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O Retorno dos Governos Patrimonialistas

 Abro a Wikipedia à procura da definição do assunto que escolho para este Post e encontro:

Patrimonialismo, ou Estado Patrimonial, é uma forma de organização política onde a autoridade estatal é fundamentada principalmente no poder pessoal exercido pelo governante. Foi muito comum tanto nas monarquias como nas repúblicas pré modernas.

O termo, Patrimonialstaat, foi criado por Max Weber, sociólogo alemão, quando se referiu aos Estados sem distinções entre os limites do público e os limites do privado. Já o motivo que me leva a provocar uma reflexão sobre este assunto vem de artigos recentes que sugerem que o mundo está rapidamente regredindo para esta forma de governança, como se não bastassem os problemas que ele já tem.

Uma característica importante do chamado Patrimonialismo moderno é que a fala do líder parece conter muito mais retórica desprovida de sentido que importância política. Isso traz uma certa tranquilidade à parcela da sociedade que acha desnecessário acreditar nas palavras do líder. Este engano leva a oposição ao líder a só acordar para o que ele diz quando é tarde demais. A retórica sem sentido tinha todo o sentido e não foi devidamente atacada na hora certa.

Vamos dar um exemplo: O Canadá sempre esteve no imaginário dos americanos que entendem que o chamado Destino Manifesto não teve prazo para acabar. A vocação da colônias em estender seu domínio até o Pacífico, atropelando terras francesas, espanholas/mexicanas e principalmente nativas, poderia certamente se estender ao vizinho do Norte, por sinal também cria da mesma colonização inglesa e ainda membro da Comunidade Britânica. Para muitos Americanos esta união seria um casamento natural. 

Só que os Canadenses não compartilham dessa ideia. Prova disso é o discurso do futuro Primeiro Ministro Mark Carney proferido em 09/03:

Podemos nos dar muito mais do que Donald Trump pode nos tirar, mas isso vai exigir esforços extraordinários. Não será uma discussão normal. Teremos que fazer coisas que não imaginávamos antes, em velocidades que não achávamos possíveis. Eu sei que estes são dias sombrios trazidos por um país no qual não podemos mais confiar. Estamos superando o choque, mas nunca vamos esquecer as lições. Temos que cuidar de nós mesmos e temos que cuidar uns dos outros. Precisamos nos unir nos dias difíceis que virão.

A surpresa do Canadá em de repente se ver transformado na Ucrânia dos Estados Unidos acordou seu povo para o fato de que não é só o México que é fraco para compartilhar um grande continente com uma superpotência que resolve de repente ficar fora de controle.

Ou seja, a fala inicial tinha endereço certo: criar um argumento que resultasse na criação de uma manada de seguidores fiéis a uma missão que seria considerada impossível em uma sociedade com o mínimo de bom senso. Tudo o que o líder diz, por mais absurdo que seja, vai definir uma agenda para esta manada e é na verdade um teste da sua lealdade ao regime. Aqueles que não se juntarem a essa horda passarão a sofrer todo tipo de retaliação.

Com isso é criada o que podemos chamar a essência do Patrimonialismo. Uma facção da sociedade passa a ser beneficiária de todas as facilidades que um governo possui para recompensar seus fiéis seguidores. A manada está formada e vai defender todos os argumentos criados para a sua formação, no caso a criação do 51º estado, ou a conquista da Groenlândia, a tomada do Canal do Panamá, a criação de uma Riviera em Gaza, e por aí vai.

Mas é claro que toda o política externa americana desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial não iria permitir que essas barbaridades acontecessem. Aqui a palavra que tinha que ser tirada do dicionário político é MULTILATERALISMO. Essa palavra enorme define que os países devem criar organizações internacionais que lhes permitam trabalhar em conjunto. Foi a criação dessas organizações que impediu  que os países fortes voltassem a invadir seus vizinhos fracos. 

Esse esforço está sendo implementado com a evidente iniciativa de enfraquecer a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e declarações que chegam até a um hipotético fim da ONU (Organização das nações Unidas), o maior exemplo do sucesso da política do Multilateralismo, criada por iniciativa dos mesmos Estados Unidos, que agora pelo visto não estão mais interessados nela.

Mas vamos nos ater um pouco mais ao assunto deste Post, na tentativa de nos familiarizarmos com os procedimentos padrão dos regimes patrimonialistas. Na verdade eles sempre prevalecram na história da humanidade, e no século XXI vemos este regime em estado avançado de consolidação:

  • Na Rússia de Putin
  • Na Hungria de Orban
  • Na Índia de Modi
  • No Israel de Netanyahu
A análise desses regimes irá nos ajudar a entender para onde está indo este modelo nos lugares onde ele ainda está se consolidando.

1 - No regime Patrimonialista, como já dissemos, o discurso do líder é uma mistura indistinguível de retórica vazia com assuntos realmente importantes, com grande maioria de retórica vazia. Para tanto a regra do jogo é se apegar a cada palavra do líder, para só assim entender para onde ele está indo e levando o país. É tolice imaginar que não existe um método nessa postura. Tudo o que ele diz tem que ser levado a sério, porque só os que não são subordinados a ele entendem como tolice os seus pronunciamentos. Os seus subordinados já entendem que a sua agenda extremista é para ser seguida ao pé da letra, numa demonstração de lealdade incondicional.

2 - Ou seja, a essência do Patrimonialismo é o direito do líder de tratar o Estado como sendo seu, e seus oponentes devem ser bem cuidadosos ao entrar nessa briga, dada a disposição dos seus asseclas de romper todas as barreiras legais na defesa de seu líder. Algum fogo amigo até pode acontecer nos escalões inferiores, na condição de que o discurso sempre tenha como finalidade defender o líder. Vejamos o que diz Steve Bannon por exemplo:

O presidente Trump equilibra tudo. Ele é um conservador de senso comum e um nacionalista populista de senso comum. Em nosso movimento, a base central do MAGA é fortemente soldada a Donald Trump porque eles admiram sua clareza moral. Eu o coloco no nível do presidente Washington e do presidente Lincoln nesse aspecto. Esta é a era de Trump (essa declaração foi dada em uma entrevista onde ele disse odiar Elon Musk e seus "tecnofeudais" do Departamento de Eficiência Governamental).

3 - A ideia de que os funcionários em um governo Patrimonial podem ter conflitos de interesse não faz sentido. Nesse ambiente os interesses do povo são os interesses do líder e dos seus asseclas, logo, não pode haver conflito de interesses entre a vontade do líder e o bem público. Então o governo pode por exemplo fornecer contratos lucrativos para as empresas dos seus seguidores sem nenhum problema, já que esse seguidor é leal ao líder e por esse motivo é merecedor. Assim sendo a chamada corrupção perde totalmente o sentido prático nesse ambiente, na medida em que a lei vale menos que as ligações com o governante.

4 - Com isso as ameaças mais absurdas começam a fazer sentido. As fronteiras para os estados Patrimonialistas passam a ser flexíveis, e as leis deixam de existir, dando lugar ao poder. O líder passa a apoiar os outros líderes Patrimonialistas e os acordos entre eles jogam no lixo todo o esforço pós Guerras Mundiais de pôr em prática organismos Multilaterialistas, já que sua visões são coincidentes.

O resultado dessas mudanças será um mundo onde as fronteiras serão definidas pelos líderes Patrimonialistas, já que o grande incentivador do Multilaterialismo, que ele vinha a duras penas tentando implantar desde o fim da Primeira Guerra Mundial, mudou de ideia e decidiu que tem poder suficiente para vergar os seus aliados e negociar com certa dose de intimidação com os deus inimigos.

O Exemplo Canadense

Vamos rapidamente analisar a situação do Canadá frente as ameaças de ser anexado aos Estados Unidos:


Aqui temos o exemplo clássico de que, sem os organismos Multilaterais e com o apetite Patrimonialista do bicho papão, nenhuma vizinhança como essa é segura para o vizinho mais fraco. O que temos são dois países de área igual, PIB per capita praticamente o mesmo, e uma população 9 vezes menor do Canadá. Vamos supor que a moda pega e o Canadá reage com tanta convicção, apesar das pressões que irá sofrer, que a coisa chega às vias dos fatos. O que vamos ter serão séculos de uma resistência acirrada contra o invasor.

Não vale aqui dizer que isso não vai acontecer. Já aconteceu tantas vezes na história mundial, sem a disponibilidade das armas que existem hoje, que nada irá impedir o retorno a este estado de coisas.

Aí vamos imaginar que o gigante do sul, o Brasil, resolve gostar da ideia e desenvolve um certo apetite pelo Uruguai. Ele tem até mais razões históricas para isso, já que o Uruguai não é mais que uma invenção inglesa, como o Equador e a Bélgica. O que temos então é:


Aqui a coisa se repete. Um país com 2% da área e da população, mas com o mesmo PIB per capita é um prato muito atraente. Só precisaria combinar com os "hermanos" argentinos. Um acerto do tipo "eu fico com o U, você fica com o P., ou vice versa. 

O Exemplo Polonês

Entre as várias nações que se envolveram na Segunda Guerra Mundial havia algumas com governos nitidamente no mínimo Patrimonialistas, sendo as mais importantes a Alemanha com seu Hitler, a Itália com seu Mussolini e a Rússia com seu Stalin. A Polônia para o seu azar se situava exatamente entre a Alemanha e a então União Soviética, o conjunto de repúblicas socialistas comandadas pela Rússia. 

A Polônia foi invadida pela Alemanha, a qual avançou na direção da Rússia, passando pela Bielorússia, a qual ficava entre a Polônia e a Rússia. Com o fim da guerra a Rússia pegou a parte oriental da Bielorússia, a qual em compensação ganhou a parte oriental da Polônia (em azul do mapa abaixo), que por sua vez foi recompensada com a área amarela que pertencia à Alemanha. Este exemplo mostra que quando o poder toma lugar nas relações internacionais as fronteiras ficam voláteis. A Polônia e a Bielorússia foram simplesmente deslocadas para o ocidente. 


O exemplo Escocês / Inglês

A Europa sempre foi campeã em mexer com as suas fronteiras, mas para minha surpresa fiquei sabendo de uma cidade no Reino Unido que é a recordista absoluta em mudar de país. É Berwick upon Tweed, a qual mudou de nacionalidade por 13 vezes entre a Inglaterra e a Escócia. A indefinição quando a quem Berwick pertencia chegou ao ponto de, quando a Rainha Vitória declarou guerra ao Império Russo e ao Otomano em 1853, a carta enviada ao inimigo começava com:

Vitória, Rainha da Grã Bretanha, Irlanda, Berwick Upon Tweed e todos os domínios Britânicos.....

Atualmente os habitantes desta cidade se intitulam 'berwickenses" e não se declaram ingleses nem escoceses, embora hoje ela seja inglesa. Esta história é um final divertido a respeito do triste assunto que está acontecendo na nossa política internacional






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