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A pobre Guatemala, a United Fruit, e a CIA

Minha esposa é uma leitora compulsiva; lê de tudo. Agora mesmo ela  está lendo POR QUE O MUNDO EXISTE?, de Tim Holt, um livro que eu comprei e só consegui ler a metade. Isso após ter lido um thriller ambientado na Guerra Fria que ela ganhou de uma amiga, que se desfez da sua biblioteca por ter decidido mudar de sua imensa casa para um apartamento bem menor.

O livro se chama CONTAGEM REGRESSIVA (Code to Zero), de Ken Follett. Ela após terminar de ler comentou comigo sobre o fato do autor por duas vezes mencionar o envolvimento da CIA na deposição de um governo legitimamente eleito na Guatemala. Interrompi o que estava lendo, e por ter muito interesse nesse assunto, peguei o livro para ler.

A primeira referência à Guatemala se dá na página 102 (Editora Arqueiro, 2018). Há uma reunião da CIA para decidir a respeito de uma forma de combater um tal Fidel Castro em Cuba:

- Se mandássemos um punhado de sujeitos durões das Forças Especiais, conseguiríamos varrer o exército de Fidel em menos de 48 horas.

- Poderíamos manter a operação em segredo?

- Não, mas poderíamos disfarçá-la como um conflito local, como fizemos com o Irã e a Guatemala. 

- Desculpem se for uma pergunta idiota, mas por que é segredo o que fizemos no Irã e na Guatemala?

- Não queremos divulgar os nossos métodos, obviamente.

- Desculpe, mas isso é idiotice. Os russos sabem que fomos nós. Os iranianos e os guatemaltecos sabem que fomos nós. Raios, na Europa os jornais disseram abertamente que fomos nós. Ninguém foi enganado, a não ser a população dos Estados Unidos. Agora, por que queremos mentir para ela?

- Se tudo fosse revelado, o Congresso abriria um inquérito. Os malditos políticos iriam perguntar se temos direito, se era legal o que foi feito dos pobres agricultores iranianos de merda e os colhedores de banana cucarachas.

- Talvez não sejam perguntas tão ruins. Nós fizemos de fato algum bem à Guatemala? É difícil diferenciar entre o regime do Armas e um punhado de gângsteres.

- Para o inferno com isso! não estamos aqui para alimentar iranianos famintos nem dar liberdades civis aos camponeses latino americanos, pelo amor de Deus. Nosso trabalho é promover os interesses americanos, e foda-se a democracia!

- Obrigado. Fico feliz por você ter deixado isso claro.

Ken Follett, Contagem Regressiva, 2018, pág. 102/103

 O livro em resumo tem como protagonistas um casal cujo marido é um engenheiro da NASA e a esposa é uma funcionária da CIA, e aqui vai o spoiler: ela é uma agente dupla e tem o cargo de coronel na KGB. Após muita peripécias dignas de um livro que quer virar filme de ação, vem a pergunta final do marido:

- O que fez você se decidir, afinal?

- Você não vai acreditar. Foi a Guatemala. Aquele povo miserável só queria escolas para os filhos, um sindicato para protegê-lo e a chance de trabalhar para viver. Mas isso aumentaria em alguns centavos o preço das bananas, e a United Fruit não queria isso, então o que os Estados Unidos fizeram? Derrubaram o governo deles e colocaram uma marionete fascista na presidência. Na ocasião eu trabalhava na CIA, por isso sabia da verdade. Isso me deixou furiosa, saber que aqueles homens gananciosos em Washington eram capazes de acabar com um país pobre e não responderem por isso, depois contar mentiras a respeito do que tinha acontecido. Além disso, fizeram com que a imprensa informasse aos americanos que havia sido uma revolução dos anticomunistas locais.

Ken Follett, Contagem Regressiva, 2018, pág. 304/305

------pano------

Já conhecia esta história através das minha leituras do mesmo Gore Vidal que deu a sua versão do 11 de Setembro no meu Post anterior. Vidal tinha comprado um convento arruinado por um terremoto em Antigua, na Guatemala. Segundo ele o ditador Jorge Ubico tinha sido deposto devido a uma greve geral contra a rigidez do seu regime. Os trabalhadores se organizaram em sindicatos e foram formados partidos políticos.

Em 1944, Juan José Arévalo, um professor de filosofia, à frente de uma coligação democrática liberal, foi eleito presidente. Na sua administração promulgou uma nova Constituição, instituiu umas reformas sociais e políticas que favoreciam trabalhadores urbanos e camponeses, retirando poderes dos grandes latifundiários e dos militares. Arévalo também renovou o pedido de anexação das Honduras Britânicas, atual Belize. 

Unidades da Marinha Britânica foram enviadas para impedir a invasão guatemalteca, e Arévalo fechou a fronteira com as Honduras Britânicas e fez um protesto junto às Nações Unidas e à União Panamericana, sem sucesso. Mesmo tendo sofrido 20 tentativas de golpe Arévalo concluiu o seu mandato.

Em 1950 se elegeu o Coronel Jacobo Arbenz Gusmãn, o qual continuou a política de reformas de Arévalo, e o Congresso aprovou uma lei de reforma Agrária, que veio a afetar os negócios da United Fruit no país. 

Vidal tinha feito amizade com um político jovem chamado Mário Monteforte Toledo. Mário era presidente do Congresso e tido como futuro presidente da República. Ele era socialista e Vidal na época ainda mantinha uma linha ideológica ditada por sua origem conservadora. Num dos muitos papos que tiveram Vidal se lembra do seguinte:

- Talvez não duremos muito tempo mais.

- Nós quem?

- Nosso governo. Em algum momento precisamos levantar a nossa receita. O único lugar onde se pode levantar alguma receita é el Pupo.

El Pupo, ou o Polvo, é como era conhecida a United Fruit Company, com receita duas vezes maior que a do Estado guatemalteco. Os trabalhadores tinham estado em greve pedindo um salário de US$ 1,50 por dia.

- E o que vai impedír?

- O seu governo. Quem Mais? Eles mantiveram Ubico no poder durante todos esses anos. Agora estão se preparando para nos substituir.

- Por que deveríamos ligar para o que acontece num país pequeno assim?

- Empresários. Como os donos da United Fruit, Eles ligam. Eram os que pagavam pelos nossos políticos. Ainda pagam pelos seus. Ora, se um dos seus grandes senadores não está na diretoria da el Pupo? Ele tem três nomes; é de Boston, acho eu...

- Henry Cabot Lodge? Não acredito.

Gore Vidal, Sonhando a Guerra, pág 107/108 

Essa conversa deu a Gore Vidal assunto para um livro que foi publicado no Brasil sob o nome VERDE ESCURO, VERMELHO VIVO, pela Editora Record. Ele conta a história de um jovem veterano de guerra americano que se une a um general em função da amizade que tinha com o filho desse general em uma república "de banana". Como o assunto não era de interesse na sociedade americana, o livro foi um fracasso de venda. No livro o Verde Escuro era a farda do general, o vermelho era a possibilidade de um comunista tomar o poder.

Anos após a publicação do livro, o Senador Lodge deu explicações a respeito do acontecido na Guatemala. O argumento foi que o sucessor de Arévalo, o Coronel Arbenz, era comunista. O que aconteceu de fato foi que ainda em seu mandato Arévalo mandou desapropriar terras não produtivas da United Fruit, e as entregou a cem mil famílias. Foi paga pelas terras uma quantia justa baseada na avaliação delas para fins de tributação (o aqui chamado valor venal). Em 1954 a CIA entrou em ação, formou um exército local e bombardeou a capital, Guatemala. O embaixador americano John Peurifoy pediu que o chefe do Estado Maior se tornasse presidente após a renúncia de Arbenz, mas este se recusou dizendo que "seria melhor que o próprio embaixador ocupasse o assento presidencial".

O cargo foi dado ao chefe do chamado Exército de Libertação, o coronel Carlos Castilho Armas, de forma provisória. Armas foi assassinado em 1957, e uma junta militar tomou o governo. Em 1958 foi nomeado pelo Congresso o General Miguel Ydígoras Fuentes, o qual foi derrubado pelo seu ministro da Defesa, General Enrique Peralta Azurdía, em 1963.

De 1966 a 1974 civis governaram a Guatemala sem conseguir impor suas políticas porque os militares continuavam controlando totalmente os corredores do poder. Em 1974 e 1978 dois generais "eleitos" governaram, e em 1982 um candidato civil eleito foi imediatamente deposto por um general que passou a governar com plenos poderes, Efrain Rios Monti.

Entre 1970 e 1982 o país foi varrido por uma guerra civil entre guerrilheiros castristas e sandinistas, e Esquadrões da Morte paramilitares, e recebeu como recompensa os tremores de terra mais violentos já registrados na América Central em 1976, A descoberta de petróleo na década de 1970 trouxe de volta a crise com as então Honduras Britânicas, o que levou, sob protesto da Guatemala, a Inglaterra a dar independência ao território em 1981, o qual passou a se chamar Belize. 

O rodízio de generais durou até 1985, quando foi eleito o primeiro presidente civil nos últimos 15 anos, Marco Vinicio Cerezo, que promoveu o ressurgimento dos esquadrões da morte, o que teve como resultado o retorno das guerrilhas.

A instabilidade política continuou até 1995 com a eleição do conservador Alvaro Arzú, o qual pôs fim a 35 anos de guerra civil com um acordo de paz, e afora alguns escândalos de corrupção, a coisa parece ter finalmente retomado o duro caminho da redemocratização, interrompido pela CIA 4 décadas atrás na defesa dos interesses da United Fruit no país. 

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A United Fruit Company foi uma empresa que sempre povoou a minha imaginação na juventude. Ela estava ligada ao apelido de República de Bananas que tinham os países da América Latina. A chamada UFCO era conhecida na América central como "La Frutera" e "El Pulpo", e foi fundada em 1899, quando os Estados Unidos estavam redefinindo seu papel imperial. Não havia mais o que fazer na América do Norte, após a chegada ao Pacífico, com a compra das colônias francesas e a tomada de imensas áreas, à população nativa, à Espanha e posteriormente ao México (o que eles chamavam de Destino Manifesto). 

Após a Primeira Guerra Mundial essa ideia se consolidou de forma definitiva, e os interesses da UFCO casavam com essa estratégia imperialista, pelo fato da América Central estar próxima e pulverizada por uma série de pequenos países, mas com uma grande riqueza de recursos naturais. Não fazia sentido o domínio territorial por parte de um país empenhado em promover a então chamada Liga das Nações, e o que se decidiu foi a opção pelo domínio econômico através de empresas nos moldes da UFCO, as quais passariam a contar com o total apoio do governo na defesa dos seus interesses, se necessário intervindo politicamente na região.

Os tendões deste Polvo (Pulpo em espanhol) se estendiam da Guatemala à Colômbia, sendo que na Guatemala foi criada uma enorme produção de bananas, as quais através de uma grande campanha publicitária caíram no gosto dos americanos, gerando enorme lucro. Esse lucro advinha também na manutenção de uma política de quase escravidão da massa trabalhadora, política essa que precisava contar com a anuência dos governos locais.

Para aqueles que já leram Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, vale a pena lembrar a cena na estação ferroviária de sua cidade Natal, Aracataca, onde três mil trabalhadores foram receber as autoridades locais e quem chegou foi o exército, que abriu fogo contra a multidão, Em telegrama, o embaixador americano Jefferson Caffery informou que "tenho a honra de informar que o assessor jurídico da UFCO aqui em Bogotá disse ontem que o total de grevistas mortos por autoridades militares colombianas estava entre 500 e 600".

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Conclusão: O que temos que entender é que o Império Americano tem a América Latina como um quintal onde tudo pode ser feito com o apoio do governo aos empresários, e que a mídia americana é a ferramenta poderosa na perseguição dos seus interesses econômicos. 

Ontem eram as bananas, hoje é o X. Agora mesmo li que bloquear o X é o caminho para a total queda dos investimentos americanos aqui. O Brasil para o Elon Musk é uma espécie de cereja do bolo, um mercado faminto de meios de comunicação, campo fértil para o produto que a Starlink oferece. 

Pois bem, a Starlink acaba de anunciar que irá bloquear o X no Brasil, conforme determinado pelo ministro Alexandre de Moraes. O pior para o Brasil agora seria se ajoelhar para um megalomaníaco que acha que pode agir como se isso aqui ainda fosse uma república de bananas. O X tem representantes em todos os países ditos desenvolvidos, e a lei que requer essa representação no Brasil é certa e deve ser cumprida.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c204y1zdv3yo


Comentários

  1. Nunca é demais relembrar o mito da Caverna de Platão e confirmar se não estamos vendo meras sombras de uma realidade intencionalmente preparada para nos iludir. Esta talvez fosse a essência de um ceticismo abrangente e liberador.

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    1. Entendo que o volume de situações como as que ocorreram na América Central com a United Fruit se repetiram tanto, e com tanta intensidade, no nosso continente, que não é o caso de entendermos que essa narrativa não condiz com a realidade. Se é isso que você está tentando concluir.
      Agora mesmo o nosso país vai passar por um ataque externo violento contra as nossas instituições, no puro interesse de uma empresa estrangeira, já de antemão apoiado por uma parcela da nossa sociedade.
      O paralelo com o acontecido na Guatemala com as bananas para mim é evidente. Antes tivemos a United Fruit, agora a X / Starlink.

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  2. Perfeito o paralelo traçado entre a República de Bananas e o X/Starlink...e o Musk nem é americano...

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