Dias atrás me deparei com um vídeo fantástico, que me deu assunto para esse Post, num instante em que estava à procura de um: o Professor da UnB José Geraldo, na CPI do MST, respondeu à Deputada Caroline de Toni (PL-SC), o motivo pelo qual não havia como discutir com ela. Vejamos o que diz o vídeo:
Minha limitação nesse assunto foi despertada para o conceito de Realidade Recortada, tão bem explicado neste curto depoimento. Os índios não estavam vendo as caravelas porque a sua história nunca as tinha apresentado a eles. O que eles viam nada tinha a ver com o que os portugueses entendiam como caravelas; para eles tratava-se de algo novo e desconhecido, para o bem ou para o mal.
O mal entendido fundamental que é o ingrediente da guerra atual entre Liberais e Conservadores reside exatamente nesse conceito de Realidade Recortada: Nenhum dos lados tem a visão do outro da mesma forma como outro tem de si mesmo, e a diferença entre estas quatro visões é tão imensa que há muito pouca superposição entre elas. Os dois lados não conseguem mais concordar com uma descrição compartilhada do mundo em que vivem, o que leva o diálogo e o compromisso com o bem comum praticamente inviáveis.
Do lado Conservador as democracias liberais existentes estão prestes a se tornarem teocráticas e totalitárias, onde a coisa pública é dominada por uma visão particular do liberalismo, que é sacramental e litúrgica. Para eles o Liberalismo tem um único objetivo: o controle social com vistas à expansão do poder e dominação do Estado. Para os Conservadores o Liberalismo é o Estado controlador com a fachada do indivíduo libertado.
O Liberais refutam fortemente esse argumento, alegando que o simples fato dos seus críticos poderem tornar suas críticas públicas é a prova de que o Liberalismo não pune os hereges; para eles os hereges não existem (aqui temos o primeiro caso de Realidade Recortada, porque eles existem).
Para os Liberais a sua ideologia é inclusiva, fundamentada no respeito pelas pessoas e por suas escolhas, e por uma preocupação com os excessos do Estado; na convicção de que o Estado não tem o poder de impor convicções controversas aos seus cidadãos. O Liberalismo não é de forma alguma um regime moral; ele renuncia expressamente à prescrição de como as pessoas devem viver. Um Estado Liberal não impõe leis que definam as preferências ou o caráter dos seus cidadãos; ele não julga o valor relativo dos diferentes modos de se viver.
Este é o ponto mais importante: os Liberais entendem que um Estado democrático é neutro. As questões morais que ele defende se restringem à justiça para todos, a valores tais como equidade, a tolerância e a reciprocidade, que irão permitir que indivíduos diferentes vivam juntos numa mesma sociedade. Assim sendo, não impõem restrições quanto às visões particulares da vida que os indivíduos escolhem para si, a chamada ética. Há uma recusa a se ditar como as pessoas devem viver: se deve ou não acreditar em Deus, como gastar seu tempo e seu dinheiro, que tipo de vida deve seguir ou que crenças deve ter. O Estado Liberal se preocupa tão somente com as regras universais que unem os cidadãos, deixando as formas concretas de viver emergirem dessa vida livre da sociedade.
Daí o estranhamento para com a crítica conservadora. Como pode alguém olhar essa proposta e ver alguma coisa teocrática ou totalitária? O Estado Liberal não está dizendo pra você não ser religioso. Ele também não se importa com a forma como você cria seus filhos, com o tipo de sexo que você pratica, como você gasta seu dinheiro, na condição de você não estar prejudicando alguém. Cada um faz o que quer com essa condição. Indique outra ideologia que defenda isso.
Essa fala chega aos ouvidos dos Conservadores exatamente assim, e na cabeça deles surge a pergunta: será que eles são tão ingênuos assim, ou tão espertos, a ponto de propor uma linha de pensamento que é completamente em desacordo com o que está ocorrendo? Eles estão propondo o Estado neutro que não diz como as pessoas devem viver porque o estrago já foi feito. O Liberalismo já venceu a guerra cultural, e o Estado pode assim lavar as mãos. A mídia, as universidades, as grandes empresas, os aplicativos, a educação, já estão fazendo o trabalho sujo.
Ou seja, há uma esperteza da parte dos Liberais em fazer uma proposta que na verdade já nos levou à situação em que nos encontramos, e o resultado é exatamente o contrário do que eles estão propondo: o reparo só será feito através da criação de um Estado que se preocupe em traçar linhas de comportamento uniformes para a sociedade como um todo (aí está o segundo caso de Realidade Recortada).
Esta é a visão do Liberalismo sob a lente conservadora, e ela é muito convincente. O mundo está uma merda, e isso não seria mais que o resultado de um Liberalismo sem controle. Temos assim um problema, e a explicação para esse problema foi dada pelo teórico político Antonio Gramsci na sua cela onde estava preso há um século: o Liberalismo é mais que uma ideologia, ele é uma hegemonia inerente ao ser humano social, e a hegemonia é aquela coisa que toma conta das pessoas sem que elas se apercebam. O que o Liberalismo defende está na mente de todas as pessoas de bem, são aquilo que chamamos de senso comum, são valores dados como certos por todos.
Desmascarar essa hegemonia é a missão do lado Conservador. Para eles o Liberalismo é bem mais que um projeto de governo baseado numa defesa dos direitos humanos, ele busca transformar toda a vida humana, e suas intervenções atingem toda a sociedade: o ensino superior, a cultura, as empresas, as reformulações biológicas referentes a sexo e gênero, a imprensa, a família....
A verdade é que a visão de um mundo liberal está presente não apenas no Estado; ela está em todas as instituições, em todos os relacionamentos, em nossas vidas. Ela na verdade é aquele ar que respiramos. O temor que os Conservadores sentem é que no mundo Liberal não há lugar para eles, e assim se torna necessário resistir ao Liberalismo, até mesmo usando os recursos do Estado, sem o que não vai ser possível vencer a guerra cultural.
Aí surgem os exemplo atuais. Na Hungria acontece o fechamento de universidades e a implementação de políticas voltadas para a família. Na Índia ressurgiu a Hindulva, uma doutrina voltada ao nacionalismo que é defendida por organizações paramilitares. Na Rússia está em curso o chamamento à ressurreição a Alma Russa e de seu destino histórico.
O que está ocorrendo nos Estados Unidos é aquilo que a nossa dependência cultural deve avaliar com mais atenção. Segundo os seguidores do movimento MAGA (Make America Great Again) o governo Americano tem que ser totalmente reformulado para fins éticos e espirituais, e essa seria a única maneira de derrotar o Liberalismo que secretamente controla a sociedade civil e a cultura.
Vejamos por exemplo o que pensa Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation, um Think Tank Conservador:
"É hora de partir para o ataque com ousadia. De desafiar as instituições liberais com as nossas próprias. De superá-las na educação, no direito e na esfera pública. Não lutamos pelo poder por si só. Lutamos pela liberdade de viver virtuosamente. De criar filhos com retidão. De adorar sem medo. De ordenar nossas vidas em direção ao Bem, à Verdade e à Beleza. Nossa era de ouro americana trata de relembrar o que é eterno e reconstruir uma nação que o reflita".
Do lado Liberal, o que eles têm a dizer para responder a este ataque é que a pregação Liberal ocorre através da persuasão, não pela força. Os ideais Liberais abrangem todos os aspectos da sociedade civil, da vida privada e do contexto cultural das democracias ocidentais. A liberdade individual, a justiça, a reciprocidade e a tolerância não são apenas ideais políticos ou princípios legais. São a base de um modo de vida que os defensores do Liberalismo adotam como uma visão do mundo. Com isso eles se tornam dominantes culturalmente ao se comprometerem com a não imposição.
Acho que devo ter deixado claro que os Liberais dominam a cultura na medida em que o que a cultura almeja está mais próximo dos princípios que eles defendem. Em todas as sociedades fica evidente que a cultura está mais apegada à sua porção Liberal. Resta no entanto deixar espaço ao lado Conservador para que esta dominação não crie conflitos.
Nossa vida em comum está cheia de hábitos liberais, e esses hábitos moldam a maneira como vivemos. Mas a função do Estado é promover os princípios de justiça e equidade que nos unem, e ao mesmo tempo deixar que as diversas formas de vida que as pessoas escolhem floresçam por si sós. Só assim o Liberalismo pode vir a ser ao mesmo tempo um modo de vida abrangente e um lar para muitos outros que não compartilham dos valores Liberais.
Essa moderação é essencial. Todos os regimes que agiram sem essa moderação não sobreviveram. O Liberalismo, ao não dar lugar ao pensamento Conservador, se transforma em outra coisa. A marca de uma elite sábia é governar em harmonia com os princípios que ela defende. O desafio Liberal é ser uma potência hegemônica com uma forte dose de generosidade na medida em que os princípios Liberais permitirem.
O Liberalismo no Brasil
Nosso país na realidade ainda não acordou para o fato de que a luta cultural entre o Liberalismo e o Conservadorismo há muito tempo já se sobrepôs à briga entre Esquerda e a Direita. O número absurdo de partidos políticos que a nossa lei permite que existam não conseguiu levar esse assunto para as nossas fracas lideranças, que se apegam às velhas disputas que só faziam sentido décadas atrás.
Tudo o que chega ao Brasil como novo necessariamente passa pelo crivo da nossa velha sociedade, que tem suas raízes firmemente cravadas na nossa herança colonial de segunda classe, ibérica católica desde Rio Grande até o Estreito de Magalhães.
Vou dar um exemplo na figura de um personagem de Jô Soares, o Dom Casqueta. Ele era uma paródia dos chefões da Máfia ambientada no Brasil, e vivia desiludido porque não via nenhuma condição do Máfia existir em um país tão desorganizado como o nosso. Seu refrão era: "não manda a Máfia pro Brasil, esculhambam a Máfia".
Pois bem; entre os 30 partidos políticos registrados atualmente no TSE, o que tem maior representatividade na Câmara Federal responde pelo nome de Partido Liberal (PL). Segundo ele próprio se trata de "um partido de cunho liberal econômico e conservador social, majoritariamente alinhado à direita".
Evidentemente aqui estamos tratando de um Liberalismo "jaboticaba". Dá-se essa alcunha a coisas que só existem por aqui, mas até a jaboticaba já se globalizou. Vejamos quais são os expoentes dessa agremiação dita Liberal:
- Jair Bolsonaro: Ex-presidente da República, é a figura de maior projeção política do partido. Bolsonaro se encontra em prisão preventiva e aguardando cumprimento de pena de 27 anos de prisão por tentativa de golpe de Estado
- Valdemar Costa Neto: Presidente nacional do PL, é o principal dirigente e articulador político da sigla. Costa Neto foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a 7 anos e 10 meses de prisão.
- Michelle Bolsonaro: Ex-primeira-dama e presidente do PL Mulher, tem ganhado destaque e influência na articulação política do partido, especialmente em palanques estaduais. Possível candidata a presidente pela legenda em 2026, tem suas declarações e ações públicas focando no uso da Bíblia como um guia moral.
- Flávio Bolsonaro (RJ): Senador e líder da Minoria no Congresso Nacional. Filho Número 1.
- Nikolas Ferreira (MG). Militante bolsonarista, defensor de ideias negacionistas e de resistência às medidas de prevenção durante a pandemia de Covid 19; autor de discursos transfóbicos e discriminatórios, além das práticas de difamação e da propagação de notícias falsas.
- Eduardo Bolsonaro (SP): Filho Número 2.
- Bia Kicis (DF): De posicionamento político reacionário, é uma política de extrema direita.
- Carla Zambelli (SP); Se encontra presa na Itália aguardando remoção para o Brasil para cumprir pena de 10 anos de reclusão por ter inserido dados falsos no sistema do Conselho Nacional de Justiça
- Filipe Barros (PR): Ativista pró família, com ações contra o aborto e a ideologia de gênero.
Com uma amostragem assim não faz sentido para um brasileiro tentar alinhar a proposta
de uma partido com esse nome com o conceito de Liberalismo do mundo real, distante da
nossa ilusão política.
E continuamos com os nossos lugares comuns. Já deu pra perceber que os termos mais
comuns do noticiário atual são os embargos de declaração e os embargos infringentes,
comuns do noticiário atual são os embargos de declaração e os embargos infringentes,
termos que nem vale a pena recorrermos o Google para ver o seu significado.
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