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Encontros com o meu Pai - Episódio I

Aqui começa a história do médico Abílio. É uma transcrição da conversa que tivemos em maio de 2008. Quem tiver paciência de acompanhar a conversa vai ter uma boa ideia de como era difícil a vida de um médico no interior desse Brasil.

Resumidamente, meu Pai se forma em Belém. Vai clinicar em Carolina, Ma., sua cidade natal. Lá conhece em Filadélfia, Go., em frente a Carolina, o político João de Abreu, de quem se torna amigo. João de Abreu, à sua revelia, o nomeia médico da Polícia Militar de Goiás em Pedro Afonso. A aventura dura pouco e ele foge para Goiânia. Pede baixa da PM e vai para o Rio de Janeiro se especializar em obstetrícia. De lá ele volta para Carolina, bem mais preparado para enfrentar a árdua função de médico do sertão.

Foram horas de entrevista gravada que eu transpus aqui. A narrativa feita pelo protagonista a meu ver merece ser lida no original, dada a memória extraordinária do Dr. Abílio.

Transcrição da entrevista de 03/05/08
Abílio : Eu estava preso já.
Otavio: Como era o nome do farmacêutico, Montana?
Abílio: Montana, safado que só ele.
Otavio: Ele é quem armou tudo, é?
Abílio: Não sei se foi ele, mas ele ajudou, ele trabalhou no negócio. É, a carta estava aberta, não é? Toda suja, amarfanhada. A verdade é que eu dali não fui preso porque o Zé Porto, meu amigo, era uma pessoa muito importante lá, não é?
Otavio: O Zé Porto era deputado?
Abílio: Não, ele era o chefe da recebedoria. Ele que mandava em todo e norte na parte fiscal da receita do estado. Era ele.
Otavio: Por que você foi parar em Pedro Afonso?
Abílio: Porque eu cheguei a Carolina; logo uma semana depois o Doutor João de Abreu, que era deputado federal, chegou lá em Filadélfia (não tinha nada com Carolina, que é no Maranhão Filadélfia fica em frente, em Goiás). Chegou com caravana enorme, sabe. Com foguetório e tal. Aí, em Filadélfia não tinha festa, não tinha moça, então pra fazer a festa o pessoal de Carolina ia atravessado. E eu nesse tempo, falava em festa eu era o primeiro a chegar. Estava assim já escurecendo, eu estava tirando a barba e o meu Pai chegou e disse: "Você vai à festa?" " Vou e vou levar minhas irmãs". Ele não gostava que elas fossem e eu repeti: "Vou e vou levar minhas irmãs". Ele disse: "Não, tudo bem, mas eu quero lhe pedir um favor, sabe. Esse homem, pelo que eu estou entendendo, é muito importante na política de Goiás. Você vai à festa, e se houver oportunidade, diga umas palavras lá, representando o povo do Maranhão, o povo de Carolina".
Otavio: Quantos anos você tinha?
Abílio: Vinte e quatro. Aí atravessamos o rio no ajojo. No ajojo a travessia era demorada, e eu fui pensando o que que eu ia dizer, não é? Cheguei lá perguntei: "Escuta, aí tem um orador, quem é?" "É o Painho Furtado". Nossa! O homem é bom demais, é jornalista que apareceu por lá, da Bahia. Mas ele fez um discurso tão ruim, tão ruim que eu me animei, sabe. Aí eu pedi a palavra e falei e disse umas coisas lá que eu tinha pensado no ajojo. Sabe o que é ajojo, não é? Bom, ajojo são duas canoas com um tabuado em cima pra carregar animais, e tem um cercado em volta. As moças, muito preparadas, não podiam ir na canoa. Aí eu falei. Quando eu acabei de falar o homem ficou emocionado, viu? O João de Abreu, impressionado comigo. Ficou numa amizade que não me largava mais.
Otavio: Quantos anos ele tinha nessa época?
Abílio:  Ele? Deveria ter uns cinqüenta. Ele é filho de Taguatinga, dali do Nordeste, e foi a primeira pessoa importante daquela região, sabe, foi ele, João de Abreu.
Abílio: Foi Deputado Federal, foi Vice Governador, foi Senador.
Otavio: Foi locador da sua casa aqui quando você mudou pra cá.
Abílio: (Risos) É, então.. Então ele ficou meu amigo e foi embora. Quando passaram onze meses chegou uma nomeação minha que ele fez em confiança pra eu ser oficial da polícia em Goiás. No estado de Goiás, porque a companhia isolada da Polícia do Estado tinha uma sede em Pedro Afonso, mas ela tinha ramificações em toda a região. Ela fiscalizava a cobrança do imposto. E então eu disse: Eu não vou. Ora, eu estava em Carolina, morando na casa do meu Pai, não é? Bem cuidado, namorando as moças bonitas, dançava muito, e eu gostava muito de dançar. Eu disse: Eu vou pra Pedro Afonso? Não tem nem musica, nem moça, vou não! Terminou que meu Pai veio falar comigo e disse: "Meu filho, realmente a troca é muito ingrata. Mas a gente não sabe o que pode acontecer. Esse homem tem muito prestígio. Ele lhe nomeou sem lhe consultar, em confiança. Eu acho bom você experimentar, dar uma demonstração de confiança". Aí eu fui, e nunca me fardei porque lá não tinha nem do que fazer a farda nem quem fizesse farda. Logo, houve um negócio de uma organização. O Governo aqui em Goiás, eram duas pessoas. Era o Pedro Ludovico que era governador, e um irmão dele, que era secretário, que era secretário geral, ninguém mais.
Otavio : Como era no nome dele, você lembra?
Abílio: Eu sei mas me esqueci nesse momento. Aí eles nomearam uma comissão presidida pelo Bispo Don Alano de Noday, um francês que chegou lá e que adquiriu uma confiança muito grande do povo, tornou-se muito querido, muito estimado em toda parte, e que eu já conhecia porque ele fez uma visita a Filadélfia, em frente a Carolina. Um dia eu estava lá em casa quando o Vigário de Carolina (logo faleceu, muito simpático ele), bateu em casa e disse assim: "Doutor Abílio, vamos lá em Filadélfia?" Eu disse: "Fazer o que?" Ele disse: "O Bispo vai chegar e eu queria que você fosse fazer um discurso pra ele, dar recepção". Aí eu fui com ele, com sorte nossa que chegamos, 15 minutos depois lá vem o batelãozinho do Bispo. Aí eu fiquei amigo do Bispo. E essa comissão, depois nomeada pelo governo, era presidida pelo Bispo, que tinha um prestígio muito grande, e eu fui pra Porto Nacional, de Pedro Afonso, com um rapaz de Tocantinópolis, a Nana Brito, o Zé Porto e o Serrão. O Serrão era um baiano que andava por aí, era Inspetor Escolar, conhecido em toda parte, amigão. Então fomos para Porto Nacional para reunir e oficializar a criação da Comissão. E eu fazia parte. Aí é que eu fiz amizade muito grande com o Coronel Diviquinho. Anos depois eu estava no Rio de Janeiro e demorei muito. Fiz um curso, paguei, comprei um consultório, paguei, gastei muito dinheiro. O dinheiro que eu levei acabou quando chegou o Sousa Porto lá e hospedou-se comigo, no meu quarto. E eu: "Porto, eu estou lascado, eu não tenho dinheiro pra voltar". Aí ele disse: "Não, agente arranja". E eu: "Como?" Ele fez um telegrama para o Coronel Diviquinho que era o homem mais rico de Porto Nacional, um velho que eu tinha visitado algumas vezes. Ele disse: "vamos pedir um dinheiro aqui. Quanto pede?" Eu disse: "pede dois Contos de Réis". Naquele tempo era muito dinheiro, sabe? Aí o telegrama foi. Três dias depois chegou um telegrama, porque não tinha telefone naquele tempo, um telegrama dizendo que eu recebesse o dinheiro na filial do Banco do Brasil lá perto do Mercado. Que tal? Aí eu fiquei armado. Sei lá, eu fiquei mais um tempão lá no Rio, porque tinha dinheiro. Foi nessa época que eu esperei o Rossini a pedido dele. Eu tinha conseguido uma nomeação dele, o Rossini, meu irmão, para a Fazenda Federal, com o Senador Nero de Macedo.
Otavio: Como era o nome dele?
Abílio: Nero de Macedo. A esposa dele tinha a pálpebra caída. Ele pelejou muito com os médicos lá, nunca conseguiu concertar. Dona Lia. Ficou minha amiga. Eu ia muito lá na Rua das Laranjeiras. Eu ia lá pedir pra ele. Ele era Diretor de Pessoal do Ministério da Fazenda, e tinha sido anteriormente Senador pelo Estado de Goiás. Nero. Ele tinha um prestígio grande e o Getúlio era presidente. E então eu pedia pra ele, ele fazia um decreto de nomeação pro Rossini que ia pro Palácio. Chegava lá trocavam, não é, trocavam e o Rossini foi sobrando. E o concurso dele ia caducar. Faltava um mês, não é? Uma vergonha. Aí eu ia lá. Eu fui umas 300 vezes no Ministério da Fazenda ali na Avenida Rio Branco esquina da General ... Esqueci. Eu falava. O rapaz era sobrinho do Nero, ficou meu amigo demais, daqui de Goiás, e ele queria me ajudar, sabe? Nesse tempo eu inventei de fazer um curso mas não achei lugar. Mas um dia eu estava no restaurante da Brahma ali na Avenida Rio Branco e um amigo do Serrão, esse que era daqui, estava conosco. Eu contei a história e ele disse: "Rapaz, vai lá em São Cristóvão. Lá é humilde e tal, mas tem serviço, lá é bom demais. Tem o Camargo Júnior, ele é um bom obstetra, tem até obra publicada". Eu fui lá, e lá contratei. Eu pagaria pra ele parece que um conto e quinhentos e ficaria 3 meses pra ele me ensinar tudo sobre o serviço. E que eu não queria voltar pro sertão porque eu não sabia fazer parto. Não tinha treino, sabe, só teoria, eu só ia aprender fazendo, sabe. Não tinha prática nenhuma. E no sertão era o que predominava, não é? Aí eu fui lá. Eu ia na casa da Dona Lia nas Laranjeiras, na Rua das Laranjeiras, perto do campo do Fluminense. De noite, cheguei lá, e ela dizia pro marido: "Olha, cuida do Dr. Abílio. Ele é nosso amigo, vê como está essa nomeação". "Mas eu já fiz tudo, só se eu for lá levar em mãos pro Getulio". "Pois faça isso", ela dizia. "Faça isso". O que é certo é que na semana seguinte eu passei a noite toda fazendo parto. A noite toda. Trabalhei, acabei exausto, não dormi um minuto, e de manhã cedo eu ia pra casa. Eu morava nesse tempo na praia do Russel, o Otavio sabe onde é, lá pertinho do Flamengo. A praia do Flamengo é aquela... esqueço o nome. Aí ...
Otavio: Que ano era isso?
Abílio: Mil novecentos e trinta e nove. Peguei o bonde, que lá não tinha ônibus. No Rio de Janeiro era bonde, muito bom o serviço de bonde. E saltei na Avenida Rui Branco. A maternidade era em São Cristóvão, na Rua São Cristóvão. Saltei na Avenida Rio Branco com uma fome, sabe, e atravessei e fui num café na esquina da Sete de Setembro, no café, tomar um leite e comer um pão que eu estava com fome. E estava assim, tinha uma banca de jornal bem pertinho, na calçada, eu estava com uma vontade, era quinta feira. As nomeações para o Ministério da Fazenda eram publicadas justamente na quinta feira, naquele jornal que era o Correio da Manhã. Correio da Manhã. E eu estava com uma vontade de comprar o jornal, tomando o leite ali, mas com medo de sofrer outra decepção, que eu sempre recebia toda semana. Mas daqui a uns minutos eu terminei o café, atravessei e comprei o jornal. Quando eu abri o jornal: Rossini Gonçalves Maranhão. O nome dele era trocado com o meu. Nomeado para Belo Horizonte, escriturário letra D do Ministério da Fazenda. Ai tinha uma estação na Avenida, junto da Avenida Rio Branco. Telégrafo sem fio, aquele negócio, era um telegrama que saia daqui e chegava lá na hora. Eu mandei, nomeado, não é? Mas eu queria vir embora e ele telefonava de lá, telegrafava, não tinha telefone não. Pelo amor de Deus, me espera que eu não conheço nada daí, eu tenho que embarcar para Belo Horizonte. E eu tive que ficar esperando, o Souza Porto comigo lá. Chegou o Rossini, pelo navio Pará, que era um navio do Lloyd. Chegou e hospedou-se comigo. Não tinha cama e nós fomos ao Catete ali e compramos um beliche, um cobertor, um colchão, e ele ficou lá no quarto conosco. Aí o homem foi nomeado. Ele chegou ao Rio de Janeiro e eu levei lá no Nero de Macedo pra agradecer. Lá no Ministério da Fazenda, pra agradecer ao Moraes, que era o sobrinho dele, que ajudou muito, o Zé Moraes. E aí fizemos uma visita lá, e o Zé Moraes gostou muito do meu rapaz, ele era muito treinado já, e o Nero de Macedo queria que ele ficasse no Rio de Janeiro, sabe, mas não podia, estava difícil. É que a nomeação era pra ele ir lá e depois voltar. O certo é que ele foi pra Belo Horizonte, e lá ele... Fazia muito frio em Belo Horizonte naquele tempo. Hoje não faz mais. Ele em criança tinha tido reumatismo. Os joelhos incharam, eu me lembro muito bem, ele ficava numa esteira quando criança. E esse reumatismo voltou e ele ficou sem poder andar com o frio, o clima de Belo Horizonte.  E telegrafou e disse pra eu esperar por ele. O dinheiro acabando e eu: de novo! Eu tinha comprado um consultório inteiro, bonito sabe, e levei pra Carolina. O que é certo é que o Rossini começou por aí. E eu peguei o navio. Eu tinha uma namorada de Belém que estava lá no Rio, sabe, e com o a minha presença lá tanto tempo, eu fiquei uns quatro meses, a coisa adiantou demais sabe. E ela inventou de ir para Belém porque eu ia pra Carolina mas passando por Belém. E eu dei um jeito de ela ir num navio e eu ir só duas semanas depois. Todo sábado tinha um navio do Lloyd saindo pela costa fazendo Rio - Manaus naquele tempo. E ela foi, mas chegou em Vitória no Espírito Santo, a companheira  do camarote que ela nem conhecia e ficaram amigas adoeceu me maneira mais ou menos séria, o navio encalhou e ficou lá uma semana. Quase que dá pra eu ir junto com ela. Eu não queria. O fato é que aí eu peguei o navio para Belém do Pará. Sabe quantos dias gastou, Luiz Otávio? Dezoito dias.
Otavio: Parou aonde?
Abílio: Dois dias no Recife. Parou primeiro em Vitória, depois em Salvador, depois Recife, depois Ceará. No Ceará não podia encostar, ficava lá fora, ai vinha uma lancha para os passageiros desembarcarem. Não tinha porto. E o pior é que o sujeito pra pegar aquela lancha tinha que aproveitar que a onda subisse pra ele pular dentro. Um risco muito grande. E eu tinha que falar com Honório, um carolinense filho do professor Odolfo Medeiros, irmão do Alípio, não é? E ele trabalhava lá em Fortaleza. E eu fui, e queria conhecer Fortaleza, e peguei a lancha de tardinha, o navio marcado pra sair à uma hora da manhã. Quando eu estou dentro do navio pra pegar a lanchinha, um sujeito procurava: "quem é o Dr. Abílio aqui, quem é o Dr. Abílio". E todo mundo me conhecia. "Abílio, estão te chamando aqui". Eu disse: "o que é? O que o Sr. quer?' "Não, é que fulana de tal me mandou aqui pra recebê-lo e levá-lo na casa dela, lá na praça não sei o que no Ceará", num bairro chique de Fortaleza. É que ela tinha sido a companheira da minha namorada, da Lurdes. E foi tratada por ela muito bem, fizeram grande amizade, e que ela queria me conhecer, queria me agradecer, e eu fui. E lá fiquei até um tempão, depois fui encontrar o Honório, fomos jantar e no final voltei pra lanchinha. Quando eu cheguei na lancha pra voltar pro navio, era em torno de meia noite já, tinha um sujeito oficial, capitão parece, que estava sendo transferido de Fortaleza para Manaus, e tinha umas moças lá. Uma era noiva dele, e então os dois choravam. Eu nunca vi um homem chorar assim. Com saudade, sabe o que, ele ia e ela ficava. Pegamos o navio. Chegando a São Luiz eu desembarquei pra conhecer São Luiz que eu não conhecia. Eu já tinha estado lá mas ligeiramente, não é.
Otavio: Só pra pegar mula pra ir para Carolina.
Abílio: É. Aí eu fui pra Belém. E cheguei a Belém, fui muito bem recebido pela dona da república onde eu morei muitos anos. E eu fui pra república, médico. Era a primeira vez que um ex-republicano voltava, depois de estar bem colocado voltava pra república. Aquilo foi um exemplo, foi muito comentado, e tal. O que é certo é que eu fiquei lá uns dias, foi quando eu recebi o Genésio, que eu tinha mandado que ele fosse pra Belém com o irmão Gilberto, porque eu queria deixá-los internos no colégio Nazareth, dos maristas, ali na Avenida Independência. Aí o Gilberto não foi. Não quis ir de jeito nenhum. O Genésio saltou de manhã eu estava lá no porto. Eu disse: "cadê seu irmão?" Ele disse: "ele não vem e mandou dizer que não insista porque nem amarrado não vem". Eu falei: "bom então eu estou dispensado de prestar qualquer ajuda pra ele porque ele não quer". Eu levei o Genésio, deixei no colégio e vim pra Carolina. Eu tive uma infelicidade porque toda a minha bagagem virou carga. Eu tinha um consultório. Era muito volume, então eu tinha que despachar em uma outra embarcação. E era despachada para Alcobaça, que hoje é Tucuruí. E lá era AG nas caixas: Abílio Gonçalves. Chegou em Marabá tinha um turco muito safado lá chamado Abraão Gemus: AG. E ele aproveitou e disse: "não, é meu, isso é meu". E isso ficou perdido uns meses, sabe. Até que eu descobri que estava na casa desse Gemus, e a polícia foi e tomou dele, teve que pegar, porque o Anastácio, que mandava em Marabá, era amigo meu, e eu pedi pra ele interferir nisso. E consegui o meu consultório.
Otavio: Abraão Gemus
Abílio: Gemus
Otavio: Era Turco
Abílio: Turco legítimo
Otavio: mas era safado, ein?
Abílio: Safado, muito safado
Otavio: Em Tucurui isso, Alcobaça
Abílio: Em Marabá. Aí eu cheguei a Carolina depois que chegou o consultório, depois de resolvido esse problema. Montei o consultório. Eu tinha curso feito no Rio de Janeiro, eu estava com o desempenho muito melhor, bem arrumado com um consultório muito bonito. Tinha uma clientela numerosa lá. Foi exatamente aí que o João de Abreu, que tinha passado em Carolina meses antes, mandou essa nomeação sem me consultar, sem me ouvir, e meu pai...
Aqui o meu Pai comete uma imprecisão. Como veremos a seguir a sua ida para o Rio foi posterior à sua nomeação para a Polícia de Goiás. Na verdade o seu encontro com o João de Abreu se deu anos antes, quando ele era recém-formado.
Otavio: Vamos voltar agora pra Pedro Afonso. Você estava lá em Pedro Afonso.
Abílio: Eu fui pra Pedro Afonso
Otavio: Aí chegou uma carta do Zé Varão
Abílio: Chegou uma carta do Zé Varão, porque a saída minha de Carolina foi desastrosa. Pra ele foi, porque eu era o médico que dava muito serviço pra ele...
Otavio: Os clientes dos Carvalho eram tudo carreados pra farmácia do Benjamin, do Rui.
Abílio: Do Rui Carvalho. É. Então o Varão ficou desarmado porque não tinha outro médico, e então mandou essa carta. E na carta dizia assim: "Venha pra sua terra, você é querido é aqui, e tal. Abandone esse Pedro Ludovico; ele é da Rússia".
Otávio: (risos) E aí crau.
Abílio: Aí eu ia ser preso, rapaz, sem ter feito nada. O Sousa Porto interferiu, não deixou que me prendessem. Tinha um ano e seis meses que eu estava lá, aí eu resolvi, disse, eu não fico aqui. Essa policia não é polícia, é um grupo de bandidos, eu não vou me misturar com essa gente, não. Eles tinham ódio porque eu não tinha farda, mas como que eu podia ter farda? Eu vim de Carolina pra Pedro Afonso. Pedro Afonso só tinha duas ruas, era a Rua do Sono e a do Tocantins, só. Era uma península onde ficava a pequena cidade, que era a capital do norte. Ali estava a Recebedoria, ali ficava a Polícia para mantê-la. Era tudo. Aí, sem eu perguntar nada a ninguém, peguei o motor e fui a Carolina, me despedi da minha família, arrumei a bagagem, e o motor que eu subi apenas encostou em Pedro Afonso. Eu já não tinha mais nada lá, segui  para Tocantínia. Em Tocantínia eu tinha um amigo que era filho de Carolina, Oscar Sardinha, que se tornou meu amigo nas várias viagens que juntos fizemos quando eu estudava em Belém. Ele ia comprar mercadoria, comerciante que era, e eu ia voltando das férias. Eu fiz muita amizade com ele. Eu cheguei lá ele estava no porto, e disse: "Abílio, foi Deus que o mandou aqui". Eu disse: "o que é?' Ele disse: "é a Ritoca (a esposa dele), está em trabalho de parto faz três dias e não tem a criança, sabe, e você chegou agora e vai resolver o problema". Eu fui lá pra casa dele e vi... É que era o décimo quarto parto dela; naquele tempo as mulheres eram assim, muito férteis e tinham filhos indefinidamente, e eu compreendi que ela estava era exaurida, o útero não tinha força para expelir a criança. Mas logo eu resolvi tudo muito bem, e fiquei mais uns três dias lá, sabe. Aí o Oscar Sardinha arrumou uma condução, a condução que chamavam era uns animais bem adestrados, e um preto chamado Getúlio, pra me levar a Porto Nacional, onde já estava a minha irmã Eunice, casada com o Florêncio, recentemente transferido de Pedro Afonso pra lá. Eu fiquei uma semana em Tocantínia.
Otávio: O Florêncio era dos Correios.
Abílio: Era telegrafista, o chefe da repartição. Aí eu peguei a condução que o Oscar Sardinha me arranjou pra Porto Nacional e cheguei. A minha irmã estava lá, me hospedei com ela. Fiz amizade com o Doutor Chiquinho, que era muito surdo, era médico, já tinha sido deputado federal, político importante, da família Aires. Ele era surdo demais, sabe. Ele me convidou pra almoçar, mas eu fiquei de noite até tarde, lá em Porto Nacional, naturalmente ainda fazendo qualquer coisa, de noite, e dormi. Acordei tarde, assim pelas oito e meia pras nove horas, estavam na porta me chamando. Eu disse: "o que é?" "É o Doutor Chiquinho está lhe esperando para o  almoço". Que tal? Naquele tempo a moda era assim, se almoçava às 9 pras 10. Porto Nacional era uma cidade muito interessante. Todo homem importante era casado mas tinha que ter uma amante, pra ter filho com a mulher e com ela. Era assim. Até o Doutor Chiquinho seguia essa regra. E muitos amigos meus, filhos dele, eram filhos da rapariga. Mas ele tinha uma filha, que era da mulher dele, uma só. Chamava Vavá, rica, muito importante, e não tinha com quem casar em Porto Nacional, então chegou esse médico novinho assim, disse: "esse aí eu quero". Foi uma dificuldade eu me desvencilhar desse namoro, sabe. Eu nem tive namoro, eu tava era sendo agarrado. E vim embora, vim para Goiás, para Goiânia. Veja bem que eu era oficial da polícia, primeiro tenente, não pedi licença pra vir aqui, não comuniquei ao comandante lá que vinha pra cá. Então eu fiz tudo contra a lei, mas não queria ficar mais lá. Cheguei aqui à paisana, fui à Praça Cívica, onde estava o comando da polícia. Tinha um comandante muito importante chamado Arnaldo de Moraes Sarmento. Era o Comandante Geral da Polícia. Me apresentei a ele, e ele olhou pra mim estranhando e disse: "mas você tem coragem de se apresentar ao seu comandante em trajes civis, de gravata, você tem que estar fardado pra se apresentar ao seu comandante". Aí eu contei pra ele rapidamente a minha história, que não tinha quem fizesse, nem tinha material pra se fazer uma farda em Pedro Afonso.  Feito isso ele disse: "Está bem, pode ir embora, vá para o hotel, você tem oito dias pré se apresentar aqui, fardado". "Está bom". Mas eu saí de lá disposto a nunca fazer farda, não queria mais continuar na polícia. E assim aconteceu. Estava vencendo o prazo quando um dia à tarde me falaram, no hotel onde eu estava hospedado, que havia uma grande festa em Trindade, o encerramento dos festejos do santo de lá, e que muita gente ia pra festa. E quando falavam em festa eu era o primeiro que chegava, não é. E eu disse: 'e aí?" "Ai tem em baixo um carro que leva o pessoal". Era uma.... me esqueço o nome.
Otávio: Jardineira.
Abílio: Jardineira, que leva o pessoal. Eu cheguei e sentei lá. Eu digo: "eu quero ir também". E estou lá esperando quando entrou o Coronel Arnaldo de Moraes Sarmento. Quando o homem entrou eu digo: "agora é que vai ser, sabe". Ele se dirigiu pra mim, e tinha um lugar no banco. Eu quis me levantar e ele: "não fique aí que eu quero ir conversando com você". Ele queria saber notícia de lá, queria saber informações minuciosas do norte, da companhia lá sediada. A viagem hoje se faz em meia hora, não é? Levou mais de duas horas. A estrada não prestava, nem o carro também, e o fato é que nós chegamos lá já estava anoitecendo, já era crepúsculo. Ele virou pra mim e disse: "Olha, Tenente, nós devemos voltar depois das onze horas mais ou menos, e eu quero sentar junto com você novamente pra continuar a história. O senhor tem que me contar muita coisa ainda". E aí viemos conversando, e ele foi gostando das conversas minhas, que eu não denunciava ninguém, eu não queria me meter em encrenca. Mas ele ia gostando, sabe, e ficou meu amigo. Quando chegamos ali no alto, enxergando Goiânia, tinha uma luz elétrica já, um motor colocado ali no rio Meia Ponte, era muito fraco mas tinha uma iluminação razoável. Também era pequenina a cidade, muito pequenina. Aí ele virou pra mim e disse: "Escute, você já fez a sua farda?" Eu demorei a responder . Ele tinha me dado um prazo, não é, que tava findando. Eu disse: "Comandante, na verdade não, eu não estou disposto a ficar mais na polícia. Eu quero é ir para o Rio de Janeiro fazer um curso, sabe". "Quer dizer que você não fez a farda?" Eu disse: "não fiz e não estou querendo fazer, porque gastar dinheiro se eu estou pedindo baixa, não é?" Aí ele disse: "Olha, eu não quero que você saia não. Vá e se apresente amanhã ao Capitão Lindolfo", que era ali aonde ainda tem um muro grande, ao lado da estação da estrada de ferro, sabe, na direção de Campinas (antiga cidade que virou bairro de Goiânia). Lá dentro é que estava o quartel improvisado. Eu fui, me apresentei lá e fiquei, em trajes civis, como primeiro tenente, atendendo. Acontece que tinha outro médico que era capitão ou major, não me lembro bem. Importante, já estava há muito tempo lá, e usava farda e eu não. Acontece que havia ali vários praças, sargentos, que tinham servido no norte e me conheciam que informavam: "esse rapaz é médico de verdade, é bom médico, atencioso". O fato é que ai a clínica aumentou absurdamente, vinha parente, neto, sobrinho, dos oficiais, dos soldados, e eu trabalhava intensamente lá. À uma hora eu terminava de almoçar no Grande Hotel e ia a pé até chegar lá. Ficava quase até à noite atendendo a uma quantidade imensa de clientes. E o outro médico foi ficando esquecido. Eu nem o conheci direito e ele fez questão de não se relacionar comigo, e a propaganda do meu nome cresceu lá e aumentou a clínica demais. Um dia um cabo entrou lá e disse: "Dá licença tenente?" Eu disse: "pois não". Ele disse: "Olhe, o Comandante Lindolfo pediu pra quando terminar a consulta o senhor passar lá no escritório dele". Eu disse: "Pois não". Quando eu cheguei lá eu disse: "Pronto, Comandante". Sente-se Tenente.Eu disse: "eu fico de pé mesmo". "Não, você vai ficar sentado, e olhe, eu vou lhe fazer, não é comum, eu não vou lhe dar uma ordem, eu vou lhe fazer um pedido, sabe, e você vai estranhar muito. O que está acontecendo é que você é tenente e o outro é capitão. O outro é pessoa importante e tem um irmão na política, e está muito mal satisfeito com você, porque você chegou e tomou conta do serviço todo. Não tem ninguém que queira se consultar com ele, de maneira que eu vou lhe fazer um pedido estranho, mas é preciso. Eu quero que você não venha mais aqui, a não ser no fim do mês pra receber seu soldo. Que tal?" Eu digo: "Mas eu não vou assinar um negócio desses, que tal eu sair da polícia?" "Não, você fica aí. Você é jovem, tem muita moça bonita, vá namorar, vá passear, porque ele não tolera mais a sua presença aqui e eu sou obrigado a atender porque na polícia tem uma hierarquia, não é, e ele é capitão, e você é tenente". Resultado: eu fiquei aqui até quando resolvi um dia ir para o Rio de Janeiro que o Serrão, Gustavo Serrão Porto, um rapaz que eu fiquei conhecendo desde Carolina, em Pedro Afonso, no norte todo, estava lá e ia para o Rio de Janeiro e eu, com medo de ir sozinho que eu nunca tinha ido ao Rio, eu queria aproveitar a viagem pra ir com ele. E aí resolvi, e embarquei sem pedir licença, sem nada. Lá do Rio de Janeiro mandei um ofício pedindo demissão da Polícia. Não deram. Eu tornei a pedir e eles deram. Aí terminou o meu drama na Polícia, e eu fiquei no Rio de Janeiro na tentativa de fazer um curso de obstetrícia. Terminei fazendo como disse na Maternidade São Cristóvão, porque as que eu procurei... Eu tinha certa ousadia e aí eu fui falar com autoridades importantes no Rio, e eles me mandaram para a Pro-matre, fui mal recebido. Me mandaram lá para a Gávea, o Hospital da Gávea. Lá cheguei e os médicos passavam o dia era lendo jornal, e diziam: "O que é que você veio fazer aqui?' Eu digo: "Eu vim fazer um curso". "Então vai embora porque aqui não tem, aqui está todo mundo em greve". À noite eu encontrei no Restaurante de Brahma o Serrão, meu amigo. Contei a história, e tinha um amigo dele que disse: Doutor, lá na Rua São Cristóvão tem uma Maternidade muito humilde, mas o chefe lá, o diretor, é um médico que tem muita reputação como obstetra bom. Vai lá amanhã.
Otavio: O nome dele qual era?
Abílio: João Pereira de Camargo, Doutor João Pereira de Camargo. Vá lá amanhã. Pode ser que você consiga isso lá. Fui. Resolvi. Ele me aceitou porque ele tinha outros também fazendo a mesma coisa, uns dois ou três fazendo a mesma coisa, só que me exigiu dois contos de reis pra pagar o curso, pra eu ficar lá três ou quatro meses. Eu disse: "eu não posso". "Então quanto é que você pode?" Eu disse: "eu posso a metade". "Então venha". Eu fiquei, e lá eu treinei, e trabalhei muito. Passava a noite em treino, e eu descobri que os outros não pagavam coisa nenhuma, só quem pagava era eu. Mas por causa disso eu ganhei a atenção particular dele, e ele não fazia serviço nenhum sem me chamar pra ajudar, pra aprender e tal, e começou a me deixar tomando conta do plantão noturno, sabe. E era terrível. Toda hora chegava o carro trazendo gente daqueles morros, mulheres em trabalho de parto, enrascados. Foi ruim porque eu trabalhava muito, foi ruim porque eu não estava devidamente preparado ainda, mas foi ótimo porque aquilo me forçava a estudar e a treinar e me aplicar, e foi como eu aprendi muita coisa, muita coisa. Tanto que depois de três meses ele disse: "você pode até ir embora, você vai pro sertão, eu não tenho mais nada pra ensinar não". Terminou a história.
Otávio: E esse lance aí que você pulou. Você quando estava em Pedro Afonso você clinicava por fora. Teve aquele caso daquele velho com aquele problema nas costas.
Abílio: Quando eu estava em Pedro Afonso, eu tive dois problemas médicos de muita importância
Otávio: Esse e o da mulher que você injetava açúcar nela, não é?
Abílio: Exatamente. Mas o primeiro caso foi um velho, gente de Carolina, mas que eu não conhecia. Moravam em Miracema, que estava começando como cidade ainda, e ele chegou muito doente lá em Pedro Afonso, e em vez de procurar o médico, procurou o farmacêutico, que não era o Montana. Era um outro que tinha sido prefeito, um homem, até esqueci o nome dele, ele terminou o mandato dele como prefeito. Aí eu estou um dia lá no consultório e me chamaram para ir atender esse homem que tinha vindo doente, muito doente, um velho. Fazia oito dias que estava lá com o Góis Moreira. Que não era nada, até mal educado. Era um farmacêutico prático, mass não sabia nada. Quando eu cheguei o homem estava era morrendo já. Estava lá, a costa dele pareciam um bumbo, sabe. Mas eu tinha dois auxiliares que não eram competentes, mas eram muito fiéis, muito dedicados, o Acilom que era Sargento, e o Cabo Teixeira, que era cearense, interessante. Eu chamei os dois pra me ajudar... eu tive que tratar desse homem. A primeira coisa que eu tinha que fazer era tirar aquele pus do pulmão dele, da pleura dele. Mas era muito arriscado ele ter um colapso, ele estava numa fraqueza enorme, e eu não tinha uma mesa, nem pra jantar, e tive que operar ele na rede. Eu tinha alguma coisa, mas acontece que não tinha esterilização e eu fiz tudo na água fervida. E aí pensei e botei o homem debruçado numa cadeira alta, com travesseiros, de maneira que ficava a costa muito livre, e eu sentado na rede. E então eu achei que não precisava anestesiar, o homem estava semi-morto. E eu abri a costa dele, sabe. Voltei no meu consultório e peguei um livro francês, do Mancard, e eu aprendi rapidamente ali um processo e cheguei lá e fiz conforme mandava. Quando eu abri, dei um pulo pra traz. Subiu uma faixa assim de dois dedos, sabe, amarela. O meu trabalho foi deter aquele pus imenso que saia, porque eu tinha medo dele morrer de colapso. A descompressão brusca podia parar o coração dele, não é? E consegui. Depois, sabe, o Acilom fez umas injeções, eu estava impedido de fazer a injeção e dizia o que era pra fazer. O fato é que eu fiz a cirurgia do homem nessa posição, o melhor que eu podia fazer. E consegui botar um dreno de borracha, mas amarrei na pele dele bem amarrado, com medo dele cair lá, que nunca mais eu tirava. E ele ficou, e eu forrei a rede e deixei. Peguei em casa umas injeções pra sustentar o coração. Era noite já. Eu me despedi lá da senhora e fui tomar um banho no rio, porque não tinha banheiro na casa. Era perto. Passei a noite pensando: ele não amanhece. Quando foi de manhã cheguei lá o homem estava falando. Mas eu olhei, a rede dele tinha mais ou menos assim, preto, molhado. Aquilo ficou pingando pelo dreno que eu deixei, mas pingando. Eu não queria era que jorrasse pra não descomprimir violentamente. Aí eu fiquei admirado dele, relativamente bom, e eu tratei, tratei, tratei, e o homem ficou bom, curado, e aí se foi uma história. Teve um complemento financeiro aí que eu não vou contar.
Otávio: Não, esse é importante, conta aí.
Abílio: É o seguinte, o sargento e o cabo que me ajudaram o tempo todo não tinham nenhuma obrigação de me ajudar. O Sargento Acilom e o Cabo. Aí vem a conta. Eu tinha estragado um bocado de coisa minha e joguei fora, eu tinha dado muito remédio que eu mandava buscar na farmácia, e muita coisa que eu mesmo tinha. Enfim, eu tinha que gratificar os rapazes que me ajudaram. Quanto é a conta? Eu apresentei a conta. Nunca eu ouvi ninguém que cobrasse nem a metade no sertão. Eu cobrei quatro contos de reis. Isso foi um comentário: "que absurdo, é louco, esse homem é louco. Quatro contos de reis dá pra comprar uma fazenda de gado". E aí não pagaram, e levaram naquele rolo, e veio um filho de Miracema, Valdenor, resolver. Eu disse: "Não, a solução é vocês não pagarem, não tem outra não". "Não mas o Senhor não recebe."... "Eu só recebo o que eu pedi". E não pagaram. Quando foi um dia chegou de manhã lá, vindo de Carolina, o Antonio Braga, pai do  Valdir Braga, que era casado com a Geni Azevedo. Chegou pra resolver o problema comigo. Queriam pagar mas queriam uma diferença grande, sabe. Aí eu digo: "olha Braga, já tem quatro meses que está esse rolo aí e eu lhe digo, você perdeu a viagem, porque ou paga o que eu cobrei ou então eu não recebo, prefiro perder". E ele ficou zangado comigo, zangado mesmo. Foi embora. Quando foi um dia chegou  uma rapaz de Miracema: "está aqui Doutor, o dinheiro". Eu digo: "está certo". Terminou a história aí. Eu gratifiquei muito bem o Cabo e o Sargento. Aí um dia de manhã eu ainda dormia quando me chamaram. Eu morava sozinho numa casa grande, sozinho, na rua principal. Me chamaram, eu morava junto da Joaninha Torres, do Cândido Torres pai dela, da Tatá. Aí me chamaram pra ir atender um doente, uma doente. Onde é? É ali no Cabo Chico. Era a esposa do Cabo Chico. Ela era professora, pequenininha, alourada, cabelo meio..., ela era magra, magérrima, e queria engordar. E ensinaram que tinha um remédio de fabricação do Laboratório Raul Leite naquele tempo, que fazia engordar. Acontece é que o remédio queimava o açúcar do sangue, como a insulina. E ela tomou, tomou, pra engordar, e tomava, e tomava, e terminou que ela perdeu todo o açúcar, e entrou em crise, perdeu os sentidos, e nessa situação eu cheguei lá, me chamaram e eu cheguei lá. Sem nenhum aparelho pra fazer o diagnóstico, mas tive sorte. Eu disse: ela está tomando algum remédio? Está. Qual é o remédio? Aquele ali. Quando eu peguei que olhei, matei a charada. Ela está em acidose, ela perdeu todo o açúcar. Ela estava sem açúcar no sangue, precisava. Eu tive então que inventar, porque mandei na farmácia buscar um soro ...Eu esqueço, glicosado, exatamente, aí veio o rapaz e disse: "não, não tem não". "Então manda duas caixas de soro hipertônico, menor". "Não, não tem". Aí, a mulher vai morrer na minha mão, eu sei o que ela tem, fiz o diagnóstico, e eu não tenho armas, como é que faz? Aí eu digo: eu tenho que fazer qualquer coisa. Fui lá em casa, era pertinho, ali junto da casa do Pedro Torres. Peguei uma seringa de 50 ml que eu tinha, levei. A mulher em coma. Mulher tinha muita lá (risos). Aí chamei duas e disse: vocês vão fazer uma calda de açúcar, agora, já. Escolhemos lá uma panela bem arrumada, bem limpa, dei pra elas o açúcar, mandei fazer a calda, bem forte, e tal. E esperei, tirei a minha seringa, e quando terminou aquilo eu não esperei nem esfriar, não dava. Peguei na barriga dela, experimentei, e comecei a injetar. Aquela calda. O que pode acontecer é que pode dar uma escarlatina, uma coisa, mas isso é outro assunto que eu trato depois, eu quero é salvar agora. Passou o dia e eu injetei, injetei um bocado daquela calda grossa, que devia ter sido na veia se eu tivesse o soro glicosado. Mas deu resultado. E eu fiquei esperando. Naquele tempo eu fumava. Quando daqui a pouco na cama ela fez um arco. Ela ficou assim, dos pés à cabeça, ficou assim, e deu aquele grito: EHHHH. Eu disse: "nós vamos salvar a mulher". Meia hora depois ela estava sentada conversando comigo. Eu tratei dela. Não lembro o nome dela, professora. Esposa do Cabo Chico. Era um povo do Ceará, que morava ali naquela rua de trás.
Otávio: Rapaz, esta história é muito interessante.
Abílio: Estes dois casos que eu acabei de relatar foram os mais famosos de lá. Teve outros, com o menino do Tenente Isac.
Da Rita: Que quebrou a perna.
Abílio: Não, isso foi em Porto Franco
Otávio: Como é que foi esse negócio?
Abílio: Eu vim de Marabá pra Carolina num motor, e o motor encostou em Porto Franco... Não, eu estava em Carolina e fui chamado pra ir a Porto Franco pra cuidar de um velho que tinha recebido um balaço no pé desferido por um cabra da polícia. Era um fazendeiro e fazia oito dias que tinha acontecido isso. Quando eu cheguei lá estava a gangrena instalada, tinha até bolhas até no meio da perna. Eu digo, "mas deviam chamar o coveiro, não o médico. Não tem jeito, aqui não tem remédio nenhum pra isso. Eu não tenho nada pra fazer". Em todo o caso dei um remedinho e fui embora procurar o Gustavo Serrão, Gustavo Serrão, esse que era meu amigo daqui, estava como prefeito lá em Tocantinópolis. E eu disse: "vocês vejam, eu não tenho nada pra fazer, nada porque ele vai morrer de qualquer maneira, não tem jeito. Vocês demoraram demais a me chamar". Quando foi no dia seguinte de manhã cedo chegaram dois parentes dele. Ele era um fazendeirão. Atravessaram o rio e foram lá falar comigo. "Doutor, o senhor disse que podia operar, nós queremos que o senhor opere". Eu digo "ele não aguenta, ele não...está bom vambora tentar". Fui. Esterilizei material, levei tudo o que eu tinha, cortei a perna dele abaixo do joelho, fiz um coto, isso tudo sem mesa, sem nada. Fiz e bem feito, sabe, quando saiu a perna dele, toda necrosada, inchada. Aí eu fiquei cansado de trabalhar sozinho naquilo, sem condição, sem nada. Já quase noite eu terminei tudo. Aguentou. Eu dei várias injeções nele. Tinha um farmacêutico lá muito bom, prático porem muito bom, e muito remédio bom, e ficou meu amigo. O filho dele eu coloquei no SESP depois. Meu compadre hoje. Mora em Tocantinópolis. E ...
Otávio: Como é o nome dele?
Abílio: Não me lembro agora.... Nei, excelente rapaz. Aí eu vim de manhã, cheguei, pensei logo, não tem jeito, tá morto. Tirei a pressão, peguei no pulso, examinei. A operação tinha sido uma beleza, eu fiquei admirado como se pôde fazer, sem nada, mas estava uma beleza. Uma pena, sabe, mas o velho vai morrer, não tem jeito não, porque aqui na perna, atrás do cavalo, já tinha umas bolhas, a infecção estava subindo, passando para o sangue. Eu digo "não tem jeito". Eu fiquei lá, tratei dele, e o velho morreu. Aí me chamaram pra acertar, quanto eu ia cobrar. Eu disse olha, perdemos o caso mas eu trabalhei muito, gastei muita coisa minha. Pedi um conto e quinhentos. Aí a velha disse: "mas isso é um absurdo, um absurdo", e ficou falando, falando. Eu disse: "absurdo foi vocês me chamarem depois que ele estava morto, isso é que é absurdo. Então temos dois absurdos, mas vamos fazer o seguinte, não paga nada não, não tem que pagar nada não". Voltei pra Tocantinópolis e o Serrão não deixava eu vir pra Carolina, dizia "fica mais aqui". Domingo de noite eu estava na pensão da Maria José, que era de Carolina, quando chegou um sujeito que já tinha feito amizade comigo. Ele era telegrafista em São Luis e estava servindo em Porto Franco, inteligente. Chegou, olhou pra mim e disse: "vim te buscar". Chovendo, o que chovia, escuro, não tinha luz. "Me buscar? Aquela ali é uma cachoeira". "Eu vim te buscar". Eu digo "eu não vou não, vou amanhã de manhã, o que houve?" "É um menino de oito anos ou nove, jogando futebol lá na praça da igreja em Porto Franco, agora de tardinha, ele quebrou a perna, e está um pedaço de osso deste tamanho assim, bem no meio da perna, aquele bicão cheio de terra". Eu digo "mas não é possível, oh profissão, o que é que eu vou ganhar? A mulher era uma lavadeira, só tinha aquele filho, só tinha um quarto, sabe, era sala, era varanda, era cozinha, era tudo ali. Terminei indo, mas olha, eu subi a ladeira lá quase de quatro, sabe porque? Estava chovendo. A gente no sertão sofre muito.
Otávio: Por que é que o rapaz foi atrás de ti, ficou com pena do menino?
Abílio: É, ele era metido a líder lá, e era amigo meu e disse: "o Doutor vem", e me levou mesmo. Quando eu cheguei lá e vi aquilo, me sentei e pensei: "pra que eu sou médico, pra que o meu Pai fez essa judiação comigo, pra viver desse jeito?" Aí finalmente eu resolvi fazer alguma coisa. Tinha tanta mulher que eu acho que toda mulher de Porto Franco estava lá. Tinha o farmacêutico que era o pai desse menino que foi meu laboratorista, o Nei. Tinha uma farmácia boazinha até, sabe, e era muito esforçado, um velho, estava lá. Eu conversei com ele e disse: o que ele tinha? Ele disse: tem isso, tem isso. Tá bom. Eu fui lá pro fogão onde tinha umas mulheres. Arranjei uma panela e disse: limpa bem e me faz uma água fervida pra lavar aquela perna. Aí fui, com muito cuidado, porque rapaz, a ponta de osso era deste tamanho assim. Terra. Lavei muito, sabe, pacientemente aquela ponta de osso fora, depois esterilizei com álcool, fiz o que eu podia fazer de assepsia. Chamei os homens, naturalmente, lavei minhas mãos muito bem lavadas, com sabão, e mandei três segurarem o pé, e outros três segurarem a bacia do menino e puxar, e rezar, E eu fiquei segurando ali, esperando que estendesse aquela perna, onde eu meio que recolhesse a encaixasse o osso. E isso eu consegui. Ficou só o buraco, só a ferida, era perfeita. Não tinha gesso, não tinha atadura gessada, não tinha nada para imobilizar aquela perna. Aí tinha uma cama daquelas assim de couro xadrez, sabe? Eu digo aquilo ali me interessa.  Fiz o curativo do menino deixando aberto o local da ferida, chamei o farmacêutico e ensinei como ele devia fazer os outros curativos, e depois de trinta dias pra ele tirar aquela bandagem que eu deixei. Pus o menino naquela cama, as mulheres ajudaram com uns panos, umas coisas. Eu disse "olha, ele só vai levantar dessa cama daqui a trinta dias, aqui ele faz cocô, ele faz xixi, ele come, a senhora garante? Eu já fiz a minha parte, a senhora tem que fazer a sua". "Garanto". E fui embora. E os anos se passaram. Um dia eu vinha subindo num motor, eu vinha de Santo Antônio, Itaguatins, e o motor encostou lá assim, eram onze horas da manhã em Porto Franco. Tinham umas pessoas assim e tinha um rapaz. Botaram a prancha e o rapaz subiu e disse: Quem é o Doutor Abílio? Quando eu andava por ali era como se fosse um grande político, todo mundo sabia, o Doutor Abílio vem aí, vai chegar. E o rapaz chegou: "Quem é o Doutor Abílio, quem é o Doutor Abílio". Eu digo "o que houve?" Aí ele levantava a perna assim e dizia: "olhe Doutor o que o senhor fez, tá aqui", e batia no chão: PAC! "Tô bonzinho Doutor. Que tal?" Terminou a história. Quanto eu ganhei? Nenhum centavo. Ganhei muita coisa. É por isso que eu sou um homem feliz. Casei com uma mulher que me fez feliz, tive quatro filhos bons, muito bons, e estou com noventa e sete anos, caminhando pros noventa e oito. É porque Deus me ajudou por essas coisas que eu andei fazendo pelo mundo. Terminou aí a história.

Comentários

  1. Fontenelle:
    Meu pai, Ostiano Cerqueira Bastos, também foi médico, formou-se em 1935 na Faculdade de Medicina da Bahia e precisa ver os dramas por que passou em pequenas cidades do interior da Bahia para sobreviver com sete filhos. Passamos por muitas dificuldades e humilhações por não ter recursos para pagar aluguel e até para alimentar a família. Não havia postos de saúde nas cidades e os médicos tinham de sobreviver das consultas que apareciam... Só Deus sabe o que passamos de privação...

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