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A Queda da Ponte Juscelino Kubitschek de Oliveira - Uma prova da nossa enorme incompetência.

 


Em 29/01/1961 eu tinha 17 anos. Era aluno da Escola Preparatória de Cadetes do Ar e ia ser transferido de Barbacena para o Campo dos Afonsos no Rio de Janeiro, e estava em Goiânia passando férias. Mas o meu pensamento estava em Carolina-Ma, onde estava programado um evento muito importante: a inauguração da tão esperada ponte sobre o rio Tocantins no povoado do Estreito, então pertencente ao município de Carolina. Carolina habitava e ainda habita o meu imaginário pelo fato do lado paterno da minha família ser de lá, e meu lado materno ser de Marabá-Pa. 

A elite de Carolina se deslocou para o Estreito porque a ponte seria inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek. A ponte seria a coroação da promessa de Juscelino de ligar Brasília a Belém por via térrea. Muita história foi inventada desta grande festa, muitos "causos" foram criados, dos quais escolhi dois::

Causo 1: Teria havido a apresentação de um repentista que, ao saber do nome do Presidente, a iniciou com esta: "Juscelino C_ de Cheque, nunca vi nome tão feio, passa pra cá esse cheque, que de c_ já ando cheio".

Causo 2: Um sertanejo muito conhecido em Carolina, grande admirador de Juscelino, dele se aproximou, bateu em seu peito e disse: "Êta Presidente Jumento!". A segurança se movimentou e ele se apressou em concluir: "Compreenda bem, jumento pra mim é homem de fibra, porque essa terra só viu três home de valor verdadeiro: Juscelino nas obra, Mauro Borges na coragem e Lampião nas arma curta" (Mauro Borges Teixeira era o governador eleito de Goiás, cassado pela Revolução em 1964). Juscelino abraçou o sertanejo e os dois se tornaram grandes amigos.

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Mas vamos aos fatos. Dia 22 de dezembro de 2024 um vereador de Adrianópolis estava fazendo um vídeo da ponte e vejam o que aconteceu:


A ponte de 64 anos de idade, que tinha um tráfego diário de cerca de 2.000 caminhões, a sua maioria com carga pelo menos três vezes mais pesada que aquela que tinham em 1961, e que era a principal ligação da região de Belém, do leste do Pará e do oeste do Maranhão com o resto da país, colapsou. A notícia foi divulgada da maneira mais displicente possível, numa demonstração clara do pouco conhecimento que temos desse país, e as cobranças inicialmente se limitaram a lamentar a morte de 10 pessoas e o desaparecimento de 7, e o fato de que cargas de ácido sulfúrico e fertilizantes que afundaram iriam comprometer o abastecimento de água das cidades a jusante.

Agora mesmo ao escrever este Post vejo o Governador de Belém lamentar que sua cidade só tem de fato um acesso por terra. A queda desta ponte a 700 quilômetros de distância é um golpe quase mortal nesse acesso. O escoamento de todas as commodities a partir de Belém também sofreu um forte impacto.

A solução encontrada para resolver esse enorme problema, segundo me descreveram parentes queridos em Carolina e no Estreito, hoje município, foi dividir a travessia do rio Tocantins entre balsas localizadas em três cidades:

1 - O próprio Estreito, com 4 balsas, para transportar o tráfego entre Estreito - Ma e Aguiarnópolis - To, e caminhões com carga de baixa tonelagem.

Mapa do Estreito

No mapa acima a estrada em diagonal da esquerda inferior para a direita superior é a BR 226, que compõe nesta região a Belém-Brasília. Observem aqui que ela percorre as cidades de Aguiarnópolis e Estreito em toda a sua extensão. Que o rio Tocantins tem seu local mais estreito justamente onde se encontrava a ponte, motivo pelo qual ela foi definida ali. 

A estrada que margeia o Rio Tocantins na direção norte no lado esquerdo é a TO 126, que liga Aguiarnópolis a Tocantinópolis, 30 quilômetros distante. E a que margeia o Rio na direção sul no lado direito é a BR 230, a qual passa por Carolina, 97 quilômetros ao sul.

2 - Porto Franco, em frente a Tocantinópolis, cujas balsas transportam caminhões com cargas maiores, além do tráfego entre as duas cidades.

Mapa de Porto Franco

Aqui o que se tem é que os caminhões também atravessam Tocantinópolis e Porto Franco em toda a sua extensão para seguir na direção de Belém pela BR10 (novo nome dado à Belém - Brasília a partir de Porto Franco)

3 - Coube a Carolina a tarefa mais dura de transportar os pesadões, e aí estamos falando de algo que chega a 50 toneladas:

E é aí que a coisa pega. O caminhão sobe na direção de Belém na Belém - Brasília. Em Araguaína (na esquerda inferior no mapa abaixo) ele vira à direita e percorre 111 quilômetros na TO 222 na direção de Filadélfia, em frente a Carolina. A TO 222 não foi preparada para receber esse tráfego e logo estará deteriorada.

Mapa da Região, com Araguaína, Carolina, Estreito e Porto Franco

É chegando a Carolina que vamos mostrar, pela facilidade que tive de obter mais material com uma prima querida, as agruras pelas quais estas seis cidades estão passando. O caminhão chega a Filadélfia, em frente a Carolina e cruza essas duas cidades na sua totalidade para pegar a BR 230 em direção ao Estreito:



Normalmente o trajeto Araguaína - Estreito teria 120 quilômetros, mas tendo que passar por Carolina serão 111 + 97 = 208 km, percorridos em estradas totalmente despreparadas para receber esse tráfego. Em Carolina em particular eles passam pela Avenida Elias Barros a principal via da cidade, o que implica na prática em dividir a cidade em duas partes praticamente incomunicáveis na maior parte de todos os dias da semana.

Vejamos o depoimento de uma moradora da Avenida Elias Barros:

Depoimento de moradora de Carolina

E agora vamos tomar um sorvete de frutas da região:

Sorveteria em Carolina

Carolina é um importante ponto turístico dessa região, a qual conta com a Chapada das Mesas, com uma quantidade de cachoeiras ainda desconhecida e os mais variados resorts.  Já está prevista uma enorme desistência do afluxo de turistas, e isso se dará principalmente em função da impossibilidade de Carolina oferecer segurança aos visitantes tanto para o seu acesso à cidade quanto para uma convivência digna nela.

Uma sobrinha minha, que mora do lado de Aguiarnópolis, tinha uma festa em sua homenagem do outro lado, no Estreito, para comemorar a vinda de seu primeiro filho. Ficou 3 horas na fila da balsa e perdeu a festa. A comunicação entre estes três pares de cidade é intensa. Há pessoas que moram num lado e trabalham no outro. Esta mesma sobrinha mora no lado de Aguiarnópolis, e sendo médica atende em uma clínica no Estreito. Ela tem que estar na fila da balsa às 5 da manhã para chegar a tempo na clínica. 

Decorridos três meses deste triste acontecimento as coisas começaram a acontecer. Desde o início foi tornada gratuita a travessia de balsa apenas no Estreito, e no site do DNIT podemos ver que foram iniciadas as obras da construção da nova ponte no mesmo local da antiga: https://www.gov.br/dnit/pt-br/assuntos/noticias/dnit-avanca-com-acoes-para-construcao-da-nova-ponte-sobre-o-rio-tocantins-na-br-226-to 

Quando da inauguração da ponte em 1961, Estreito era uma povoado pequeno. A ponte trouxe consigo todas as condições que fizeram o progresso da região se mudar da beira do rio Tocantins para a estrada. Estreito cresceu e logo se emancipou de Carolina, tendo hoje uma população de cerca de 34 mil habitantes, e Carolina tem em torno de 24 mil. Manter a Belém Brasília passando por dentro do Estreito é um erro que só se justifica pela largura do rio nesse local. 

Mas isso é comum em todo o Brasil. Não precisa ir muito longe pra ver aberrações como essa. A cidade de Sapucaia - RJ na beira do rio Paraíba do Sul é um claro exemplo disso. Se estendendo ao longo do rio ela tem que suportar o imenso tráfego de caminhões que se deslocam da região Sul - Sudeste para a Bahia e o Nordeste. Horror que eu tenho que suportar toda vez que vou visitar parentes da minha esposa em Além Paraíba - MG do outro lado do rio.

Para o caso do Estreito minha sugestão seria, voltando ao mapa acima, fazer outra ponte rio abaixo. Aproveitar a existência de uma ilha e fazer duas pontes ao norte da cidade (vejam no mapa por favor). Isso não vai ser feito porque implicaria em desviar a estrada para a esquerda, para o norte, e a cidade do Estreito provavelmente vai ter que continuar a suportar pelo menos dois mil caminhões por dia trafegando dentro dela após concluída a ponte.

Como sabemos que esta ponte vai demorar, mais urgente ainda seria tirar o tráfego dessas cidades construindo uma rota alternativa para as balsas em torno delas. No caso de Carolina em particular parece haver um conflito forte de interesses que impede a imediata execução desta rota.
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A hidrovia Tietê - Paraná possui 2400 Km de extensão, com 1600 km no rio Paraná e 800 km no Tietê, e é muito importante para o escoamento da produção agrícola de uma imensa região e possui 12 terminais portuários. 

Já o rio Tocantins, até antes da rodovia Belém - Brasília era o único meio de transporte de cargas em toda a região hoje assumido pela Belém Brasília. Era uma navegação perigosa, cheia de corredeiras que vez por outra engoliam os barcos. Meu pai era dono de um deles, o Eliana, que sucumbiu a uma dessas corredeiras em Tucuruí, onde hoje existe uma imensa barragem com eclusa. 

Muito bem. Logo ao sul da ponte que caiu, a poucos metros, fizeram uma barragem sem eclusa, o que implicou no cancelamento da alternativa do transporte fluvial nesta região. A barragem do Estreito, ao contrário da de Tucuruí, não possui eclusa. É bom salientar que, com a construção das várias barragens que o rio Tocantins tem atualmente, a navegação se tornaria muito mais segura. A falta de uma eclusa na barragem do Estreito sepultou essa possibilidade.

O Brasil possui bacias fluviais imensas que poderiam ser aproveitadas para uma navegação eficiente. Estive na Inglaterra recentemente e fiquei impressionado com a forma com que eles tratam deste assunto por lá. Caberia então às autoridades que tratam da energia por aqui se entenderem com as que tratam do transporte toda vez que fossem construir uma barragem.

E Filadélfia, Carolina, Aguiarnópolis, Estreito, Tocantinópolis, Porto Franco, e todas as cidades à beira destas rotas alternativas, que suportem por não sei por quanto tempo o sofrimento a que estão sendo submetidas.

Comentários

  1. Tendo lido, lembrei. " Caía a tarde feito um viaduto ". Vivemos em um país sem memória.

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  2. Magnífico trabalho, do detalhe da história e dos problemas à estratégia de soluções. Em contraponto , a realidade da política e interesses, isto é nosso Brasil. Ficou uma linda crônica, parabéns Luis

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