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O Levítico e o Homossexualismo


A base para a condenação do homossexualismo pelas religiões cristãs é o Levítico. O Levítico é o terceiro livro da Bíblia hebraica e do Antigo Testamento cristão. O termo é derivado do latim Leviticus, referente aos levitas, a tribo de Aarão. Aarão era o irmão mais velho de Moisés e foi o primeiro sumo sacerdote dos hebreus. 

As duas frases que ligam o Levítico ao Homossexualismo são:
  • 18.22 - Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é.
  • 20.13 - Quando também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles. 
Talvez o filme mais ilustrativo dessa maldição sobre os homossexuais seja "Orações para Bobby", de 2.009, onde a católica Mary Griffit tenta curar o filho homossexual Bobby. Trata-se de uma tragédia real levada para as telas, estrelada por Sigourney Weaver. Só consegui a versão dublada, mas se você tiver tempo vale a pena vê-lo:


O que faz a sociedade do século XXI moldar o seu comportamento no que diz um livro, supostamente escrito por Moisés há mais de 3.000 anos, para mim é um mistério. O que podem dois homens (já que as mulheres não são citadas no Levítico) se divertindo entre quatro paredes, fazer de tão grave a ponto de merecerem a maldição eterna? Se com esse ato eles não estão se prejudicando nem prejudicando alguém, não estaria essa ordem divina agredindo os direitos humanos? 

Se você já leu Homo Deus, o magistral segundo livro de Yuval Harari, pode abandonar a leitura desse Post, ou pode continuar a lê-lo como reciclagem. Para mim é reconfortante ver que, em meio a tantas iniciativas de ressuscitar o fundamentalismo monoteísta, posso encontrar, no outono da vida, um autor que possui respostas a todos os dogmas e ocupa lugar entre os 10 livros de não ficção mais vendidos, com 3 obras primas. 

Ao analisar o relacionamento da religião com a ciência, Harari conclui que a ciência descreve como o mundo funciona, mas não consegue definir como o homem deve se comportar. Ela cita o exemplo de que o homem não pode sobreviver sem oxigênio. e isso é uma verdade que não pode ser contestada. O homem também não irá sobreviver se for queimado em uma fogueira, ou submetido a um choque mortal em um cadeira elétrica. No entanto países e religiões em locais e épocas diferentes asfixiaram, queimaram e eletrocutaram, instituíram esses procedimentos que do ponto de vista meramente científico são inaceitáveis. 

Estranhamente, a religião se dá ao direito de executar pessoas, ao mesmo tempo em que institui conceitos éticos, que ela aplica quando lhe convêm. Harari dá um exemplo clássico disso::
  1. Conceito ético: a vida humana é sagrada.
  2. Declaração factual: a vida humana começa no momento da concepção.
  3. Orientação prática: o aborto jamais deve ser permitido.
Ou seja, o aborto é proibido não porque a declaração factual acima é incontestável. Há cientistas que afirmam que os fetos humanos têm sistema nervoso apenas uma semana após a concepção. Mas o conceito ético de que a vida é sagrada não impediu que milhões de pessoas fossem expulsas, torturadas e queimadas sob a alegação que aquelas vidas não contavam, porque elas não praticavam a verdadeira fé. O direito de sobreviver pertencia às seitas dominantes, e o conceito da vida ser sagrada era restrito a elas.

Toda essa confusão é oriunda do fato de se ter que cientificamente decidir se a vida humana é sagrada. É claro que a ciência não é capaz de concluir nada a respeito dos conceitos éticos. Seu alcance se restringe àquilo que chamamos de declarações factuais. Vejamos então como se aplicaria esse raciocínio à proibição da homossexualidade:
  1. Conceito ético: Humanos devem obedecer aos mandamentos de Deus.
  2. Declaração factual: Ha cerca de 3 mil anos, Deus ordenou que os humanos devem evitar relações homossexuais. 
  3. Orientação prática: As relações sexuais são proibidas.
Aqui mais uma vez, não há como a ciência contestar o fato de que os homens devem obedecer a Deus. Ela no entanto pode ter muito a dizer se o Criador ordenou, 3 mil anos atrás, que os humanos devem se abster de atividade sexual entre rapazes.

Harari começa por questionar se a declaração é verdadeira. Ela é insistentemente repetida em livros, artigos, e principalmente na Internet. Mas e se ela não passar de um Fake? Tanto os judeus como os cristãos alegam que o Levítico foi ditado por Deus a Moisés no Monte Sinai. É de se supor então que a partir desse instante nada foi suprimido ou adicionado ao que lá foi escrito. O que o cientista pode fazer nesse caso é verificar e isso é verdade, se o Levítico sofreu alteração. Se ele chegar a uma conclusão positiva a declaração factual acima fica sob violenta suspeição.

Os estudos científicos podem com exatidão definir a data em que um documento foi escrito. O que se conclui é que a Bíblia, composta de inúmeros documentos gerados por humanos, teve esses documentos escritos em séculos posteriores aos eventos descritos. Davi viveu certa de 1.000 anos antes de Cristo, mas é um fato que o Deuteronômio foi escrito na corte do Rei Josias por volta de 620 a.C., e se tratou de uma manobra de marketing para fortalecer Josias. Já o documento mais antigo do Levítico foi composto ainda mais tarde, por volta de 500 a.C. 

Os fundamentalistas hão de argumentar que os judeus antigos preservaram o texto bíblico, quando na verdade o judaísmo desses tempos não era baseado em escrituras, mas sim um culto da Idade da Pedra, em tudo igual aos dos seus vizinhos. Não havia sinagogas nem rabinos, nem mesmo a Bíblia. Os rituais do templo envolviam sacrifícios de animais a um deus rancoroso, para que ele enviasse chuvas e os protegesse nas batalhas. Os sacerdotes deviam suas posições à sua origem familiar e eram em sua maioria analfabetos.

Foi durante o Segundo Templo que se formou uma facção religiosa rival, facção essa que sofria a influência grega e persa, composta de acadêmicos que escreviam e interpretavam textos. O Segundo Templo de Salomão resultou do repatriamento dos judeus mantidos em cativeiro por anos na Babilônia. Ciro ordenou esse repatriamento e a reconstrução do templo. Esses estudiosos eram conhecidos como rabinos, e os textos que compilaram passaram a ser chamados de "Bíblia". A diferença entre um rabino e um sacerdote consistia no apoiamento em recursos intelectuais em vez do berço. O choque entre as duas facções foi resolvido pelos romanos, que incendiaram Jerusalém junto com seu Templo no ano 70. 

Sem o Templo as famílias sacerdotais perderam poder e o judaísmo tradicional veio a ser substituído por um judaísmo de rabinos estudiosos, com ênfase na interpretação. Havia muito a explicar, a começar por que Deus havia permitido a destruição do seu Templo, mas também para adaptar o novo Judaísmo que estava nascendo e aquele descrito nas tradições. 

Os estudiosos modernos acreditam firmemente que as condenação do Levítico ao homossexualismo não são mais que resultado do preconceito dos sacerdotes da antiga Jerusalém. A ciência, como foi dito, não tem o poder de decidir se as pessoas têm que obedecer os mandamentos, mas ela pode perfeitamente dar opinião sobre aquilo que chamamos de declaração factual. 

Assim sendo, se você acredita que o Deus que criou o universo se chateia quando dois seres humanos masculinos se divertem juntos, a ciência pode perfeitamente dar palpite no sentido de destruir esse absurdo.

Finalizando esse argumento, tudo se resume em decidir se factualmente Deus escreveu a Bíblia ou se você tem que acreditar que Ele a escreveu. Caso o Levítico não seja mais que o externamento da opinião de sacerdotes preconceituosos e não a palavra de Deus através de Moisés, cabe a nós resolver. 

Tudo o que falei não é mais do que o que aprendi com Yuval Noah Harari, que por sinal dedicou seu terceiro livro ao "seu marido Itzic, sua mãe Pnima e sua avó Fanny". Longe de mim acreditar que li o suficiente a ponto de defender que essas opiniões são resultado de estudos profundos que realizei sobre o tema. Tenho grandes amigos judeus que podem perfeitamente contestar o que disse sobre a sua história. Não fui eu quem disse, foi o meu guru Harari. 

Meu interesse sobre o assunto é simples: tenho uma pessoa muito chegada a mim que me convidou para almoçar e me revelou que era homossexual, e eu senti que a minha reação a essa revelação era para ele de grande importância. Não vi sentido em mudar meu juízo sobre um ser que eu amo em função do que se acredita que Deus pensa a respeito através de Moisés, mas que pode ter sido adulterado. Tem mais, sou ateu, o que me livra de ter que acreditar nisso. 

Nossa função nesse planeta tão conturbado é tentar das formas que podemos torná-lo mais tolerante. Tolerante nem é a palavra certa porque ela implica em aceitar uma coisa que entendemos como anormal. A palavra certa é "igual".

No Brasil, uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo em 2.009 em 10 capitais revelou o seguinte em porcentagem:

  • homens homossexuais: 7,8%
  • homens bissexuais:2,6%
  • total: 10,4%
  • mulheres homossexuais: 4,9%
  • mulheres bissexuais: 1,4%
  • total: 6,3%
Temos então que, grosso modo, em 2.009 algo como 8,3% da população brasileira praticavam o homossexualismo. Mantidos esses números podemos dizer que dez anos depois no mínimo 17 milhões de brasileiros estão na lista negra do Levítico. 

O resultado disso é que em 2.017 a cada 19 horas houve um assassinato ou um suicídio por motivos homofóbicos, num total de 445 vítimas. Curiosamente entre essas vítimas 12 eram heterossexuais que tentavam defender uma pessoa que estava sendo atacada.

Vejam o filme sugerido e tentem entender que o culpado dessa tragédia pode até não ser Deus, mas sim um grupo de sacerdotes cheios de preconceito. 


Comentários

  1. As relações humanas se transformaram através dos anos, conforme as mudanças impostas seja por descobertas que demonstram a falta de verdade que constituíram a existência de dogmas e comportamentos ou pela evolução ou involução dos homens.
    Só nos resta aceitar pois a história mostra isso

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  2. Mais uma vez, brilhante seu texto Fontenelle. Como você tenho Harari com um dos meus "mentores" - outro seria Richard Dawkins - (que eles não saibam disso...) e já estou lendo a 3ª obra de Harari publicada no Brasil, da qual você mencionou a fantástica dedicatória - "21 Lições para o Século 21".Como a humanidade usou barbaramente seus "deuses" para genocídios, barbaridades e crueldades terríveis! A ciência progride e cada vez mais lança luzes no obscurantismo religioso, mas ainda há muito a avançar. Obrigado e parabéns.

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  3. Como ainda nao li Harari (o Andre esta lendo o primeiro livro e eu estou na fila de espera!) foi muito interessante ler sua analyse. Obrigada por mais um grande Blog, ja recomendei pra varios amigos.

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  4. Como sempre ótimo texto e dessa vez instigante!

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