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SOBRE O PRIVILÉGIO, A CRASE, O GERÚNDIO , E OUTRAS MAZELAS

Nos anos 1970 Blota Júnior era o mestre de cerimônias do Troféu Roquete Pinto da Rede Record, e eu resolvi assistir ao programa, não me lembro em que ano, porque um amigo meu ia receber um prêmio em nome da Fundação Padre Anchieta. Tratava-se do Professor Antônio Soares Amora, Diretor Cultural da Fundação. O Professor agradeceu pelo prêmio recebido e Blota Júnior respondeu com algo como "é um PRIVILÉGIO o programa receber uma pessoa que pronuncia PRIVILÉGIO da forma correta". Nos dias de hoje Blota Júnior iria se assombrar com a quantidade de repórteres que insistem em dizer "PREVILÉGIO" em vez de "PRIVILÈGIO". Eu ouso dizer que mais da metade assim o faz.

O prefixo PRÉ é o oposto do prefixo PÓS. Então temos por exemplo pré-pago e pós-pago, pré-vestibular e pós-graduação. No entanto o que significaria PRE-VILÉGIO? Na verdade a origem da palavra PRIVILÉGIO é latina e vem do Direito Romano. PRIVILEGIUM para eles era uma "lei excepcional concernente a um um indivíduo particular ou a um grupo de pessoas". Para nós do século XXI o conceito não mudou, e se estendeu um pouco, senão vejamos:

  • É preciso acabar com os privilégios dos políticos e dos juízes.
  • Eu tenho o privilégio de morar num local cheio de plantas.
Então uma pessoa privilegiada hoje tem direitos exclusivos a ela ou ao seu grupo, mas também pode usufruir de facilidades que só ela e sua vizinhança, ou seu estado físico, ou suas posses, ou seu conhecimento permitem. Privilégio nem sempre tem uma conotação negativa. Por exemplo uma fila especial para mim que tenho 80 anos é um privilégio mas não é uma injustiça. 

Minhas 3 palavras preferidas todas começam com a letra P: PRIORIDADE, PROCEDIMENTO e PRIVILÉGIO. Para mim é fundamental que elas sejam bem tratadas nos meios de comunicação e no dia a dia, e infelizmente com PRIVILÈGIO isso não ocorre, Justamente no primeiro dia do Torneio de Wimbledon um comentarista iniciou sua arenga dizendo do PREVILÉGIO de estar transmitindo esse grande torneio. Tempos atrás eu cheguei a um laboratório de análises clínicas para tirar sangue e a atendente me deu preferência na chamada, o que acarretou numa reclamação de uma pessoa que disse não concordar com esse tipo de PREVILÉGIO, já que eu não demonstrava nenhum indício de fragilidade. É assim que as nossa sociedade trata os idosos.

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Dias atrás fui a um evento em que jovens da minha vizinhança, em particular alunos e candidatos a alunos da UNICAMP, se apresentaram, entre eles um aluno de piano da minha esposa. Uma moça deu início à apresentação dizendo que a organizadora do evento "NÃO IA ESTAR PODENDO ESTAR com a gente", e que ela a substituiria.

Esta foi para mim a maior demonstração do absurdo a que chegamos ao tratarmos do uso do gerúndio no nosso dia a dia. Minha opinião é que o Telemarketing tem algo a ver com isso. Já existe até uma termo para isso: "gerundismo". Ele ocorre normalmente ao fazermos o uso de três formas verbais quando duas dariam conta do recado (no caso acima temos o uso de quatro formas verbais!). Exemplos de gerundismo:
  • Ele vai estar ligando pra você (ele vai ligar pra você é bem mais simples)
  • Eu vou estar entrando em contato contigo (eu vou entrar em contato contigo)
O Português de Portugal raramente emprega o gerúndio (Eu estou a estudar), e eu não sou um especialista no assunto, mas ele me irrita quando recebo um telemarketing que só sabe falar no gerúndio. 

Me repreendam se vou estar sendo radical demais ao longo deste texto..

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Uma coisa que muito me diverte (no mau sentido) é ler os comentários do noticiário de alguns sites da Internet, aqueles que nos proporcionam esta oportunidade. Na maioria das vezes o comentário nada tem a ver com a notícia. Dias atrás, no site Investing, me deparei com um comentário que reforça esta constatação. Tratava-se de um texto sobre o mercado de ações e os comentários eram sobre o Bitcoin. 

Aí veio uma resposta aos comentários: "Comentários nada HAVER com o texto!

È o que eu chamo de a maldição do verbo HAVER. Outro exemplo do mesmo site a respeito das idas e vindas da tal Reforma Tributária:

"Rodando mais que Uber com a gasolina R$ 4,39"

A minha impressão é que a pessoa se acha na obrigação de usar indevidamente o verbo HAVER por uma questão de status; usando HAVER a sentença assume uma certa pompa. Como a crase que veremos em seguida

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Saiu no Estadão: "Bolsonarista condenado por atentado à bomba queria código fonte da urna, que diz não saber o que é". Fico triste porque o Estado de São Paulo é o único jornal que compro e leio, por vários motivos, sendo um deles a preocupação com a língua Portuguesa (Vamos tirar camões do ostracismo, já dizia Jorge Loredo, o Zé Bonitinho, na antiga TV Rio). 

Mas aqui ele errou feio; é a primeira vez que a bomba, uma ferramenta empregada nos grandes atentados, é a vítima. A tal bomba era a que seria utilizada nas proximidades do aeroporto de Brasília, e mais erros foram cometidos ao longo da reportagem, como por exemplo "porque deixaram as redes sociais informar sobre esse código que dava a certeza se o Bolsonaro havia ganhado ou não? Complicado, não?

A crase não e um privilégio dos amadores. Estou lendo um livro muito interessante. e estou na página 120 e já me deparei com 5 crases no mínimo suspeitas:
  • Página 31: "Em 1763, elevada à capital do recém criado Vice-Reino do Brasil, abrigou sete vice-reis".
  • Página 35: "Os primeiros ônibus, ainda chamados de auto ônibus, à gasolina, tinham começado a rodar em 1908". Se "ao diesel" é errado, "à gasolina" também é.
  • Página 36: "A resistência aos automóveis, a princípio forte - o poeta Mario Pederneiras os chamava de "fogões à gasolina...'" (sempre a gasolina).
  • Página 88: "O primeiro foi Théo-Filho, em 1916, por ter reagido à bala a uma tentativa de agressão..." (à bomba, à bala, ....)
  • Página 103: "Mario Pederneiras, precursor do verso livre e primeiro poeta do Brasil a escrever poesia diretamente à máquina" (aqui parece que a máquina é a homenageada; antes ele escrevia poesia ao lápis).
Vamos parar por aqui. Senhor revisor, mais atenção por favor!

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"HAMILTON DE SÁIDA DA MERCEDES? Piloto inglês de Fórmula projeta futuro após MAL desempenho com a Mercedes no GP da Inglaterra".

Manchete do "Blog do Torcedor" na Internet. Ou seja, se o seu desempenho tivesse sido BEM, tudo BOM.

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"5 filmes da Netflix que previram o futuro de forma ASSUSTADORAMENTE".

Aqui foi na "Bula", revista quem conseguiu a proeza de errar de forma ASSUSTADORA

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"Poliglota, Maria revelou possuir DESCENDÊNCIA portuguesa, indígena e italiana"

O site "Itatiaia" cometeu a indelicadeza de revelar que a recém eleita Miss Brasil é a matriarca de uma prole que inclui indígenas, portugueses e italianos. Como ser Miss Brasil com este currículo? O certo não seria ASCENDÊNCIA?

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"Filmaço da Netflix vai TE ensinar sobre o amor próprio e levantar o SEU astral"

Aqui o "Masterdica" nos proporciona um bom exemplo de como se inicia uma sentença na segunda pessoa e se termina na terceira pessoa (ou vice versa, poderia ser algo como "Filmaço da Netflix vai LHE ensinar sobre o amor próprio e levantar o TEU astral". 

Uma pessoa muito chegada a mim diz que eu sou radical demais, e que isso já está aceito na nossa linguagem comum, e que não há nada mais a fazer a respeito.. Para mim essa é uma forma de irmos paulatinamente degradando o nosso idioma, por sinal o terceiro mais falado do mundo ocidental, perdendo apenas para o Inglês e o Espanhol. Para mim só valem essas duas alternativas: 

"Filmaço da Netflix vai TE ensinar sobre o amor próprio e levantar o TEU astral", ou
"Filmaço da Netflix vai LHE ensinar sobre o amor próprio e levantar o SEU astral".

O tratamento respeitoso na terceira pessoa evoluiu de VOSSA MERCÊ para VOSMECÊ e para VOCÊ:

VOSSA MERCÊ me permite
VOSMECÊ me permite
VOCÊ me permite

Então se VOCÊ quer usar VOCÊ, DEVE permanecer na terceira pessoa verbal. Se TU quiseres usar TU, DEVES permanecer na segunda pessoa verbal.  

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CONSERTA-SE CALÇADOS para mim é outra tragédia (consertar ou concertar?). Muitos linguistas já se renderam a ela, mas eu insisto em que a palavra "se" torna a frase passiva: CALÇADOS SÂO CONSERTADOS, logo o certo é CONSERTAM-SE CALÇADOS. 

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Monteiro Lobato é um escritor que me ensinou o prazer da leitura. Recentemente li que ele foi um grande defensor da ortografia simplificada. Vejam o que disse Emília por exemplo em Emília no País da Gramática:

- Senhor  Sabbado,  venha  cá. Diga-me: por que é que traz no lombo  dois  BB quando poderia passar muito bem com um só?

- É por causa da bruxa velha. Como venho do latim sabbatum, que, por sua vez, veio do hebraico Sabbat, ela não consente que eu me alivie deste inútil. Há séculos que trago no lombo semelhante parasita, que nenhum serviço me presta. O meu sonho é ver-me livre deste trambolho.

Emília arrancou-lhe o B inútil e disse:

- Pois fique com um B só. Estou aqui representando os interesses das crianças, que constituem o  futuro da humanidade, e as  crianças preferem  sábados  com  um B só. Vá passear e nunca mais me ponha o segundo B!

Outra coisa que percebi nos seus escritos para adultos foi a sua obsessão em evitar ao máximo o uso dos acentos:


Agora temos muitos Monteiros Lobatos por aí com a ideia de que a pontuação é uma ferramenta inútil, que só atrasa a digitação no "smartphone", e temos coisas do tipo:

senhor  sabbado venha  cá digame por que é que traz no lombo dois bb quando poderia passar muito bem com um só ... é por causa da bruxa velha como venho do latim sabbatum que por sua vez veio do hebraico sabbat ela não consente que eu me alivie deste inútil há séculos que trago no lombo semelhante parasita que nenhum serviço me presta o meu sonho é ver-me livre deste trambolho ... emília arrancou-lhe o b inútil e disse ... pois fique com um b só estou aqui representando os interesses das crianças que constituem o futuro da humanidade e as  crianças preferem  sábados  com  um b só vá passear e nunca mais me ponha o segundo b

Dá pra entender mas eu cheguei a uma fase da vida em que, como diz Caetano, "à mente apavora o que ainda não é mesmo velho, nada do que não era antes quando não somos mutantes".

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Décadas atrás eu me atreveria a propor algo revolucionário. Coisa do tipo:
  • CA CE CI CO CU, onde CE CI substituiria QUE QUI. Estaria abolido o Q e o K.
  • SA SE SI SO SU, onde o Ç  e o SS também seriam eliminados.
  • ZA ZE ZI ZO ZU.
  • XA XE XI XO XU eliminariam o CH
  • Nada de acentos.
Ce tal esa proposta? Vose aprovaria? Talvez nao fose o cazo, eu estou sendo muito xato com esa proposta. Mas eu axo que em breve teremos algo paresido. 










Comentários

  1. Muito bom blog! Correto e divertido! Mas um alerta que precisaria ser mais divulgado. Embora a língua mãe tenha suas regras, está sendo modificada por erros e equívocos bem ou mal intencionados e alguem tem de questionar. Legal Luís!

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  2. Excelente o seu blog!! Fico até preocupado em escrever a coisa certa! Certeza é ter a cultura ! Abraços, e obrigado pelo fim de semana!!

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  3. Tristemente divertido. Hesitei um pouco no atentado a bomba depois de ver no Google um empate entre com ou sem crase. Não deveria haver dúvidas .
    Atentado ao obus há de ser duplamente punido: pelo ato e pelo escorregão gramatical.

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  4. “ sisqueci” de assinar-Alex T 67

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    Respostas
    1. Estava esperando a opinião da pessoa mais gabaritada para opinar sobre este Post. Obrigado, caro colega.

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  5. Excelente e divertido tema, para não dizer trágico com relação ao vernáculo. Como ex-aluno do Colégio do Caraça, mantenho-me fiel aos ensinamentos de Pe. Antônio Vieira. Parabéns pela dedicação ao seu blog, Mestre Fontenelle.

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