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O Objetivismo na Política Americana

Em 1963 eu tive a sorte de ser aprovado no vestibular do ITA. Sorte porque, filho de um médico funcionário público federal em Goiânia, aos 15 anos decidi que continuar a minha existência por lá me levaria inevitavelmente a um dia a dia que eu talvez não fosse capaz de suportar.

A primeira etapa foi ser aprovado no exame para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, onde fiquei por dois anos; eu queria ser piloto de caça. Um problema congênito no coração descoberto no exame de saúde para o vôo solo me tirou essa possibilidade. O jeito foi ser engenheiro.

No fim do primeiro ano do ITA, eu tinha que apresentar um trabalho final do curso de Lógica, ministrado pelo professor Leônidas Hegemberg. Estávamos às vésperas do golpe militar e a política no meio universitário fervia. Resolvi então consultar na biblioteca alguma coisa que contestasse o lugar comum vigente e trabalhar em cima de uma proposta alternativa. Encontrei quase por acaso uma autora de quem eu nunca tinha ouvido falar: Ayn Rand. O livro, We the Living (1936), era uma espécie de autobiografia da autora, nascida na Rússia. Ele descreve as agruras de uma moça, Kira, que retorna com sua família a Petrogrado após a vitória da revolução e vê que todas as suas posses tinham sido confiscadas.

Com base na crítica feroz de Ayn Rand, tentei formatar um trabalho no qual eu apontava as falhas do regime soviético em implantar o comunismo na Rússia. O Professor Leônidas, por quem eu tinha grande admiração, me chamou e disse que o meu trabalho estava totalmente fora do contexto, que ele não tinha nada a ver com o curso, mas que tinha gostado do que eu tinha escrito, e até elogiou a minha coragem em escrever uma matéria que contrariava a voz corrente entre meus colegas. Me deu nota 6,5, a mínima aceitável no ITA para aprovação.

Bem mais tarde me caiu nas mãos a grande obra de Ayn Rand: Atlas Shrugged (1957). Shrug literalmente significa dar de ombros, um gesto que significa indiferença ou desencanto, mas o livro sofreu a meu ver uma agressão ao ser traduzido como A Revolta de Atlas. Li com muita atenção o livro que cimentou a sua filosofia que enfatizava o individualismo, o egoísmo racional e o capitalismo. Segundo a Wikipedia, as bases dessa filosofia, o Objetivismo, são as seguintes:
  1. Que o homem deve definir seus valores e decidir suas ações à luz da razão,
  2. Que o indivíduo tem o direito de viver por amor a si próprio, sem se sacrificar pelos outros e sem esperar que os outros se sacrifiquem por ele,
  3. Que ninguém tem o direito de usar a força física para tomar dos outros o que lhes é valioso ou impor suas idéias sobre os outros (Aqui vemos uma contestação às idéias de Nietzsche, que defendia esse direito. Na primeira edição de We the Living ela apoiava Nietzsche. Na revisão publicada em 1959, após o sucesso de Atlas Shrugged, ela se contradisse, o que foi encarado como puro oportunismo pelos seus críticos).
O Objetivismo, de acordo com Michael Shermer, é "basicamente a filosofia da razão e do individualismo, como expresso por Ayn Rand por meio do personagem principal de A Revolta de Atlas, John Galt:"

O homem não pode sobreviver exceto obtendo conhecimento, e a razão é o seu único meio de obtê-lo. A razão é a faculdade que percebe, identifica e integra o material fornecido por seus sentidos. A tarefa dos seus sentidos é dar-lhe a evidência da existência, mas a tarefa de identificá-la pertence à sua razão; os seus sentidos lhe dizem apenas que alguma coisa é, mas o que ela é deve ser apreendido por sua mente.
Em nome do que há de melhor em você, não sacrifique esse mundo em função dos que são o pior dele. Em nome dos valores que o mantêm vivo, não deixe a sua visão de homem ser distorcida pelo que há de feio, covarde, estúpido naqueles que nunca conseguiram nada. Não perca o seu conhecimento de que o estado próprio do homem é uma postura ereta, uma mente intransigente e um andar que percorre estradas ilimitadas. Não deixe que o seu fogo se extinga, uma centelha irrecuperável após a outra, nos desesperançados pântanos do aproximado, do não bastante, do não ainda, do não inteiramente. Não deixe que o herói em sua alma pereça, em solitária frustração pela vida que você merecia ter mas nunca foi capaz de alcançar. Verifique a sua estrada e a natureza da sua batalha. O mundo que você desejou pode ser conquistado, ele existe, é real, é seu.

Paradoxalmente essa filosofia altamente individualista acabou sendo distorcida pelo culto que o sucesso de A Revolta de Atlas trouxe para a figura de sua autora. A filosofia de Ayn Rand se disseminou por todo o país, em particular nas universidades. Clubes Ayn Rand foram criados às centenas, cursos de Objetivismo se tornaram comuns nos meios acadêmicos, e um tal Nathaniel Brandem, seu discípulo, criou o Nathaniel Brandem Institute, que promovia palestras sobre o Objetivismo a nível nacional.

O castelo começou a ruir quando Ayn Rand, casada, descobriu que seu amante Nathaniel, casado, 25 anos mais novo, tinha um caso com uma terceira mulher. Sua reação a esse fato foi tão irada que Nathaniel foi levado a julgamento coletivo na comunidade, por ofensas à sua líder. São dela as palavras:

O preceito "não julgueis para que não sejais julgados" é uma abdicação da responsabilidade moral: é um cheque moral em branco que a pessoa dá aos outros em troca de um cheque moral em branco que ela espera receber. Não há como fugir ao fato de que homens têm que fazer escolhas, não há como fugir dos valores morais em jogo, nenhuma neutralidade moral é possível. Abster-se de condenar um torturador é virar um acessório para a tortura e o assassinato de suas vítimas. O princípio moral a ser adotado é: "julgai, e estai preparados para serdes julgados".

Quando Ayn Rand morreu, em 1982, restavam apenas um punhado de seguidores que tentavam manter vivo o seu legado. Isso nos leva a uma reflexão: criou-se um culto em torno de Ayn Rand, e o fato de que certos gurus serem os piores violadores de seus códigos morais não invalida os mesmos. Axiomas morais como "não matarás" devem subsistir por si próprios, não em função de quem os formula. Foi mais ou menos o que aconteceu com o Objetivismo: seu sucesso foi tão grande que a queda em desgraça de sua fundadora não o derrotou, e ele foi pouco a pouco ressuscitado através de discípulos que acabaram por dominar a política americana. Um dos expoentes desse processo foi Alan Greenspan, que presidiu o Federal Reserve, o Banco Central americano, de 1987 a 2006.

Alan Greenspan se converteu ao Objetivismo no início dos anos 50, contribuindo com artigos e com vários ensaios para o livro Capitalism, the Unknown Ideal (1966), que incluíram os defesa do padrão ouro na economia. Durante sua longa trajetória no Federal Reserve, ele paulatinamente se afastou do Objetivismo, mas em 2008, numa audiência no Congresso ele, questionado sobre as idéias de Ayn Rand, voltou a defender o Objetivismo, que segundo ele estava correto nos seus princípios.

Foi o suficiente para que as idéias de Ayn Rand voltassem à tona. Até aqui no Brasil seus livros foram republicados: A Revolta de Atlas e A Nascente eu voltei a comprar, e inclusive os andei presenteando a alguns amigos, sendo que um deles achou a autora muito chata. De fato, Ayn Rand como escritora se assemelha a Al Pacino como ator, uma personalidade forte demais, cuja conduta os críticos batizaram de "overacting". O fato é que, infelizmente, o fundamentalismo republicano resolveu pegar carona no Objetivismo, e Ayn Rand ao que tudo indica se tornou uma das bandeiras do Tea Party, a ponto de os candidatos republicanos, a começar pelo vice de Romney, Paul Ryan, um conservador escolhido para ajudar o "moderado" Romney a conquistar os fundamentalistas, se declarar seu fiel seguidor. Pena.

P.S. - Semana passada esse Blog atingiu a marca de 2000 acessos, sendo que no dia 30/09 foram 59 acessos, um recorde. Isso nos deu uma grande alegria, que foi saber que as idéias aqui divulgadas, nenhuma delas original, estão tendo uma receptividade que chega a me surpreender. Resta somente esperar que o número de comentários aumente: foram apenas 47 para 22 postagens. O comentário é o retorno de que o blogueiro precisa, que o motiva a seguir em frente, que corrige eventuais desvios. Vamos esperar que esse número melhore. De qualquer forma, estou muito grato pelo resultado.

Comentários

  1. Parabéns! E preciso coragem para contradizer idéias vigentes como a da caridade . As vezes esse protecionismo exagerado faz mais mal do que bem a humanidade .

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  2. Digo eu: estes atos falhos de primeiro apoiar depois renegar Nietzche... o item 3, bullshit, apenas amainar a sombra fascista do pensamento conservador baseado neste individualismo exacerbado. Pode ser perigoso. Imagino o cara armado pronto para detonar com as criancinhas na escola local, ele nem quer saber do item 3. O grande Nietzche e,acredito, Miss Rand não merecem seus respectivos seguidores, Hitler e o tea Part, mas é o que deu e pode dar.

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    1. Caro Amaro. Você é um dos que contribuem, com seu conhecimento, de forma constante e positiva, para melhorar o padrão deste Blog, que já não é lá essas coisas. Eu entendi perfeitamente a analogia Nietzche/Hitler x Rand/TeaParty. Acho pertinente. Como eu disse, o que eles pensam não tem nada a ver com o que os seus seguidores fazem. Acredito que Jesus também não ficaria satisfeito vendo a Inquisição queimar 2 milhões de bruxas.

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  3. Obrigado Luis por esclarecer de forma precisa a intenção de meu comentário. Só tomei conhecimento desta Ayn Rand através do teu blog que trata dos problemas mais atuais da forma objetiva e isenta, muito útil e já imprescindível. Só que de vez em quando dá vontade de meter a colher no angu, já carregada de de pimenta.

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  4. oops, ja apaguei meu comentario. Amaro pode continuar a meter a colher no angu carregada de pimenta. :-) Todos deviamos fazer o mesmo.

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  5. Põ André, logo agora que eu ia pesquisar o tal do "Whatever Nazi Code"! Não carecia apagar. Somos família e família do blog. Comentamos livremente os temas que o Luis levanta. Independente de posições ideológicas, o que ocorre de fato é uma aproximação e convergência desta família tambem de amigos.

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  6. Oi Amaro nao tem problema nao, acho que pulei um certo "repectivos" no seu comentario.
    Aqui vai o link sobre a Lei de Godwin:
    http://en.wikipedia.org/wiki/Godwin's_law
    1 abraco.

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  7. Entre mortos e feridos, acho que vão se salvar todos. O bom disso tudo foi que a média dos comentários subiu.

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  8. Nunca que uma pessoa de sua capacidade entraria no ITA "por sorte". Pode ser que a sorte, nossa, não sua, seja você não ter se tornado piloto porque aí nossa integridade aqui embaixo poderia ter ficado ameaçada...Tentei ler o "Atlas Shrugged" que você gentikmente me presenteou, mas, admito, não passei do 1º volume: achei muito chato.

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