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Sobre Bruxas

Segundo Tutty Vasques em sua coluna "Humor"  no Estadão de 14/09, "com uma câmera na mão e uma idéia de jerico na cabeça, qualquer maluco hoje em dia pode tocar fogo no mundo via YouTube. É a derrota do homem-bomba". Está ele falando do filme "Inocência dos Muçulmanos", que ridiculariza o profeta Maomé e causou toda essa revolta que estamos acompanhando na mídia.

Quem está por trás disso tudo, o autor do filme segundo investigações preliminares, é um tal Nakoula Basseley Nakoula, cristão copta, que se apresentava como Sam Bacile, judeu israelense, e que já cumpriu 2 anos de detenção por crimes financeiros e uso de identidades falsas. Os cristãos coptas representam 10% da população egípcia e a sede da igreja é em Alexandria. Segundo a tradição esse ramo segue os ensinamentos de São Marcos, dissidente de Pedro quanto aos rumos do cristianismo no seu nascedouro. 

Já o islamismo foi fundado por Maomé no ano 622, sendo portanto seis séculos mais novo que o cristianismo, muito embora as sua raízes sejam muito parecidas: Maomé se dizia descendente de Abraão. Tenho uma teoria a respeito dessas religiões monoteistas: elas seguem ciclos muito parecidos, e como o islamismo é 6 séculos mais novo que o cristianismo, ele se encontra no mesmo estágio em que se encontravam os cristãos no século XV.

E o que acontecia no século XV entre os cristãos? Segundo Domenco de Masi, durante a Inquisição foram queimadas vivas 2 milhões de mulheres sob a acusação de bruxaria. E qual era o objetivo real de tal perseguição? Segundo o antropólogo Marvin Harris, "o principal resultado do sistema de caça às bruxas foi que os pobres passaram a acreditar que estavam sendo vitimados por bruxas e demônios, e não por príncipes e papas. Preocupadas com as atividades desses demônios, as massas perturbadas, alienadas, pauperizadas, culpavam o Demônio em vez do clero corrupto e a nobreza exploradora."

Existe uma diferença fundamental entre o que ocorria no mundo no século VII e o que ocorre hoje: o curto circuito causado pela informação instantânea. Enquanto Maomé morria em 632 e se iniciava a expansão do império árabe, na Europa o Império Romano no Oriente passava a se chamar Império Bizantino, separando-se completamente de Roma. É de se supor que essas duas civilizações não tinham a menor idéia do que estava ocorrendo do outro lado. Pra não falar que a civilização Maia estava no seu apogeu, e que a China saia de um estado de total anarquia, unida sob a dinastia Tang.

Já hoje quando o YouTube lança um filme como esse ele tem divulgação global instantânea. A característica principal das religiões monoteistas é a mutilação do livre arbítrio, e ao se defrontarem com uma situação como essa os fundamentalistas não aceitam que possa existir uma sociedade que não considera esse fato uma infâmia. Passa-se assim a uma estágio que eu chamaria de caça às bruxas em escala global, em que ambos os lados se digladiam pela supremacia da sua crença. Ao mesmo tempo em que esse filme causa tanto frisson, o jornalista Rush Limbaugh, ícone da extrema direita americana, inventa a teoria de que a Al-Qaeda entregou Bin Laden para ajudar a reeleição do "fraco" Barack Obama.

Enfim, as bruxas medievais desapareceram mas seus conceitos permanem. Resumidamente, segundo Michael Shemer, o componente principal desse mecanismo é o controle social de um grupo de pessoas por outro grupo mais poderoso e a necessidade de se colocar a culpa dos nossos infortúnios em alguém. Contribuem para esse estado de coisas a situação econômica, as crises políticas e culturais e a agitação religiosa. Surgem então os profetas, que não precisam necessariamente estar vinculados a uma linha religiosa, mas é mais comum que assim aconteça.

Curiosamente a caça às bruxas na Idade Média ocorreu ao mesmo tempo em que a ciência começou a ganhar terreno e popularidade. Parece paradoxal, mas hoje vemos que uma coisa não leva à outra. Atingimos nesse século uma escalada do conhecimento científico nunca vista, e ao que tudo indica crescente para sempre, e ao mesmo tempo nos deparamos com essa situação em que não conseguimos aceitar que outros possam ter crenças diferentes das nossas, ou simplesmente não ser crentes. Outro fato complicador é que as nações onde o fundamentalismo muculmano é grande estão saindo de regimes ditatoriais para cair nas garras da Irmandade Muçulmana. É difícil para essas sociedades entender o conceito de liberdade de expressão. Para eles um filme "blasfemo" certamente conta com a aprovação do governo onde ele foi produzido.

Esse fenômeno, no nosso dia a dia, tem se aproveitado de nossas fraquesas pessoais para nos atacar através de algumas terapias. Dentre elas a que mais ganhou terreno foi o chamado movimento de resgate de memórias, onde o paciente é levado, através de técnicas especiais, a regredir na idade e encontrar soluções para seus problemas. Dessa forma chegam-se a situações em que adolescentes acusam pais inocentes de abuso sexual. Esse movimento envolve psicólogos, psiquiatras, advogados, a mídia, e na verdade está prestando um desserviço ao problema do abuso sexual, tão comum em nosso meio. Trata-se de uma reedição da caça às bruxas a nível doméstico.

Para encerrar gostaria de apresentar citações de um livro mais "ameno", a Bíblia Sagrada, em Levítico, Capítulo 24:

11 Então o filho da mulher israelita blasfemou o nome do SENHOR, e o amaldiçoou, por isso o trouxeram a Moisés; e o nome de sua mãe era Selomite, filha de Dibri, da tribo de Dã.
12 E eles o puzeram na prisão, até que a vontade do SENHOR lhes pudesse ser declarada.
13 E falou o SENHOR a Moisés, dizendo:
14 Tira o que tem blasfemado para fora do arraial; e todos os que o ouviram porão as suas mãos sobre sua cabeça; então toda a congregação o apedrejará.
15 E aos filhos de Israel falarás, dizendo: Qualquer que amaldiçoar o seu Deus, levará sobre si o seu pecado,
16 E aquele que blasfemar o nome do SENHOR, certamente morrerá; toda a congregação certamente o apedrejará; assim o estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do SENHOR, será morto.

Esse trexo está sendo citado nos meios muçulmanos para justificar sua reação ao filme "blasfemo".

Comentários

  1. Nos os ocidentais ainda vivemos na idade das trevas ,atrelados a livros obsoletos que devem ter sido úteis na época em que foram escritos. Todo material didático deve ser periodicamente atualizado . Por que nao revisar e modernizar o nosso principal manual de comportamento ? Os chineses só tem o livro de Confucio que fazia questão de nao falar sobre religião e os Budistas consideram o Budismo uma filosofia e nao tem livros.

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  2. As mudanças nas sociedades islãmicas estão surgindo geradas nos conflitos e nos protestos reprimidos com violencia que geram reações violentas (sempre tem poderosos interessados em armar esta ou aquela facção). O Mao reformava a Sociedade Chinesa com choques de ideologia e ações revolucionarias continuas. Olha os Chineses ai protestando contra o Japão! Já partem para o quebra quebra. Eles não tem o futebol para sublimar seus recalques, ou os cultos para comprar sua paz interior. Não tem a Mega Sena nem as novelas da Globo, nem a música popular para todos os ouvidos e niveis culturais, nem bolsa familia etc.

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    1. Isso pode significar que nós vivemos no melhor dos mundos. Houve uma ocasião, quando minhas filhas foram embora de casa, em que minha mulher inventou de receber moças para morar conosco, geralmente estudantes da Unicamp. Tivemos inglesa, angolana, americana, e o que mais as impressionava era a falta de auto estima que elas sentiam na nossa sociedade. Hoje mesmo li no Estadão que judeus, muçulmanos e cristãos estão organizando uma exposição temática e uma corrida pela amizade em São Paulo. Acho isso notável

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