei Maria da Penha, a Lei Carolina Diekmann; essa é a chamada Lei Bolsonaro:



Agora vamos falar da Cloroquina e da sua variante Hidroxicloroquina. Mas primeiro vamos tentar entender o que a sociedade entende como evidência de valor no tratamento com essas drogas. Vejamos o vídeo abaixo:


Resumo do vídeo: Uma senhora na faixa de 65 anos recebeu tratamento com a Cloroquina, orou muito, e foi curada. Conclusão: a Cloroquina é eficaz no tratamento da Covid19.

Não é assim que a ciência trata desse assunto. e vamos aqui tentar da forma mais didática possível convencer você da falha existente nesse raciocínio. É sabido que essa pandemia circula entre nós de forma muito ardilosa, já que uma boa parte das pessoas contagiadas não apresentam os sintomas da doença, e mesmo aquelas que os apresentam em geral sequer precisam de internação, sendo tratadas em domicílio. Entre as que assumem uma forma mais grave da doença há aquelas que passam a correr risco de vida, e no fim das contas existem as que vêm a falecer. 

Aí entra a tal estatística, filha da matemática, tão pouco compreendida. Mas o fato é que, entre os casos efetivamente diagnosticados com a doença, aqueles que resultam em óbito quase nunca chegam a 10% em uma sociedade com os recursos mínimos de tratamento e boa estratégia. Com isso podemos entender que:
  • Entre cada 100 pessoas diagnosticadas com a Covid19, menos de 10 deverão falecer
  • Entre cada 1.000 pessoas diagnosticadas com a Covid19, menos de 100 deverão  falecer
e assim por diante. É claro que esse número de óbitos, esse percentual, depende da infraestrutura de saúde disponível, das condições de higiene e habitação, enfim, de vários fatores. Vamos dar exemplos. No dia 22 de maio temos o seguinte quadro para o Brasil:



Aqui dá pra ver que o Estado do Rio de Janeiro é o que apresenta o maior número de óbitos em relação ao número de casos diagnosticados: 


3.657/33.589 = 0,109, ou 10,9%

Assim sendo, para cada 1.000 casos diagnosticados, 109 vão a óbito, e evidentemente 891 se recuperam. Isso no Estado do Rio, que apresenta o pior quadro.

Desses 1.000 casos considerados haverá aqueles que foram tratados com cloroquina e aqueles que foram tratados sem cloroquina, e o que a ciência precisa fazer é ver qual o resultado disso na maior amostragem possível de pessoas, cobrindo a maior quantidade possível de regiões em todo o mundo. 

Na medita do possível isso foi feito e publicado semana passada numa revista considerada uma mas mais respeitadas, The Lancet. 


Vejamos o que diz o artigo. Foram avaliados:
  • 96.032 pacientes internados
  • Com idade média de 53,8 anos, sendo 46,3% mulheres
  • Pacientes de 671 hospitais em 6 continentes.
  • 14.888 pacientes receberam 4 tipos de tratamentos com a cloroquina e a hidroxicloroquina. 
  • As hospitalizações ocorreram entre 20/12/19 e 14/04/20

1 - Das 1.868 pessoas que receberam apenas cloroquina, morreram 307, ou seja , a taxa de óbitos foi de 307/1.868 = 16,4%.

2 - Das 3.016 pessoas que receberam apenas hidroxicloroquina, morreram 543, com taxa de óbitos de 18,0%.

3 - Das 3.783 pessoas que receberam cloroquina junto com um antibiótico de largo espectro, morreram 839, com taxa de óbitos de 22,2%.

4 - Das 6.221 pessoas que receberam hidroxicloroquina junto com um antibiótico de largo espectro, morreram 1.479, com taxa de óbitos de 23,8%.

5 - Das 81.144 pessoas que não receberam cloroquina nem hidroxicloroquina, morreram 7.530, com taxa de óbitos de apenas 9,3%.

Vamos dar um tempo na nossa argumentação para fazer duas constatações. O Estado do Rio não é o que está em pior situação devido ao número de óbitos. São Paulo tem bem mais. Só que a taxa de mortalidade de São Paulo é de 5.773 óbitos / 76871 casos, ou 7,5%, enquanto o Rio tem 10,9%. Outra forma de se chegar ao grau de gravidade de uma cidade ou estado ou país é ver o número de casos ou óbitos por população. Por exemplo, minha cidade Campinas tinha em 01/05 a menor taxa de mortalidade do Estado entre as cidades com mais de 1 milhão de habitantes, com 16,6 óbitos por milhão.

Outra constatação nós vamos tirar dos dados da The Lancet. Entre os 96.032 casos analisados somente 14.888 eram tratados com cloroquina. Isso representa 15,5% dos casos, ou seja, a cloroquina só é assunto de discussão profunda aqui e nos Estados Unidos, certamente por pressão dos Presidentes de plantão. Esse número só chega a 15,5% porque estamos falando do grande foco atual e do foco futuro da pandemia. 

Outra coisa, não se impressionem com as 7.530 fatalidades no grupo que não tomou cloroquina. Elas aconteceram numa amostra 5 vezes maior, Mas passemos à análise dos resultados:

  • Entre aqueles que não tomaram cloroquina mas sim outros procedimentos morreram 93 pessoas em cada 1.000 casos registrados
  • Entre os que tomaram só cloroquina morreram 164 pessoas em cada 1.000 casos
  • Entre os que tomaram cloroquina com um antibiótico esse número subiu para 222 em cada 1.000 casos
  • Entre os que tomaram só hidroxicloroquina morreram 180 pessoas em cada 1.000 casos
  • Entre os que tomaram hidroxicloroquina com um antibiótico esse número subiu para 238 em cada 1.000 casos
Ou seja, embora estejamos em um ambiente de guerra onde as decisões têm que ser rápidas, esse trabalho da The Lancet deixa evidente a inutilidade do uso tanto da cloroquina como da hidroxicloroquina. Mas tem mais:

Meu amigo Bruno, jovem Médico (reparem o M maiúsculo que define uma pessoa que preza a profissão e o juramento de Hipócrates), filho do meu grande amigo Ricardo, me enviou a seguinte mensagem em WhatsApp que eu resumi assim:

Caro Fonte (Fonte sou eu):

Há um risco considerável de arritmia cardíaca com a associação cloroquina e azitromicina. Para ser prescrito deveria ser feita antes uma avaliação cardiológica. Aliás, nas últimas semanas saíram 4 grandes estudos nas principais publicações médicas dos EUA e Inglaterra que praticamente enterram o uso da cloroquina no COVID. Posso lhe enviar se houver interesse. Eu já não acreditava muito na eficácia, agora estou convencido de que não funciona.

Só peço que não tome junto com hidroxicloroquina sem uma avaliação cardiológica antes. 


Os números estão escancarados no artigo da The Lancet. A junção da cloroquina ou da hidroxicloroquina com um antibiótico aumenta o risco de morte. 

Espero com isso ter convencido aqueles que leram esses rascunhos da inutilidade do assunto cloroquina. O link do artigo acima está à disposição daqueles que quiserem se aprofundar nele. Argumentos tais como "a cloroquina ainda é boa no início" são obviamente válvulas de escape daqueles que se atém a seguir a palavra do Messias. 

Aí surge a pergunta: por que tudo isso? 

A resposta está na forma como essa pandemia foi tratada. Em Post anterior a esse discutimos o por que de tanta polarização em meio à grave situação que estamos enfrentando. Não existe o menor diálogo no tratamento da pandemia. A incompetência grassa em todos os níveis, a ponto de até agora não termos chegado a nenhuma conclusão sobre coisa alguma. 

Era necessário que se criasse um factoide que tentasse esconder esse estado de coisas, e o seu amigo Donald Trump surgiu com a cloroquina. O Messias já tinha a experiência adquirida coma droga do câncer, e todos nós embarcamos nessa. Ate eu tenho hidroxicloroquina estocada em casa, que eu vou ter que doar para quem realmente precisa dela. Interessante que eu tomei a decisão de comprar a droga em março quando soube que um conhecido meu que vive nos Estados Unidos encomendou daqui uma quantidade razoável dela, que tinha sumido das farmácias de lá.

Em tempo: a nova droga agora se chama ivermectina. Cuidado com ela. Uma amiga de Vitória me disse que o Ivomec está sendo procurado nas lojas de produtos veterinários de lá.

Pergunta final: como e quando tudo isso acaba, se é que acaba?

Como: Existe um termo chamado imunidade de rebanho, que depende do grau de transmissão das doença. Ele se refere a que percentagem de uma população precisa ter contraído a doença, ou ser vacinado contra ela, para ser considerada imune. Como não existe ainda vacina, precisamos saber qual a percentagem de pessoas tem que ter contraído a Covid19, e esperar que ela não reincida. Otimistas estimam em 60%.a imunidade necessária, e ela pode ser alcançada por exemplo em São Paulo mas não em Campinas.

Estima-se que no Brasil o número de casos reais é 15 vezes maior que o oficial. Então vamos supor uma cidade do porte de Campinas. Para simplificar:
  • População: 1 milhão de habitantes
  • Imunidade de rebanho: 600 mil
  • Casos oficialmente reportados: 600 mil / 16 = 37.500
  • Casos não reportados:: 37.500 x 15 = 562.500
  • Óbitos estimados (sem cloroquina): 37.500 x 9,3% = ~ 3,500 pessoas
Palavra de um Cético: Deus queira que eu esteja errado. Campinas não merece perder 0,35% da sua população para se imunizar. Esperemos que uma vacina acelere a chegada à imunização de rebanho, ou que se chegue a algo sério como remédio para essa praga. 

Já o quando depende do nosso comportamento como cidadãos. 




Comentários

  1. Em tempo:
    Hoje, 27/05, a França proibiu o uso da Cloroquina no combate à Covid19

    ResponderExcluir
  2. Bom Saber os detalhes. Seria bom saber da onde surgiu ideia - acho que foi na China, mas porque/como - de se usar a cloroquina ou hidroxicloroquina no tratamento do covid?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O pioneiro no uso da cloroquina contra a Covid não foi a China, foi um médico francês, Didier Raoult. Por sinal, França e Itália já proibiram o uso da cloroquina no tratamento da Covid, e a Bélgica já fez alerta contra o uso da dorga.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Civilidade e Grosseria

  Vamos iniciar este Post tentando ensaiar teatrinhos em dois países diferentes: País A O sonho do jovem G era ser membro da Força Aérea de A, mas na sua cabeça havia um impedimento: ele era Gay. Mesmo assim ele tomou a decisão de apostar na realização do seu sonho. O País A  não pratica a conscrição, ou seja, ninguém é convocado para prestar serviço militar. Ele está disponível para homens entre 17 e 45 anos de idade. G tinha 22 e entendeu que o curso superior que estava fazendo seria de utilidade na carreira militar. Detalhe: há décadas o País A tinha tomado a decisão de colocar todos os ramos militares em um único quartel, com a finalidade de aumentar o grau de integração e a logística. Isso significa a Força Aérea de A está plenamente integrada nas Forças de Defesa de A. Tudo pronto, entrevista marcada, o jovem G comparece à unidade de alistamento e é recebido com a mesma delicadeza que aquele empresário teria ao se interessar por um jovem promissor de 22 anos. Tudo acertado, surgi