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Um pouco de História I

A crença comum é a de que a História é uma fotografia das épocas passadas. Isso está longe da verdade: a História é uma interpretação feita pelo historiador, a serviço dos poderosos, do passado de uma sociedade, com a intenção de moldar a época presente.

Embora a minha família tenha raízes em uma região escondida do sul do Maranhão, o acaso fez com que ela viesse a ser coadjuvante de dois episódios importantes da História do Brasil cuja versão oficial é uma total distorção daquilo que relamente ocorreu: a Guerra da Borracha e a Coluna Prestes.

Hoje vou tratar da Guerra da Borracha, mais recente, mas da qual estou melhor documentado, já que meu Pai Abílio foi um soldado da borracha. Ele faleceu em outubro passado, mas eu consegui há quatro anos registrar a sua passagem pelo Exército da Borracha. O rascunho do que escrevi está abaixo:

Meu Pai nunca quis falar da sua aventura em Rio Branco, Acre, no período em que foi convocado para o Exército da Borracha. Dessa vez, aos 97 anos e 8 meses, concordou em falar mas não quis que eu gravasse. Começou falando do envolvimento que teve com uma dama de Rio Branco. Ela se chamava ---- e segundo me disse se apaixonou por ele de forma tal que ele teve que sair correndo de lá.
Isso porque ele tinha deixado compromissos fortes em Belém e não podia assumir esse envolvimento. O compromisso forte era eu; minha mãe estava grávida e teve por isso que sair de Marabá, onde vivia, e se esconder em Belém na casa da minha futura madrinha Primênia, amiga da minha avó Anita.
O Posto de Saúde de Rio Branco recebeu 3 médicos do Exército da Borracha. No período em que meu Pai esteve lá esses médicos eram o Nizomar, seu colega de faculdade em Belém, e o Júlio Bacas, que ele também conhecia da faculdade. A função deles era atender os Soldados da Borracha e também ir aos acampamentos, onde proliferava a malária, dado que os Soldados da Borracha tinham sido convocados nos estados do nordeste, em particular no Ceará, e não tinham a imunidade do seringueiro nativo em relação a essa doença.
O Exército da Borracha é uma dessas manchas que a nossa história faz questão de ocultar. Resumidamente, o que aconteceu foi que a exploração da borracha na Amazônia se deu em dois ciclos, sendo que o primeiro se iniciou em 1870 e durou até 1912, quando a produção brasileira foi suplantada pela produção inglesa, oriunda principalmente de seringais plantados na Malásia e no Ceilão com sementes roubadas daqui. Com uma eficiência muito maior e custos menores, os ingleses assumiram o controle do mercado mundial da borracha. Houve uma tentativa dos americanos de recuperar a produção da borracha no Brasil, através do visionário Henry Ford, que criou em 1927 a cidade de Fordlândia, no Pará, mas uma praga conhecida como mal de folhas pôs a iniciativa a perder.
O segundo ciclo da borracha durou apenas 3 anos e se iniciou em 1942, quando as forças japonesas assumiram o controle militar do sul do Pacífico (A Ponte do Rio Kwai é um filme épico dessa invasão), e os aliados se viram privados desse importante insumo de guerra.
Foi então celebrado um acordo entre os Estados Unidos e o Brasil para aumentar a produção local de 18 mil para 45 mil toneladas, e para isso seria necessário que se aumentasse o número se seringueiros na região dos 35 mil remanescentes para cerca de 100 mil.
Só do Nordeste foram convocados 54 mil trabalhadores, sendo que o Ceará contribuiu com 30 mil. Eles receberam na região a alcunha de “brabos”, pela sua inaptidão para a tarefa e pouca resistência às doenças da selva.
A pujança voltou às cidades de Belém e Manaus graças ao dinheiro trazido pela Rubber Development Corporation (RDC), que pagava ao Governo brasileiro 100 dólares por trabalhador entregue na Amazônia. Foi criado o Banco de Crédito da Borracha para gerenciar essa aventura, em que cada trabalhador recebia um pequeno salário durante a viagem à Amazônia, que podia durar até 3 meses, e após a chegada fariam jus a 60% de todo o capital obtido com a venda da borracha.
Voltemos ao meu Pai. Ele se encontrava em Belém e foi convocado a se apresentar para o serviço de guerra. Chegando lá houve um contratempo com os seus documentos: um deles declarava ser ele Abílio Maranhão Gonçalves e outro o chamava de Abílio Gonçalves Maranhão. Ele recebeu de forma bem grosseira um prazo de 24 horas para regularizar a situação e voltar a se apresentar, para ser enviado para a Itália imediatamente.
De volta ao hotel ele encontrou um amigo de longa data, o Gama, colega de faculdade que foi dizendo:
- Rapaz, deixa essa história de Itália pra lá, entra pro Exército da Borracha, que é melhor do que perder a vida no campo de batalha.
Mal sabia ele que o Brasil viria a perder 454 soldados na Itália e em torno de 30 mil trabalhadores no Exército da Borracha. Mas havia o problema com os documentos e o meu Pai imediatamente decidiu se esconder na selva. Havia um incentivo adicional: um soldo de 3 contos de reis para um oficial médico do Exército da Borracha, contra algo como 1 conto de reis que ele conseguia clinicando. O seu colega de faculdade Gama imediatamente providenciou o seu recrutamento.
Graças ao seu envolvimento com a já citada dama em Rio Branco, a estada do meu Pai no Acre não passou de 5 meses.  Ele escreveu para o seu amigo Albino em Belém:
- Rapaz, me tira daqui que eu estou a perigo, e seja rápido, por favor.
O Albino era o coordenador geral da operação médica do Exército da Borracha, e determinou que meu Pai fosse para Manaus e apresentasse um relatório de suas atividades a um americano chamado Rosenfeld, que era o representante em Manaus da RDC. O Rosenfeld leu o relatório à noite e na manhã seguinte chamou o meu Pai e disse:
- Rapaz, você me interessa. Vou determinar ao Albino que você fique por aqui comigo como meu assessor.
Era a última coisa que o meu Pai queria, porque ele precisava era se esconder de Rio Branco, e Manaus com certeza não era o melhor lugar. Havia também o problema com a minha Mãe, que estava vivendo de favor na casa da minha futura madrinha em Belém. O certo é que dias depois o meu Pai se apresentou em Belém e foi deslocado para Cametá, Pará, para substituir o médico de lá, que voltava para a Bahia.
O Rosenfeld foi atrás do meu Pai em Belém, não se conformando com a sua fuga, e o levou para Manaus. Acontece que havia outro americano em Belém que também se interessou pelo meu Pai. De hierarquia maior, Charles Chamberlain Wadel já tinha uma história reconhecida no combate à malária do Brasil.
Com o crescimento do tráfego entre Dakar e Natal, foram introduzidos navios ultra-rápidos que faziam o trajeto em menos de três dias. Com isso eles trouxeram passageiros indesejados, os mosquitos Anofeles Gambiae, transmissores de um tipo de malária até então desconhecido aqui. Em 1931 deu-se a primeira epidemia desse tipo de malária em Natal, e em 1938 declarou-se uma pandemia nos estados de Rio Grande do Norte e Ceará, que atingiu 40 mil pessoas a causou mais de 20 mil mortes. Com a chegada dos americanos a Natal, e com o temor de que essa doença se espalhasse por todo o continente americano, em particular com o temor de que o tráfego intenso entre Natal  e os Estados Unidos transportasse o A. Gambiae para lá, foi criado o Serviço de Malária do Nordeste (SMNE) que, com forte ajuda americana, em muito pouco tempo debelou a pandemia, que já havia se espalhado por 55 localidades dos dois estados. Essa é uma prova cabal de que uma epidemia como a Dengue dos nossos tempos depende tão somente de vontade política para ser debelada.
Pois bem, quem entendia de malária no Brasil exercia suas atividades na Amazônia, e o SMNE convocou médicos em Belém para a tarefa. Foram o Nizomar e o Júlio Bacas, e lá conheceram o Sr. Charles Chamberlain Wadel. Com a Criação do Exército da Borracha esse grupo, que já tinha terminado a sua missão em Natal, voltou para Belém.
Eu nasci no dia 5 de setembro de 1043. Meu Pai estava em Manaus e chegou a Belém 10 dias depois, chamado pelo Sr. Wadel. Ele tinha 3 vagas para um curso de sanitarista no Rio de Janeiro e queria que o meu Pai fosse um dos escolhidos. Isso porque ele sabia que o meu Pai conhecia bem o Rio, onde já tinha passado uma temporada fazendo um curso de obstetrícia. Fora isso ele tinha muito apreço pelo meu Pai. Falava um português perfeito e era muito querido por todos.
Deram ao meu Pai uma passagem de avião que tinha uma rota pela costa: São Luiz, Fortaleza, etc. Ele conseguiu trocar por uma com rota pelo interior: Marabá, Carolina, Barreiras, Belo Horizonte, Rio. Com uma parada de dois dias em Carolina, onde ele ia comunicar o meu nascimento e dizer da sua designação para esse curso no Rio.
É interessante com o curto alcance dos aviões da época fazia com que a nossa aviação fosse muito mais distribuída em nosso território. Carolina era um aeroporto importante, que recebia aviões internacionais da Pan Am na rota Rio – Nova York. Eu mesmo quando menino comecei a aprender inglês com os gringos que desciam dos DC3 para jantar em Carolina, no aeroporto, em recepção providenciada por meu avô Diógenes, então gerente da Cruzeiro do Sul, para em seguida seguir para pernoitar em Belém.
Meu Pai só veio a se casar com minha Mãe em 1948, ocasião em que ela ficou grávida do meu irmão Cláudio. Meu avô, um coronel do sertão, que tinha tido todos os seus bens roubados pelos comandantes da Coluna Prestes e conseguido se reerguer como gerente da Cruzeiro do Sul, tinha no seu primogênito a continuação da sua estirpe. O sacrifício que fez ao enviá-lo para Belém para se tornar médico tinha sido enorme, e não havia nesse processo espaço para uma moça que ele não conhecia, filha de uma dona de castanhal em Marabá, e que tinha como diversão pescar nos barrancos do Tocantins.
Eu desembarquei em Marabá com minha mãe e meu pai seguiu para Carolina. Eu só viria a revê-lo 13 meses depois, em Belém.  Minha estada em Marabá, em plena época de guerra, foi muito difícil. Eu com dias de idade, morando com minha Mãe e minha avó Anita em uma pequena casa, já que a sua casa grande estava alugada para ajudar nas despesas, passamos por grandes dificuldades. A casa ficava no meio da zona de meretrício, havia muito barulho à noite, e segundo minha Mãe eu desenvolvi uma aversão muito forte aos homens, somente curada com o retorno do meu Pai do Rio de Janeiro, um ano mais tarde. A fonte de renda da minha avó, que era a venda da castanha do Pará, estava interrompida pela guerra, e o meu Pai tinha que enviar dinheiro do Rio para a nossa sobrevivência. Para isso ele se valia de um americano sobrinho de um exportador de diamantes, de cujo nome ele se esqueceu, que periodicamente fazia o trajeto Rio – Marabá para comprar as pedras.
Meu Pai gostava de encerrar essas narrativas com alguma declaração bombástica. Dessa vez ele fez referência à injustiça que fizeram com ele em 1983, quando ele tinha 72 anos de idade e 50 anos de serviços prestados ao serviço público. Ele tinha votado no Fernando Collor para presidente, e ficou inconformado com o fato do Collor o ter incluído em uma compulsória que o fez se afastar de um serviço que ele amava, que era disseminar a medicina preventiva na região amazônica. Nessa ocasião ele foi chamado a Brasília para ser conhecido pelos burocratas que achavam incrível um servidor público ter tanto tempo de serviço. Chegou a ser apresentado ao Ministro da Saúde.
Temos aqui dois episódios que quando eu menciono com amigos sou taxado de lunático: como é possível que tenham morrido 30.000 "brabos" nos seringais e mais de 20.000 potiguares e cearences de uma epidemia de malária em uma terra que não tinha essa doença? Costumo responder que com o Google e a Wikipedia ficou mais difícil plagiar e mentir:
Mais tarde trataremos da passagem da Coluna Prestes por Carolina, se houver interesse.

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