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A Vida é uma Viagem

Estou há horas enfrentado as retas da Belém - Brasília. São retas imensas, algumas com mais de 40 quilômetros. O ano eu não sei precisar, é na década de 1980. Ao meu lado está o meu Pai, àquelas alturas com idade parecida com a que tenho hoje. Tinha tirado férias com a finalidade única de levá-lo à sua querida Carolina. Seguiria até Araguaína e então iria virar à direita e percorrer mais 110 quilômetros em estrada de terra até Filadélfia, pegar uma balsa, atravessar o Tocantins e pronto, missão cumprida; teríamos percorrido 1200 quilômetros a partir de Goiânia.

Eram perto de 5 da tarde e eu estava cansado, louco por um banho. De repente, no meio de uma dessas retas, meu Pai manda eu diminuir a marcha e pegar uma estrada vicinal de terra, à direita, na direção do Rio Tocantins. Andamos uns 10 quilômetros e chegamos à sede de uma enorme fazenda. O Peão vem nos atender. Meu Pai pergunta:

    - O Fulano está?
    - Não senhor, ele não aparece há muito tempo.
    - Obrigado. 
    - O Senhor quer apear e descansar um pouco?
    - Quero. Estou com sede. Se tiver uma água gelada eu aceito. 

Foram vários minutos, uma meia hora, de papo sobre o tamanho da fazenda, a quantidade de gado. Aprendi que a maioria das fazendas da região era composta de gado "ervado", mas aquela fazenda tinha pasto suficiente, etc, etc, etc. Detalhe: meus amigos chamavam meu Pai de Doutor Questionário. 

Nos despedimos e no primeiro mata burro onde tive que descer para abrir a cancela, eu saí do sério: "Faz sentido perder mais de uma hora de viagem se era quase certo que o Fulano não iria estar em uma de suas várias fazendas?" Fulano era um amigo seu, Rotariano famoso, dono de cadeias de hotéis e de fazendas. Meu Pai se magoou com a bronca e respondeu que seria muito bom se ele estivesse lá, tornaria a viagem mais agradável, ele era um bom papo. 

Rodamos mais umas horas e paramos pra dormir. Eu estava tão alterado que quase não dormi. Fiquei contando as vezes que tive que interromper a viagem para atender às manias do meu Pai. O primo em Rialma, os médicos que contratou em São Paulo para trabalhar num hospital que ele montou em Porto Nacional, o sobrinho que iríamos visitar em Colinas.....

Hoje me lembro desse episódio e, com a idade igual à que o meu Pai tinha na época, entendo melhor o que ele considerava uma viagem bem "viajada". Ela não se limitava a enfrentar os incômodos de ter que percorrer 1.200 quilômetros em um terreno inóspito e quente. Era necessário transformar esse incômodo em algo de que se lembrar que não apenas dos percalços a ser enfrentados. 

O carro em si já funciona como uma espécie de casulo que nos blinda do ambiente que estamos percorrendo. Os motociclistas são totalmente avessos a esse isolamento; para eles é necessário sentir o vento, se inclinar nas curvas, parar sempre que a paisagem convidar. Isso o carro se encarrega de tornar difícil, considerar incômodo. 

Para o meu Pai o carro era apenas uma ferramenta. Na minha adolescência tive que aceitar o fato que a Kombi era o carro ideal para a nossa família; nada de Aero Wyllis, Simca Chambord. Eles não iriam aguentar uma Belém Brasília toda desprovida de asfalto. O carro devia ser avaliado pelo que ele é capaz de nos oferecer como paisagem a partir do seu para choque dianteiro, que no caso da Kombi era o nosso joelho.. 

Esse conceito eu acabei por trazer para mim. Há décadas o meu carro tem que estar na garagem pronto para me levar a qualquer lugar que a minha imaginação pedir que se concretize. Com ele já percorri estradas de areia no Araguaia à procura dos bagres enormes, desci o Paraná até abaixo da Itaipú argentina, a represa de Yacyretá, pra pescar os dourados gigantes. Conheço todas a represas do Rio Grande, e do Paraná em território brasileiro. Conheço cada parada da Belém Brasília até a cidade do Estreito, Ma, isso desde que, estudando em São José dos Campos, inventei de ficar noivo em Carolina. 

Minha Lua de Mel em 1970 foi uma viagem no meu fusca do ano, de SJCampos a Salvador, com primeira parada em Além Paraíba, MG, a segunda em Jequié, Ba. Como o dinheiro era curto eu consegui o convite para um curso de férias na Universidade Federal da Bahia, com hospedagem por conta da Universidade, que nos colocou na Casa de Retiro São Francisco, no bairro de Matatu das Brotas. Durante 3 semanas acordava cedo, passava a manhã dando aulas de Física dos Semicondutores, almoçava num bom restaurante, e ia curtir minha Lua de Mel.

Tive o prazer de contar com a hospitalidade dos meus anfitriões, que me levavam para conhecer Salvador "por dentro". No terreiro de Gantois, onde fui conhecer Mãe Menininha, por sorte minha estavam presentes três expoentes da cultura Baiana: Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé. 

Tinha data certa pra chegar a Salvador em função do curso, mas o retorno foi mais ameno, a viagem foi mais tranquila. Assim, fui aos poucos assimilando o que a minha genética me conduzia a praticar. Meu recorde talvez tenha sido uma viagem que fiz a Vitória para visitar um amigo de décadas. Na volta, já chegando ao Rio, na altura de Casimiro de Abreu, me deu vontade de passar por Nova Friburgo. Entrei numa estrada que na época ainda era quase toda de terra e fui parar em Lumiar, um lugar lindo que deve ter inspirado Beto Guedes a fazer sua música mais bela. Deixando Friburgo resolvi almoçar um bacalhau no Adegão Português em São Cristóvão. Cheguei a Campinas no fim da tarde com uma lembrança do trecho viajado equivalente ao prazer que tive em rever meus amigos em Vitória, cidade que para mim possui a melhor culinária do Brasil. E vejam que nasci em Belém. 

É claro que a tecnologia veio aos poucos nos privando desse prazer. Quando vou visitar minha filha mais velha e meus netos em Melbourne, fico pensando em como seria fazer essa viagem sem desgrudar meus pés do chão ou do piso de um navio. O que o avião nos proporciona é a rapidez, a qual traz junto consigo o enorme inconveniente que é destinado a quem só consegue viajar de classe econômica. Você é teletransportado em câmara lenta em um ambiente impróprio para a vida humana, e uma solução que encontrei foi fazer uma parada na viagem. Em Buenos Aires, em Santiago, em Auckland, em Abu Dhabi. Infelizmente a minha parada programada para Abu Dhabi teve que ser cancelada porque o meu sogro foi internado às pressas e tivemos que apenas conectar por lá. Foi até bom porque a temperatura no dia era de 50ºC.

Então. A Vida é uma Viagem? Na medida das minha possibilidades, é. O lugar que eu mais gosto de visitar hoje em dia é Gonçalves. Perdida do outro lado la Serra da Mantiqueira, Gonçalves tem a proeza de possuir, com seus 4.000 habitantes, uma culinária que, segundo o Guia Quatro Rodas, possui um restaurante com uma estrela, o Le Gourmet Bistrot, coisa que Campinas, com 1,1 milhões de habitantes, não consegue ter. Me hospedo sempre na Pousada Passaredo do meu amigo Zigfried:

http://www.pousadapassaredo.com.br/


Pra quem sai de São Paulo se chega a Gonçalves de 2 formas:
  • Pela Carvalho Pinto até Taubaté, cruzando a Dutra rumo a São Bento do Sapucaí. São 221 km
  • Pela Fernão Dias até Cambuí, virando à direita e pegando uma estrada de terra de 22 km. Total de 182 km. 
Como moro em Campinas eu sempre vou pela Fernão Dias, porque no meu caso economizo ~90 km. Chegando a Gonçalves vou direto ao Bar do Marcelo, em frente à Matriz, comprar vinhos. Marcelo é um apaixonado por vinhos e possui no porão do bar uma loja com uma quantidade de vinhos maior que a de habitantes que a cidade tem.

Muito bem. A vida então é mesmo, para mim, uma viagem. A idade e os meios disponíveis vêm aos poucos arrefecendo esse "pique". Estou pescando menos, visitando Gonçalves bem menos, mas não poderia terminar esse papo sem me referir ao que os gregos antigos nos ensinam a respeito desse assunto. 

Para eles, o futuro lhes chegava pelas costas e o passado se afastava diante dos olhos. 

Isso quer dizer então que quando você diz ao seu filhos que ele tem o futuro pela frente, isso não tem equivalência no mundo real. Aquilo que você consegue ver é o passado; o futuro está atrás de você, fora do seu cone visual. No mundo real o que você tem a fazer é verificar se o passado que você trilhou, que está diante dos seus olhos, traz consigo uma expectativa de um futuro promissor. Se não traz, você deve tentar uma trilha alternativa. 

Observe que você está na realidade andando de costas em direção ao futuro, e esse é um processo de tentativa e erro. Há uma boa dose de sorte nesse processo, mas a paisagem que o passado nos oferece é um indicativo forte da nossa probabilidade de sucesso. 

Vamos então construir do nosso passado na tentativa de que ele torne o nosso futuro promissor. O nosso não porque o meu está cada vez mais curto. Tenho um amigo cujo filho está hoje prestando serviço comunitário no Himalaia. Meu neto australiano mais velho já passou por essa experiência; também já alugou uma moto e viajou pelo Vietnã. O passado desses jovens lhes despeja num lindo futuro.

É importante que nossas viagens estreitem a distância que separa sociedades com propostas diferentes. O termo é distorcido pelos economistas, mas essa seria a verdadeira globalização. Só conhecendo as pessoas que pensam diferente de nós poderemos descobrir que na verdade temos muitas afinidades. Somos seres humanos. 

Comentários

  1. Muito bonito, é viagem da Vida é uma realidade que ficou no passado, mas como diz o ditado recordar também é viver.

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  2. Caro Fonte, nesse momento conturbado, ler essa crônica foi um verdadeiro bálsamo. De fato, na estrada da vida, andamos de costas. Abraço.

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