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A Arte da Guerra

No início do ano recebi de presente do meu amigo De Assis o livro "Sobre a China", de Henry Kissinger. Trata-se de um livro de memórias sobre as mais de 50 viagens que este diplomata fez à grande potência oriental, no decorrer das quais são descritas as tratativas que levaram os Estados Unidos a se reaproximarem da China. A meu ver é leitura obrigatória na época em que vivemos, de grande dependência da Chima na definição dos rumos da economia global.

Os capítulos iniciais trazem um breve e bem feito resumo da história da China. Mais uma vez li a respeito das diferenças entre a civilização ocidental e a oriental. Se observa que em raríssimas exceções os chineses se arriscaram em travar guerras definitivas, mas sim preferiram manobras de longa duração. O choque decisivo ocidental era substituido pela sutileza e o acúmulo de vantagens. Essas diferenças são constantemente exemplificadas ao se compararem os dois jogos de estratégia de cada civilização: o go e o xadrez. Enquanto no go as batalhas são realizadas simultaneamente em diferentes regiões de um tabuleiro de 19 por 19 linhas, onde no fim do jogo a vantagem do vencedor é mínima e não implica na eliminação do inimigo, no xadrez o objetivo é a vitória total, a destruição do rei adversário.

Segundo Kissinger, enquanto no xadrez o jogador tem uma visão completa das peças que o adversário tem a seu dispor, no go é necessário que se avaliem não só as peças sobre o tabuleiro como também os reforços que o adversário está em condições de mobilizar. Essas diferenças se refletem na teoria militar das duas civilizações. A grande referência oriental no assunto é o livro "A Arte da Guerra", de Sun Tzu, Mestre Sun (~544 - 496 a.C.), e o grande estrategista ocidental é o prussiano Clausewitz (1780 - 1831). Existem mais de 23 séculos entre os escritos destas duas personalidades, o que por si só demonstra a grande diferença de maturidade dos conceitos defendidos por eles. Estudos comparativos foram feitos para que se chegasse a uma avaliação final sobre as abordagens adotadas pelos dois hemisférios. As conclusões, resumidamente, foram as seguintes:

Sobre os preparativos para a guerra:
Sun Tsu: Perspectiva ampla, incuindo uma gama de meios não militares, tais como o diplomático, o econômico e o psicológico.
Clausewitz: Perspectiva estreita, com ênfase nos meios militares, sendo que os outros meios não são do interesse do líder militar.

Sobre o uso da força:
Sun Tzu: Seu uso deve ser frugal e como último recurso
Clausewitz: O uso da força é necessário e o mais eficaz para se atingirem os objetivos políticos. Deve-se usar o nível máximo de força disponível desde o princípio, no menor espaço de tempo possível.

Sobre o desfecho:
Sun Tzu: O melhor é vencer sem lutar, convencer o inimigo a ceder e, se possível, mudar de lado para não ser destruído.
Clausewitz: O objetivo político é atingido pela destruição do inimigo em uma grande batalha. Os outros métodos raramente são eficazes.

Sobre o método preferido:
Sun Tzu: Uso da dissinulação em grande escada, guerra psicológica, métodos não violentos. O foco é a vontade do inimigo.
Clausewitz: Concentração máxima de forças no ponto decisivo da batalha. O foco é o exército inimigo.

Conclusão:
Sun Tzu: Abordagem idealista onde o estrategista procura evitar vitórias dispendiosas, as chamadas no ocidente de vitórias de Pirro.
Clausewitz: A confiança excessiva no uso da força tende a tornar as guerras mais dispendiosas e a subestimar outros aspectos da guerra.

Fonte: Michael Handel, Escola de Guerra Naval dos Estados Unidos. Outro grande estudioso desses dois autores, o britânico Liddell Hart, sintetizou de forma concisa as diferenças entre essas duas abordagens. Para ele, a civilização poderia ter sido poupada da maioria dos danos causados pelas duas grandes guerras mundiais, caso a influência exercida por Clausewitz no pensamento militar europeu tivesse sido combinada e equilibrada com os conceitos de Sun Tzu.

Na década de 70 visitei os Estados Unidos e de lá voltei com um tabuleiro de go e um manual do jogo. Ele é tão simples que possui pouquíssimas regras. Segundo o manual é um jogo que "takes an hour to learn and a life to master". Como nunca me tornei um bom jogador de xadrez, o go foi "mais uma vontade que ficou pra trás". Os ocidentais em geral nunca se tornam bons jogadores de go. Kasparov chegou a dizer, quando perguntado sobre as diferenças entre os dois jogos, que "o xafrez é uma batalha, enquanto o go é uma guerra". Costuma-se dizer do Go que nunca houve dois jogos iguais. Em xadrez, as posições possíveis são estimadas entre 10^43 e 10^50. No Go, estima-se em 10^170 posições. Para se ter uma idéia do que isso representa, “os físicos estimam que não há mais do que 10^90 prótons no universo inteiro visível”.

Além de não se adaptarem ao go, os ocidentais também não gostam da abordagem estratégica de Sun Tzu. Mao Zedong foi um aplicado discípulo de Sun Tzu, bem como Ho Chi Mi e Vo Nguyen Giap, que empregaram seus princípios no ataque indireto e no combate psicológico contra a França e os Estados Unidos. Ultimamente Sun Tzu tem sido reverenciado como o novo guru do mundo dos negócios, com suas técnicas adaptadas esse ambiente. A meu ver se trata de pura enganação: o canibalismo do mundo dos negócios não tem nada a ver com a filosofia de Sun Tzu.

Com base nestes princípios os chineses nunca se preocuparam seriamente em dominar pela força. Nas muitas vezes em que foram invadidos, tiveram a paciência de esperar que o invasor reconhecesse a superioridade política e cultural do invadido e acabasse por se submeter a ele. Por várias vezes Kissinger, ao ser dispensado pelos líderes chineses de adotar soluções imediatas de reaproximação, ouviu deles que a história não pode ser rápida, e que para eles é até melhor que a solução dos problemas políticos demore 100 anos. Isso é ter cultura.



Comentários

  1. Não tenho certeza mas no caso das empresas, as coisas tendem a mudar. Na medida em que fatores como imagem, meio ambiente, criatividade, inclusão, correção política, racial e sexual permeiam o mundo das decisões corporativas, os horizontes vão se expandindo. A cultura nos negócios tem de ser mais abrangente e de longo prazo dividindo com o dia a dia o tempo dos executivos. Assim a forma de ver a concorrencia e atuar no mercado vai ficando mais sutil e menos canibalesca. As cabeças mudam.

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  2. Estou lendo o livro do Kissinger e fiquei bem impressionado com o nível do homem e de seu trabalho. Obrigado Luis por ter me emprestado. Pena que com a América Latina os EUA não tenham tantas considerações estratégicas e sutilezas. Aqui vale o Xadrez com um ataque Taylor e contando com a total incompetencia da defesa.

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