Pular para o conteúdo principal

O Novo Império Chinês

O interesse moderno a respeito da China teve seu gatilho na decisão do Governo Americano de iniciar a reaproximação com aquele país, o qual acabara de passar por uma revolução que acarretou uma mudança profunda na sociedade chinesa, com um resultado bem controverso em função das vítimas que provocou. 

Segundo o Instituto Mises Brasil a revolução Chinesa, que completou 70 anos em outubro de 2019, "deu início ao mais cruel e sanguinolento regime governamental da história humana". Poucos ocidentais estão informados a respeito da realidade pela qual a China passou entre 1949 e 1976, quando a China esteve sob o regime de Mao Zédong. 

Os números são difusos, mas o que se avalia é que como resultado do Grande Salto para a Frente, programa de Mao impôs entre 1959 e 1961, o número de mortos variou entre 20 milhões e 75 milhões, sendo que no período anterior de 10 anos esse número foi de 20 milhões. A margem de erro é grande em função da pouca informação que era liberada, mas no total da era Mao as vítimas podem ter ultrapassado 100 milhões. 

Isso tudo foi resultado de uma ideologia européia gestada na Europa Oriental e imposta à terra de Lao Tsé (rima, ritmo, paz), do Taoismo (compaixão, moderação, humildade) e do Confucionismo (piedade, harmonia social, progresso individual), a qual negava a lógica, as leis econômicas, os direitos de propriedade, os limites do poder do estado, e que afirmava ser necessário criar um núcleo de pessoas iluminadas com poderes ilimitados para modificar todas as coisas. 

Essa ideologia perdurou até 1976, e a transformação ocorrida nos últimos 40 anos foi tão espetacular que, exceto pelo fato do Partido Comunista ainda estar no poder, toda essa tragédia como que caiu no esquecimento. A reviravolta na gestão da sociedade Chinesa se deu basicamente em função dos seus novos dirigentes terem dispensado aqueles princípios básicos da ideologia comunista no que tange a economia. 

O Império dominante do momento percebeu bem cedo que esse estado de coisas estava perto de atingir o seu ponto de exaustão, e viu na China uma oportunidade de ouro para fazer o que todos os impérios fizeram para decair: procurar um local onde ele pudesse produzir os seus bens a um custo muito menor que o que ele conseguia no seu território. O presidente na ocasião, Richard Nixon (1969 - 1974), a pessoa mais improvável para iniciar essa aproximação, encarregou o alemão naturalizado americano Henry Kissinger dessa tarefa. 

Em 1971 Kissinger embarcou no Air Force One, aterrizou no Paquistão, fez uma escala em Bancoc e desembarcou secretamente na China. Foi o início de um total de 50 viagens feitas em 40 anos, o que provavelmente o faz o ocidental, se não mais conhecedor da China, pelo menos mais influente junto à sua cúpula. Seu livro "On China (Sobre a China)", publicado em 2011, é referência sobre a China, sendo uma tentativa de explicar o pensamento chinês a respeito dos problemas de ordem internacional, a guerra e a paz, e os envolvimentos entre a China e os Estados Unidos ao longo da história.

Vejamos então o que pensa agora Kissinger, hoje com 87 anos: seu foco principal é o combate à ignorância do Ocidente em relação à China. Para ele tanto os Estados Unidos quanto a China têm como principal característica uma excepcional capacidade de empreender, um enorme patriotismo e, como todo império, um sentimento de superioridade em relação ao mundo como um todo. A principal diferença consiste na atitude missionária dos americanos, sua insistência em espalhar seus valores e ideais no mundo, muitas vezes até os impondo, enquanto os chineses não têm interesse nesse objetivo. Para eles o Império do Meio sempre foi e sempre será uma civilização superior, com papel central no mundo, mesmo quando invadido. O nome chinês para o seu país é Zhongguó, o Reino do Meio.



Como antídoto ao crescimento dessa nação desafiante ao atual império, Kissinger sugere a criação de uma especie de OTAN do Pacífico, reunindo as potências da região que se sentem incomodadas com o crescimento chinês.

Só que:
  • Segundo o livro até o século XIX a China só mantinha relações diplomáticas com a Rússia e se referia a qualquer povo fora do império como bárbaro. O que é verdade, mas oculta o fato de que a China e a Índia tinham enorme influência sobre a Europa bárbara desde que foi criada a Rota da Seda. Para dar uma ideia dessa influência basta citar o fato que o Taj Mahal, talvez o mais importante monumento já construído desde o século XVI, foi financiado com a prata que os espanhóis tiravam das minas de Potosí na Bolívia, e trocavam por mercadorias que vendiam no mercado europeu (Potosi chegou a ser a segunda cidade mais populosa do mundo ocidental, atrás apenas de Paris - https://pt.wikipedia.org/wiki/Potos%C3%AD)
  • Quem estudar a história do mundo num espaço de tempo mais amplo sabe que o centro do mundo só migrou para o Ocidente a partir da descoberta da América no fim do século XIX. O Império Romano, o único império ocidental até esse evento, nunca se preocupou muito com a Europa, e sempre focou suas atividades no Oriente, a ponto de, ao se aproximar o seu declínio, mudar sua sede para Constantinopla. Era de lá que mantinha relações comerciais com os grandes exportadores asiáticos, a ponto de o Canal de Suez ter constado dos planos romanos para facilitar esse comércio.
  • A China há tempos já levou a sua influência para bem longe do Pacífico. Isso se deu em função do grande desinteresse do Império atual em manter sua hegemonia nos chamados países em desenvolvimento. O investimento chinês no exterior deve chegar a US$ 2,5 trilhões nos próximos dez anos, com ênfase em projetos de energia, infraestrutura e recursos naturais, bem como comércio eletrônico, cultura, educação e turismo
Vejamos o caso do Brasil. O volume atual de investimentos da China aqui chega a US$ 80 bilhões, com mais de 300 empresas, sendo que 25 delas estão entre as 500 maiores do mundo. Além disso ela tem o maior número de consumidores do mundo, o que faz com que Brasil e China tenham uma relação comercial altamente complementar; tanto que por dez anos consecutivos a China é o nosso maior parceiro comercial, com uma balança que em 2018 chegou a US$ 110 bilhões. 

O investimento maior da China atualmente se chama One Belt, One Road (Um Cinturão, Uma Rota), a chamada Nova Rota da Seda. Essa iniciativa visa estimular a interconectividade do comércio, da infraestrutura, do investimento e de pessoal, e abrange 68 países. Como líder da América Latina e grande parceiro comercial o Brasil reúne condições de se tornar um grande parceiro na extensão da chamada BRI (Belt Road Investments) na região. 

A Pandemia que se instaurou agora com a COVID19 levou os Estados Unidos, e junto com ele praticamente todo o mundo Ocidental, a rever essa política de dependência de um fornecedor único, que se tornou evidente em função da importação em massa de todos os insumos necessários ao combate da Pandemia. Mas tem mais, há muitos anos os Estados Unidos não fabricam mais televisão (à exceção das insignificantes Insignia e Westinghouse), telefones celulares (as fábricas da Apple estão em Taiwan e na China), linha branca de eletrodomésticos (a GE vendeu seu setor para o grupo chinês Haier); ou seja, os Estados Unidos abdicaram da cansativa tarefa de produzir a um custo elevadíssimo ditado pelo seu alto padrão de vida e decidiram inicialmente transferir suas fábricas para o exterior, e em seguida passaram a vendê-las . 

O meu trabalho voluntário de revisor dos cursos de Artes e Humanidades da Khan Academy para a Fundação Lemann me levou a aprender a famosa curva que seguem todos os impérios que já existiram. Dentre os mais famosos podemos relacionar:
  • O Império Macedônio durou pouco e, com a morte prematura de seu fundador, se desmembrou em reinos menores comandados por seus generais ao longo da Ásia Menor, que duraram séculos. 
  • O Império Romano iniciou sua decadência a partir do instante em que ficou mais cômodo delegar o comando das suas legiões aos generais que ele tinha subjugado, e que passaram a ter grande influência nos destinos de Roma (sempre de olho na hora de retornar às suas origens).
  • O Império Árabe, que se estendeu desde a Península Ibérica até a Índia, sofreu um processo de autofagia que dura até hoje, com disputas sobre quem é o verdadeiro herdeiro de Maomé. 
  • O Império Otomano resolveu inovar. Um sultão certo dia decidiu assassinar toda a nobreza e a burocracia e substitui-la por jovens escravos recolhidos periodicamente ao norte de Constantinopla. A chamada Colheita destinava os jovens mais fortes a servir o exercito (os chamados janízaros), e os menos dotados iam servir à burocracia do estado. Para evitar que viesse a ser criada uma nova nobreza todos eram devidamente castrados, daí a necessidade da Colheita periódica. 
  • O Impérios Ibéricos nasceram em meio a uma mudança profunda em toda a Europa, que com o advento da Reforma tornou a parte setentrional muito mais evoluída que a meridional. O resultado foi uma imensa inflação decorrente da derrama de ouro e prata provenientes da rapinagem junto às colonias americanas, e uma decadência que propiciou o crescimento dos Impérios Inglês e Holandês.
  • A Inglaterra e a Holanda, que até tiveram a oportunidade de se juntar em uma empreitada comum, preferiram seguir separadas, e a perda da colônia mais importante, os Estados Unidos, iniciou a decadência inglesa. A revolta decorreu da iniciativa de aumentar fortemente os impostos para sustentar os instintos colonialistas da sede. Sempre me impressionou como era possível que os ingleses dominassem por tanto tempo a Índia, um continente mais de 20 vezes a sua população, com um contingente cerca de 50 mil pessoas. 
Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra, investiram contra a Ásia Oriental com força. Todas estabeleceram fortificações que se estenderam do Golfo Pérsico à Coréia, com a finalidade de proteger o comércio intenso, que mudou de mãos com o tempo mas se manteve impositivo junto à China e à Índia. O fato mais grave reportado foi a introdução do ópio pelos ingleses à China como forma de enfraquecer sua população. 

Essa profusão de impérios Europeus foi devidamente enterrada por eles mesmos. A Europa decidiu reunir todos eles numa guerra. Tomaram parte os seguintes impérios: Itália, França, Austro-Hungria, Alemanha, Rússia, Turquia Otomana, Grã Bretanha, Portugal, Holanda e até a novata Bélgica, invenção inglesa que levou sua experiência na América do Sul (Equador e Uruguai como portos ingleses no Pacífico e Atlântico Sul) para a Europa Continental. Nessa primeira guerra morreram 20 milhões de pessoas, mas não contentes com isso eles partiram para uma segunda guerra onde enterraram mais 65/85 milhões. Os impérios que haviam dominado o mundo por quatro séculos não sumiram de repente, mas foi o início do fim. 

O poder mudou-se para o outro lado do Atlântico. Do ponto de vista militar ele hoje é incontestável, mas nada impede que uma guerra eventual ponha fim ao planeta como um todo. Já do ponto de vista da economia a coisa anda preta. A lista dos principais devedores mundiais é preocupante:
  1. Estados Unidos - US$ 22 trilhões
  2. Reino Unido - US$ 8,5 trilhões
  3. França - US$ 5,7 trilhões 
  4. Alemanha - US$ 5,4 trilhões
A dívida americana tem como principais credores externos:
  1. China: US$ 1,2 trilhões
  2. Japão: US$ 1,1 trilhões
  3. Irlanda: US$ 330 bilhões
  4. Brasil: US$ 270 bilhões              (dados de 2018)
Os economistas reconhecem que não há como pagar essa dívida, a ponto de terem inventado uma chamada "teoria monetária moderna". Segundo essa teoria se a divida é definida pela moeda nacional do emissor, no caso os EUA, o pais não irá enfrentar os problemas decorrentes dela: o FED (Banco Central Americano) pode imprimir tantos dólares quantos quiser para amortizá-la (?). 

Ou seja, um país como o Brasil, que guarda o seu superavit comprando título do Tesouro Americano, ao requisitar o retorno do dinheiro aplicado não dará aos gringos esforço maior que o de pôr pra rodar sua impressora de dólares. É claro que essa situação não pode perdurar e o resultado vai ser uma enorme derrama de dólares em todo o planeta, o que vai forçar necessariamente a sua desvalorização, mais cedo ou mais tarde.

Ou seja, do ponto de vista econômico a China está com a faca e o queijo nas mãos, e o que devemos torcer é para o império atual não decida partir para o confronto. Para tanto a China já se aproximou da sua vizinha Rússia e está se preparando também nesse campo.

Voltemos ao assunto maior no que nos diz respeito: China ou Estados Unidos? Blairo Maggi, ex Ministro da Agricultura e um dos maiores produtores de soja do Brasil, não tem dúvida: "Sem a a China a agricultura do país não seria o que é. O país com potencial de se tornar o maior celeiro do planeta deve muito da sua posição ao volume que a China importa de nós. Não temos nada a ver com a posição política que cada país escolhe"

Logo, quem faz uso da sua posição no governo para minar esse relacionamento está muito mais a serviço do Império que do seu país. Enquanto escrevo esse Post leio no celular que a importação de soja dos Estados Unidos pela China disparou no segundo bimestre enquanto a exportação do Brasil sofreu uma queda de 26%. Os chineses compraram seis vezes mais dos americanos que de nós nesse período.

Será que isso tem alguma coisa a ver com as declarações do ex futuro Embaixador nos EUA, do Ministro da Educação e do nosso Chanceler?





Comentários

  1. Excelente texto, merece se transformar em livro. Dizem meus amigos chineses que a China perdeu a liderança nos últimos 300 anos mas logo, dentro de 100 anos, ela a recuperará. Que esta paciência chinesa se aplique também na espera de uma renovação na liderança míope que atualmente nos governa.

    ResponderExcluir
  2. Acho que o teu amigo fez esse prognóstico 90 anos atrás. Já no nosso caso é bom lembrar o que disse o Stephan Zweig: somos o país do futuro.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Civilidade e Grosseria

  Vamos iniciar este Post tentando ensaiar teatrinhos em dois países diferentes: País A O sonho do jovem G era ser membro da Força Aérea de A, mas na sua cabeça havia um impedimento: ele era Gay. Mesmo assim ele tomou a decisão de apostar na realização do seu sonho. O País A  não pratica a conscrição, ou seja, ninguém é convocado para prestar serviço militar. Ele está disponível para homens entre 17 e 45 anos de idade. G tinha 22 e entendeu que o curso superior que estava fazendo seria de utilidade na carreira militar. Detalhe: há décadas o País A tinha tomado a decisão de colocar todos os ramos militares em um único quartel, com a finalidade de aumentar o grau de integração e a logística. Isso significa a Força Aérea de A está plenamente integrada nas Forças de Defesa de A. Tudo pronto, entrevista marcada, o jovem G comparece à unidade de alistamento e é recebido com a mesma delicadeza que aquele empresário teria ao se interessar por um jovem promissor de 22 anos. Tudo acertado, surgi