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Brasil para Principiantes: 2b - A Reforma Tributária - da sua Viabilidade

Continuando o Post anterior que trata da Reforma Tributária tão necessária, começamos com um exemplo de quão o nosso Sistema Tributário está alheio à nova realidade que nos trouxeram os avanços tecnológicos. A coisa começou quando um microempresário criou uma firma de comércio eletrônico no Estado A e efetuou venda direta para um consumidor no Estado B. 

Peraí, como isso é possível? Quer dizer que o consumidor do Estado B vai pagar ICMS diretamente ao Estado A, e uma coisa comprada em B não vai gerar nenhuma receita a B? A briga começou, e depois de 3 anos de discussão, em abril de 2015 foi promulgada a Emenda Constitucional 87/2015 que veio a "criar um cronograma para igualar a repartição do ICMS nas compras virtuais aos demais tipos de consumo"

Vejam bem, estamos tendo que alterar a nossa Carta Magna pra resolver uma questão dessas, mas isso é coisa que fazemos a todo momento, o que não ajuda em nada para mantê-la digna de crédito. Mas deixa pra lá, o assunto não é esse. O Estado A do vendedor queria manter o status quo, e o Estado B do consumidor queria levar o dele, o que não estava acontecendo. Ele não estava levando nada, mesmo tendo que manter uma infraestrutura para sustentar o cidadão B, o comprador.  

Em 01 de janeiro de 2.016 saíram as regras que puseram em prática o ICMS da venda virtual:
  • Em 2016 o Estado de destino ficaria com 40% do "diferencial de alíquotas" (economês para parcela do imposto) e o Estado de origem com 60%.
  • Em 2017 o Estado de destino ficaria com 60% do "diferencial de alíquotas" e o Estado de origem com 40%.
  • Em 2018 o Estado de destino ficaria com 80% do "diferencial de alíquotas" e o Estado de origem com 20%.
  • De 2019 em diante o Estado consumidor ficará com 100% do ICMS
Esse abacaxi caiu no colo daqueles que praticam esse tipo de venda. Posso estar errado, mas o que eu entendi foi que por exemplo uma exportação de São Paulo para o o Rio em 2016 teve que recolher 60% de 12% em São Paulo (exportação de SP para o Rio) e 40% de 20% no Rio (venda direta no Rio). Teve no entanto a virtude de levar para o Estado consumidor, que forma gradual, o ICMS. E isso é o que eu chamo de Justiça:
  • O Estado vendedor recolhe ICMS das despesas pessoais dos moradores desse Estado, nesse caso nada.
  • O Estado consumidor recolhe ICMS das despesas do morador desse Estado. 
Caso o sonho dos separatistas se realizasse e o Norte / Nordeste criasse um novo país, esse país não importaria sequer um palito de dente do Sul. Cito o exemplo do palito de dente porque no restaurante por quilo que eu frequento o palito, de bambu e muito bom, é "produzido na China". 

Na verdade a revolução digital exige dessa Reforma muito mais que uma simplificação. Ela é responsável direta pela transformação que os nossos pilares da tributação estão sofrendo a olhos vistos, e seria necessária uma mudança drástica nos mecanismos tributários. E estamos preocupados apenas com a simplificação. 

Vamos ver um exemplo: o setor de comunicações recolheu em 2010 10,4% da arrecadação do ICMS. Teve a maior parcela de recolhimento, o que por si só e um absurdo, pois considera a comunicação um supérfluo, com um ICMS altíssimo. O resultado disso foi a substituição da telefonia pelo WhatsApp, o que fez a participação do ICMS cair em 2017 para 7,8%. 

A automação da mão de obra, a flexibilização das formas de trabalho, na prática resultam em se deixar de tributar a renda. O motorista do Uber não tem carteira assinada, e o que se vê é a pressão para transformar esse empresário num funcionário da Uber, e incluir o poder público ineficiente, a chamada "viúva", nessa equação. 

A solução para se colocar a arrecadação do poder público em sintonia com com a nova realidade que estamos vivendo passa necessariamente pelo rompimento dos dogmas tributários que têm sido praticados ao longo do tempo. O Brasil tem em torno de 90 tributos que são cobrados sobre a renda, o consumo e o patrimônio. Segundo Flávio Rocha, presidente das Lojas Riachuelo e forte defensor do imposto sobre o fluxo do dinheiro, existe uma sobrecarga absurda em nosso sistema, e isso é notado por exemplo a partir do instante em que a tal tabela do Imposto de Renda não é corrigida.

A inflação entre 1996 (ano da estabilização da economia) e 2016 foi de 283,62%. No entanto a tabela do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) foi de apenas 109,63%. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais  da Receita Federal isso leva a termos uma distorção de 83% na Tabela do IRPF em 20 anos. Com isso mais pessoas são empurradas para faixas maiores de contribuição sem que tenham tido aumento real de renda. Chegamos à crueldade de tributar i assalariado que ousa ganhar dois salários mínimos por mês.

Resumindo, Imposto de Renda Pessoa Física na verdade é Imposto sobre Salário. É a forma eficaz que a Receita possui para tirar o necessário nesse pilar a percentagem da renda. A rigor paga o IRPF quem tem salário, e salário não é renda. Mas passemos ao outro pilar, o consumo. 

Essa tributação também é socialmente injusta; o pobre paga o mesmo imposto que o rico por um quilo de feijão, mas o dinheiro pago por esse quilo de feijão pesa muito mais no bolso do pobre. Ou seja, o imposto sobre o consumo pune aqueles cuja renda em sua maioria se destina às compras indispensáveis. Pra não falar no fato de que o ICMS é de longe o imposto mais sonegado. 

Já o terceiro pilar, o imposto sobre o patrimônio, que corresponde a 2% do bolo tributário, está saturado a ponto de aberrações estarem sendo praticadas sem o menor pudor. Basta dizer que entre 2014 e 2019 o IPTU da minha casa em Campinas, numa rua sem asfalto  e sem esgoto, teve um aumento de 80%, quando o IPCA aumentou 42% no período entre 2013 e 2018. 

Então o que devia ser considerado com relação à Reforma Tributária para que o Brasil tivesse um horizonte limpo nesse tema? A resposta seria simples mas não é, por dois motivos:
  • Há uma pressão forte por parte daqueles que não pagam imposto porque não estão na categoria de assalariados e conhecem os desvios que evitam o imposto sobre o consumo e sobre o patrimônio. Estima-se que a carga tributária poderia se expandir em algo em torno de 34% caso fosse possível eliminar a evasão tributária, a qual é de cerca de 8,4% do PIB
  • Outra pressão vem da parte daqueles que vivem da função de desvendar o cipoal que é o processo tributário tando das empresas como das pessoas físicas. De acordo com o Conselho Federal de Contabilidade, em junho deste ano o número de contabilistas registrados era de 518 mil profissionais. 
A solução para uma Reforma Tributária justa passa necessariamente pelo aproveitamento do que a nova tecnologia bancária tem a nos oferecer, que é refletir a atividade a econômica como nenhum outro processo pode fazer. Para dar um exemplo, o volume anual de créditos bancários globais equivale a 100 vezes o PIB de todas as nações. No Brasil em particular os créditos bancários correspondem a 180 vezes o PIB.

Em 2016 ele foi de 1,5 quatrilhões de Reais. E então um milésimo desse valor recolhido em um imposto único corresponderia a 1,5 trilhões de Reais, o que daria para substituir praticamente todos os impostos nos três níveis da Federação. 

Isso iria significar que a despesa de R$ 128,24 que eu fiz e mencionei no Post anterior, que pagou uma soma de impostos (sub)estimada de 15,27, iria pagar um imposto único de:

                                             R$ (128,24 - 15,27)/1000 = R$ 0,11


Em vez dos R$ 15,27 atuais, que como eu disse são subestimados. Os opositores do imposto sobre o fluxo alegam que seriam criados mecanismos para se evitar o pagamento desse imposto, como se isso já não acontecesse no sistema atual (lembrem dos 34% citados acima). 

Vou um pouco mais adiante; Um governo aberto e transparente poderia definir qual a porcentagem do PIB que ele iria tributar. Vejamos o exemplo do Brasil de 2016:

  • PIB em 2016: R$ 6.3 trilhões
  • Impostos em 2016: R$ 2,0 trilhões (dados do Impostômetro)
  • Créditos bancários em 2016: R$ 1,5 quatrilhões
  • PIB em 2017: R$ 6,6 trilhões (estimado)
  • Impostos em 2017: R$ 2,1 trilhões (estimado)
  • Créditos bancários em 2017: R$ 1,6 quatrilhões (estimado)
  • Alíquota a ser praticada em 2017:
                              2,1 trilhões / 1,6 quatrilhões = 0,131%

Vamos supor que realmente venha a haver um evasão que podemos estimar nos atuais 34%. Então a alíquota poderia levar isso em conta e passar a ser de:

                             0,131% / 66% = 0,198% 

Ou seja, uma alíquota de 0,2%, ou um imposto de R$ 2 em cada movimento de R$ 1.000 na sua conta bancária iria compensar todos os impostos federais, estaduais e municipais. O argumento que esse imposto opera em cascata (ele é cobrado várias vezes até o quilo de feijão chegar as mãos do consumidor) é verdadeiro, mas também é verdade que essa cascata teira que ter o comprimento de dezenas de incidências para chegar perto dos valores que temos hoje.

Então o que torna essa solução tão demonizada? Duas coisas:

  • As pressões já mencionadas acima 
  • A péssima experiência que tivemos com a CPMF

O gráfico acima mostra o volume arrecadado pela Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira de 1997 a 2007. Como se tratava de mais um imposto, que não substituía nenhum outro, ela foi de cara considerada com razão uma carga adicional nas costas do contribuinte. Como se vê no gráfico sua destinação inicial foi proporcionar caixa adicional às despesas com a Saúde, mas um ano depois a Previdência Social entrou na jogada, em um ano mais tarde foi a vez de um tal Fundo de Combate à Pobreza. A alíquota de 0,2% também oscilou de acordo com o pensamento do fiscal de plantão, chegando a 0,38%.

Os valores de arrecadação mostrados são bem inferiores aos que projetei porque várias movimentações bancárias estavam isentas de sua incidência: 
  • Salários
  • Transferências entre contas de mesma titularidade
  • Negociação de ações na Bolsa
  • Saques de aposentadorias
  • Seguro desemprego
além do que os pagamentos feitos pelos poderes públicos também estavam isentos, e sabemos que o Estado é sem dúvida o nosso maior empresário. Também deve se levar em conta que estamos falado de um ambiente financeiro que vigorou até 12 anos atrás.

Bom lembrar que a CPMF foi antecedida pelo IPMF que vigorou em 1994 com alíquota de 0,25% e que incidia sobre débitos nas contas bancárias, e que tinha como pretensão substituir o Imposto de Renda. Ele se mostrou mais eficaz que o IR porque gerava muito mais recursos, mas não foi adiante certamente por causa das pressões contra ele. 


Para finalizar resta lembrar que as mercadorias estão ficando cada vez mais invisíveis, as cadeias produtivas desapareceram. Livros, revistas, softwares, música, filmes, não precisam mais de entidades físicas locais para serem vendidos, mas o dinheiro que temos que pagar para obtê-los é facilmente detetado, e pode ser tributado. Ou seja, será de hoje em diante muito mais fácil tributar o dinheiro quando ele se move do que o produto quando ele é gerado ou consumido. 

Só que o Poder Executivo, através de seu Chefe Supremo, ignorando o seu Posto Ipiranga, já enterrou o microimposto, e o que teremos é uma simplificação que traz consigo o grave defeito de manter macroimpostos apenas mais simples. 

Comentários

  1. Meu colega de turma (ITA 67) me enviou o seguinte comentário:
    Parabéns pela coragem de jogar uma luz, ao menos em parte, sobre esse cipoal tributário. No caso do ICMS, me parece sonho partir para uma solução racional. E a Zona França de Manaus. E os outros regimes malucos. Vejo que vc aparenta ser favorável a um imposto sobre a movimentação financeira. Há situações em que, se aplicado, aniquila a operação que o origina (bolsa de valores, taxar transferências entre contas do mesmo titular). Isso é tão maluco qto. cobrar ICM (o S surgiu mais tarde) sobre transporte de mercadoria da fábrica para o depósito. Enfim, parabéns pela momentosa compilação e pela exposição de ideias.

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    1. Ao que eu respondi:
      Caro Solomon
      De fato a CPMF liberava a cobrança nos dois casos levantados por você. Só que eu acho que, a não ser que você seja um robô operando centenas de vezes em day trade, qualquer aplicador trocaria um IR sobre o lucro de 15/20%% por um microimposto de 0,2%

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  2. Comentário do meu amigo Ricardo Constantino:
    Claro e logico, mas o q faríamos com os quatrilões de fiscais que gravitam e infernizam as empresas no Brasil, e como ficariam os espertalhões que vivem às custas de subterfúgios vendidos aos que tem que pagar impostos, e o que fazer com os gestoras que anualmente isentam os “maus” pagadores???

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  3. Recebi do meu colega de Turma (ITA 67) Horácio o comentário:

    Querido amigo,
    Eu não me sinto apto a discutir matéria tributária, mas sei que a complexidade é monumental.
    O aspecto mais objetivo que eu vejo como base da discussão é que a tributação não existe por si, ou seja, ela é um dos lados da equação orçamentária.
    Desequilibrada, essa equação joga qualquer unidade de despesas em um quadro fora de controle.
    A equação recupera o equilíbrio com intervenção em um dos lados.
    A discussão tem que levar isso em conta.
    A causa dos desequilíbrios tem origem no lado do descontrole das despesas.
    Discutir o lado da solução sem olhar a origem do problema me parece uma insanidade.
    O ICMS, como o IPI, é um IVA e o contribuinte tem crédito pelo valor que vem carregado pelas operações anteriores.
    A Europa é IVA.
    Sem saber justificar, eu diria que há uma chance de Paulo Guedes estar certo em não priorizar a Reforma Tributária.
    Se ele consegue um espaço fiscal a reforma também terá espaço para reduzir a carga tributária e começarmos um círculo virtuoso.

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