Os especialistas daqui procuraram uma tradução menos realista para o termo "ENSHITTIFICATION". Encontraram "DECADÊNCIA DA PLATAFORMA", mas SHIT é uma palavra que todos nós sabemos traduzir. Enshittification foi criada por Cory Doctorow para mostrar uma evidência padrão a todos os produtos e serviços online, que é a queda da sua qualidade ao longo do tempo.
O que nós os pobres usuários observamos é que a tradução "soft" adotada, a decadência lenta das plataformas, é verdadeira, e ocorre em função da priorização dos retornos trimestrais em detrimento de um serviço público minimamente aceitável. Segundo o Site PERSUASION, que eu sigo com frequência, isso se dá em função do modelo de negócio adotado, onde ética dá lugar à monetização, a qual resulta no EMERDAMENTO. O resultado disso não se restringe à piora da Internet, mas sim à piora da Sociedade em geral.
A chegada da Internet prometia um futuro do conhecimento ao nosso alcance, o que parecia algo tão revolucionário quanto a imprensa de Gutemberg. No entanto o que estamos vendo hoje é que o turbilhão de informação que foi colocado à nossa disposição, em vez de dar oportunidade à verdade, resultou num enorme aumento de ruído e de fraude. A tecnologia prometeu a verdade à disposição do usuário, livre de fronteiras, mas com o tempo a missão das plataformas caiu no lugar comum de maximizar o engajamento, manter o cliente navegando, comprando e reagindo.
Sempre olhei o engajamento com enorme suspeição, em qualquer área da atividade humana, porque ele cresce na medida em que as nossas partes menos racionais são despertadas. Justiça seja feita, as plataformas não inventaram a polarização, elas não criaram os nossos preconceitos. Elas apenas e tão somente viram uma oportunidade de industrializar o que existe de pior em nós, numa escala nunca antes vista. Os chamados cliques geram um crescimento onde apenas os extremistas são bem sucedidos, e com isso geram dinheiro, porque a lealdade quando maior mais alimenta a receita.
Na verdade a Internet não trouxe nada de novo. A mídia sempre foi um negócio. Só que se você não estivesse de acordo com a linha adotada por uma emissora de rádio ou de tv, ou um jornal, ou uma revista, você simplesmente cancelava aquela fonte de informação de mão única . Havia uma limitação: capacidade do cidadão reagir de forma positiva ou negativa era pequena. Havia restrições: o canal precisava de um patrocinador, uma anunciante, que tolerasse a sua posição.
Um formador de opinião, para triunfar, tinha que contar com um canal de informação e de um anunciante que tolerassem suas posições. Com a Internet ele passou a depender apenas de cliques. Até aí tudo bem, só que surgiu um elemento novo nessa receita: o algoritmo, e as plataformas arquitetaram um algoritmo que, em vez de promover a verdade, promoveu o lucro. Com isso foram quebrados conceitos dos quais as sociedades civilizadas dependem para sobreviver: a utopia de que as pessoas podem discordar, que a verdade é o resultado de um acordo social, e que esse acordo é possível.
O caminho seguido foi exatamente o contrário, quem estava em desacordo com a sua opinião passou a ser uma ameaça, e cada oponente se tornou um inimigo. As opiniões mais absurdas, quando lançadas na Internet, passaram a encontrar milhões de adeptos. Vejamos dois exemplos:
- Ptolomeu, cientista grego que viveu em Alexandria de 100 a 170 da era cristã, através da diferença da medida da sombra de uma vara na vertical ao longo do rio Nilo, concluiu que a Terra tinha o formato esférico, e com grande precisão mediu o raio dessa esfera. O tempo passou e a ideia da Terra esférica estava em desacordo com a palavra da Bíblia, que considerava que o centro do universo era a Terra. Muitas vidas foram queimadas na fogueira por isso. Hoje qualquer maluco que entende que a Terra é plana entra na Internet, dá a sua opinião e imediatamente arrebanha milhões de seguidores.
- Na Idade Média houve um período de perseguição e execução de pessoas, principalmente mulheres, sob a acusação de bruxaria, a chamada Caça às Bruxas. Estima-se que entre os séculos XIV e XVIII ela resultou na morte de cerca de 50 mil pessoas, principalmente queimadas na fogueira. Hoje nos Estados Unidos foi criada a QAnon, uma teoria que alega haver uma cabala secreta da esquerda formada por adoradores de Satanás, pedófilos, e canibais, conspirando com base num plano secreto chamado "Estado Profundo". A QAnon conta atualmente com mais de 4,5 milhões de seguidores em 15 países, incluindo o Brasil.
Como vimos acima com esses dois exemplos, no exato momento em que temos à disposição o maior volume de informação da história, acabamos por nos desconectar da verdade, e isso aconteceu por conta dos algoritmos.
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Para a Democracia subsistir neste ambiente, as instituições têm que funcionar. O primeiro golpe contra elas (o Judiciário, o Legislativo, a Mídia), nenhuma delas perfeita já que emergem de uma sociedade de humanos, parte sempre do candidato a tirano. Inicialmente o que acontecia era que tínhamos um espectro ideológico estreito, mitigado pelo monoteísmo que ensinava que a figura do Rei era a representação do Deus único na Terra.
O Iluminismo surgiu para nos libertar dos dogmas, e a autoridade suprema passou a ser colocada em questão, e permitiu às classes menos favorecidas fazer valer sua voz, e tivemos assim uma divisão ideológica séria, o que resultou nos Conservadores de um lado, dizendo que as coisas não devem mudar para um projeto do qual não conhecemos os resultados, e os Liberais que defendem a mudança para que se evite um rompimento social grave.
Essa divisão prevaleceu e as sociedades mais evoluídas aprenderam a conviver com ela. O resultado foi uma grande diminuição da desigualdade onde esses adversários conseguiram chegar a um acordo. Onde esse acordo não ocorreu aconteceu um fato curioso: os Conservadores, cientes de que a ruptura social era iminente em função do crescimento da desigualdade, passaram a ser os agentes da mudança. Isso é estranho, mas vamos convir que Bolsonaro, Trump, e outros iguais, jamais deveriam ser chamados de Liberais, pró mudança, e são eles os hoje os arautos delas, com uma ênfase total no autoritarismo.
Então fica entendido que as democracias aceitam e incentivam que as pessoas discordem, e as eleições existem para substituir a linha vencedora anterior e testar uma alternativa. O perigo surge quando são formados grupos cuja lealdade não é a um projeto social amplo, quando a competição se torna uma disputa de soma zero, onde não há qualquer concordância entre os grupos antagônicos. Aí surge o Homem Forte, que surge não apenas porque engana a sociedade, mas também pelos anos de desgaste a que ela foi submetida. Ele nem precisa tomar o poder que lhe é entregue gratuitamente.
E o que o Emerdamento tem a ver com isso? Tem a ver que a. verdadeira guerra não é aquela entre a esquerda e a direita, mas sim entre os que tentam preservar a liberdade e aqueles que pressionam para a ruptura, a qual por sua vez tem um apelo maior que a esperança. A ruptura por sua vez, quando alimentada pela sede pelo lucro, em vez de queimar e purificar não deixa mais que cinzas.
Os grandões da tecnologia que fundaram as plataformas, que defendem a liberdade de expressão, construíram sistemas que premiam a indignação, o tribalismo e a provocação, e desprezam a reflexão, a tolerância e a persuasão. Daí termos que reconhecer que o Emerdamento está acontecendo mais do que conosco, ele acontece através de nós, para o lucro dos colecionadores de iates. Sempre que damos um "like" estamos votando no sensacionalista, no inflamatório, e desprezando a substância e a informação, criando com isso um futuro sombrio às nossas custas.
Já que as elites tecnológicas resolveram seguir este caminho, cabe a nós iniciar a construção de espaços onde possamos testar a nossa capacidade de expor nossas ideias. A aceitar a discordância e a razão como predominantes sobre a heresia e a virulência. A tarefa é difícil, mas Yuval Harari dá uma luz sobre o caminho a seguir.
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Quando iniciei meu relacionamento com as plataformas me lembro de ter optado por uma que, a exemplo da eletricidade, da água, da televisão que consumia, também tinha um custo. Eu pagava uma taxa mensal para ter acesso a uma plataforma de e-mail. Daí surgiu o Google me dizendo que a sua plataforma era gratuita, e eu migrei para ela.
Em maio de 2012 me surgiu a ideia de criar um espaço onde, com critério e sem anúncios (sempre recusei as ofertas), tento colocar, na medida do que permite a minha (in)competência, as minhas posições. Foram 157 meses com 319 Postagens e 198 mil acessos, 525 comentários, sempre contando com o suporte do Google. Ou seja as plataformas podem perfeitamente ser usadas para destruir e para construir pontes; basta que nos recusemos a ser ferramentas para elas.
O que Harari sugere em seu magistral livro Nexus é que plataformas sejam criadas sob o compromisso de privilegiar tudo o que contribuir para a harmonia e a concórdia. Segundo ele para que isso ocorra basta abandonar a sede pelo lucro. Existem exemplos bem sucedidos de iniciativas assim, e a Wikipedia é um deles. Apenas a edição em português possui 1.148.759 artigos e 8.252 editores ativos, onde podemos encontrar informação de boa qualidade.
Quando os grandões das plataformas resolveram partir com tudo para dominar a Inteligência Artificial, não contaram com o aparecimento de uma voz dissonante vinda da China. A empresa Hangzhou DeepSeek Artificial Intelligence foi criada em maio de 2023 com menos de 200 empregados, desenvolveu modelos de linguagem de grande porte (LLMs) em código aberto. Seu desempenho é superior aos modelos de grande porte, a um custo mínimo com um consumo de 10% de potência computacional.
A disponibilização dos seus algoritmos em código aberto foi um golpe mortal nas empresas dominantes até então, e permitiu o acesso livre para a criação de novos projetos. O lançamento do DeepSeek em janeiro passado provocou uma queda trilionária no mercado de ações. A Nvidia, que projeta unidades de processamento para a IA, teve uma queda de US$ 600 bilhões de seu valor de mercado em um único dia.
A chegada da DeepSeek foi o farol que faltava para as sociedades que não dispõem dos investimentos necessários a possuir a sua própria IA. A China com muita visão colocou à disposição do planeta uma ferramenta para fazer frente à ameaça quer pairava sobre ele, de se tornar escravo dos grandes proprietários da informação.
Os detratores da ferramenta não tardaram a surgir. Como pode um governo totalitário disponibilizar informação confiável? Para responder a essa pergunta sugiro o seguinte teste:
- Instale o DeepSeek no seu celular.
- Pergunte ao DeepSeek se a China é uma Democracia
Você vai se surpreender com a resposta.
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Muito bom, como sempre Fonte.
ResponderExcluirEu mesmo me sinto um peixe fora d'água no Brasil, se eu disser que não sou bolsonarista, todos vão me acusar de lulista. Pelo amor de Deus será que não nada de melhor??....
Será que tenho que optar entre esses dois seres abomináveis?
Figueira pra mim também!!
Este é um tema de enorme importância e o melhor que podemos fazer é discutir as diversas facetas do monstro. Uma delas e , a meu ver, a pior e mais daninha é utilizar as redes para desviar a atenção dos problemas mais obvios. Uso um exemplo do teu artigo: o conceito de " deep state" como teoria de conspiração alentada por textos absurdos como este de feitiçarias tipo QAnon, acima mencionado. O deep state é indubitávelmente a expressão que reflete o domínio ou lobby do complexo industrial militar nas tomadas de decisão do governo americano, com suas guerras e desestabilização de governos independentes do "sistema", e muito provávelmente usam de "manobras diversionistas" para tirar o foco do poder maléfico que exercem. É de se esperar que exista realmente uma coordenação como um sindicato destes interesses trilionários.
ResponderExcluirMuitos outros exemplos, alguns bem primitivos, como os líderes do PT reclamando da taxa de juros de 15% que o seu próprio governo decide no Banco Central com diretores nomeados por eles mesmos. Quem vai se convencer destas lágrimas de crocodilo? Assim vai o barco nesta terra de Cabral com seus posts tão bizarros.
Meu amigo e colega Sergio Cavalcanti escreveu:
ResponderExcluirMuito bom blog porém com um pequeno erro: quem primeiro mediu o raio da Terra foi Eratóstenes de Cirene e não Ptolomeu.
Pai, nós já sabíamos disso! Lembra daquele projeto de ciências que fizemos na quinta série! 😂
ExcluirMuito bom Fontenelle.
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