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O Professor De Masi

No ano 2.000 eu ganhei um livro de autoria do Professor Domenico De Masi, um intelectual italiano que alcançou uma certa fama pelas suas idéias revolucionárias no campo da sociologia. Chamava-se "O Ócio Criativo", Sextante, 2.000 e era resultado de uma entrevista que ele deu a uma repórter, Maria Serena Palieri. O livro-entrevista foi um sucesso, graças á grande sintonia entre entrevistadora e entrevistado.

Em seu primeiro capítulo, "Sessenta Milhões de Anos sem Indústria", é feito um resumo da civilização até o advento da sociedade industrial. É muito provável que tenha sido o capítulo de livro onde eu mais aprendi, mais concordei com o que tinha lido. Isso me leva a abusar um pouco da paciência de vocês e tentar resumir o que me foi transmitido. Vamos por partes:

1 - O primeiro longo período humano durou perto de setenta milhões de anos e acabou há cerca de 700 mil anos. Nele o homem aprendeu a andar ereto, a falar, a educar seus descendentes. Uma coisa que sempre me intrigou foi o fato de o homem, que ao nascer é totalmente dependente até cerca de 10 anos, acabou por se tornar o senhor do planeta, dominando todas as outras espécies. É feita uma comparação entre o homem e o dinossauro. Este, ao nascer com a abertura dos ovos, já era um ser autônomo e não precisava ser educado por seus genitores; ele já era perfeito na origem, já sabia se mover, obter alimento, e portanto era abandonado à própria sorte. O homem, por outro lado, nasce indefeso, e se não for socorrido morre em poucas horas. Essa limitação, que eu entendia como fraqueza, na verdade é a sua força, porque ela implica em uma transmissão de conhecimento de cerca de 10 anos (hoje muito mais), o que resulta em que nós não precisamos recomeçar do início: nós sempre evoluímos de geração a geração. Daí a importância da nossa faculdade de educar nossos descendentes, uma necessidade para a preservação da espécie que se transformou em um "elogio da imperfeição".

2 - O cenáro começou a mudar quando o homem criou um companheiro de jornada: o cachorro. Foi o primeiro animal a ser domesticado, o primeiro motor a serviço do homem, puxando os trenós em algumas das várias eras glaciais por que atravessamos. O mais provável é que a roda foi inventada ao fim de uma dessas eras, em que o homem precisou de alguma coisa que rodasse em vez de deslizar. Logo em seguida veio o arco e a flexa, uma arma tão evoluida que prevalece até hoje; nela o homem faz uso de sua energia para gerar velocidade na flexa, mas decide a oportumidade de assim faze-lo. Em seguida foram domesticados o boi, para puxar cargas pesadas, o porco, como reserva abundante de proteina, a cabra, como reserva de leite, e o carneiro com reserva de lã. Foi nesse instante que as primeiras manifestações de arte apareceram, certamente em função de uma certa ociosidade decorrente da evolução que essas descobertas proporcionaram.

3 - A primeira sepultura, a mais antiga conhecida datando de noventa mil anos, deve ter marcado a descoberta do outro mundo. O homem se tornou o único ser vivo a enterrar os mortos. Pode-se argumentar que isso se deu por medo de contágio, para evitar o mau cheiro, mas nada disso explica porque deixavam junto com o corpo utencílios e objetos preciosos: fica evidente que eles se destinavam a ajudar o defunto na outra vida. Criou-se então a idéia de que o fim definitivo não existe. Em seguida foi criado outro consolo que consistiu em trazer a estética da natureza às manifestações da arte, àquela altura bem mais evoluida. Foi criado o conceito do belo, o que levou o homem a crer que ele podia ser feliz, e que essa felicidade era de sua inteira responsabilidade.

4 - O planejamento nasceu com a descoberta da semente, seis mil anos A.C. Ela resultou no aprofundamento da divisão sexual do trabalho. O homem já tinha percebido que melhor que perseguir animais era criá-los. A mulher descobriu que melhor que colher as frutas caídas era cultivá-las: plantar as sementes, regá- las e ver crescer as plantas. A tarefa de alimentar a prole ficou assim previsível; o homem aprendeu que trabalhando hoje, podia obter alimento para o futuro, que deixou de ser incerto. Foi nessa época também, observando os animais, que o homem descobriu que ele participa no nascimento de seus filhos, e a sociedade, que era matriarcal pelo fato de que se acreditava na geração expontânea, passou a ser patriarcal. A descoberta de garrafas feitas nessa época sugere que o homem aprendeu a lidar com o excesso de produção.

5 - As primeiras cidades foram decorrência desse acúmulo de conhecimento, e nasceram na Mesopotânia 3 mil anos atrás. A descoberta da astronomia permitiu que se viajasse à noite, dobrando assim o alcance das viagens, o que aumentou o comércio. Esses grupamentos sociais exigiram que se inventassem as leis e a justiça, essa uma invenção humana, desconhecida na natureza, que permitiu que viessemos a viver em grandes comunidades. Inicialmente foram criados pequenos juntamentos sociais que a seguir foram se fundindo em reinos, com exércitos criados a partir desse crescimento populacional sob uma só autoridade. Essa tendência evoluiu até ser criado o império romano, que tentou dominar toda a superfície então conhecida do planeta.

6 - A civilização ocidental, criada a partir de uma entidade fictícia, a Grécia, que na verdade não existiu como nação mas sim como um juntamento de cidades com uma língua comum, trouxe consigo um paradoxo: todo o progresso conseguido na Mesospotâmia foi descontinuado. Segundo Aristóteles, tudo o que servia à vida prática já tinha sido descoberto, e assim os gregos se preocuparam mais com a qualidade das coisas que com a quantidade. Tinha sido criada a escravidão, e isso veio a desestimular a inventividade. Atenas chegou a ter 300 mil escravos a abastecer com mão de obra os seus 40 mil homens livres, que com essa "democracia" se dedicavam à política e às artes. A palavra grega "otiu", escola, gerou o termo pejorativo ócio mas também o termo neg-ócio, que tocava as cidades gregas enquanto a elite se divertia. As invenções foram poucas: o arco arquitetônico, a roldana, o viaduto, que propiciaram a esplêndida visão que temos do Acrópole e de outros monumentos gregos, e que se propagou por toda a Europa com o domínio romano.

7 - O século XII marcou a virada tecnológica. O império romano entrou em franca decadência e manter escravos se tornou caro. Na falta deles o homem voltou a ser inventivo. A pólvora é transformada em arma de guerra, coisa que seus inventores chineses não viram; descobre-se a bússola, os óculos são inventados e duplicam a vida intelectual; é inventada a imprensa e o relógio. Todas essas invenções só foram desenvolvidas e difundidas mediante o crescimento primário da economia, e isso se deu através da invenção mór: o Purgatório. É sabido que o motor da sociedade indústrial foi a descoberta das colônias, que trouxeram riqueza aos impérios. Na idade média a acumulação de riqueza se deu graças ao Purgatório. Foi criado um terceiro lugar, de mediação entre o Inferno e o Paraíso, mas também de mediação entre os vivos e os mortos. Com isso os vivos passam a poder influenciar o destino dos mortos, pagando indulgências para o resgate de suas almas que se encontram no Purgatório. O comércio das indulgências permitiu uma acumulação imensa de riqueza por parte das igrejas, comparável à descoberta da América. Foram criados bancos com nomes de santos por toda parte para gerir essas enormes poupanças, o que veio a financiar as grandes expedições que multiplicaram a superfície conhecida da Terra, o que resultou na revolução industrial.

Como se vê, trata-se de um capítulo e tanto, aqui resumido, mas que vale a pena ler no original. Aliás, esse primeiro capítulo é apenas uma introdução ao objetivo da entrevista, que vem a tratar da sociedade pós industrial. A sociedade industrial nasceu a partir da negação da filosofia de Aristóteles, que dizia que tudo o que serva ao bem estar já tinha sido descoberto. Bacon decide então investir contra esse raciocínio, considerando a filosofia grega "um amontoado de tagarelice de velhos estonteados para jovens desocupados". Um utilitarista, ele defende que a era da poesia e da filosofia deve ser substituida pela dedicação ao progresso da vida cotidiana. Nasce assim a sociedade industrial e o homem decobre que os seus problemas originalmente resolvidos de modo religioso passam a ser administrados de forma racional. Há explicação para tudo: o raio, a carestia, a opressão.

Será? Parece que não é exatamente o que estamos vendo em pleno século XXI. Acho que Aristóteles está de volta, com roupagem fundamentalista.

Comentários

  1. Mais uma vez, muito bom: eu já deveria ter lido "O Ócio Criativo",do Domenico de Masi, mas me contentei com o "Incentivo ao Ócio" de Bertrand Russell. São as tais leiturs que a gente vai "deixando para depois" e aí entram outras que furam a fila, mas sempre se pode rever a fila.Não entendi sua menção a Aristóteles, mas a discutiremos pessoalmente. "By the way" começaram a ser republicadas as obras de José Guilherme Merquior.

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    Respostas
    1. Aos amigos que estão enriquecendo este Blog com comentários, peço desculpas pela ausência. O fato é que fui uma das 40.000 vítimas do apagão aeroportuário que se abateu sobre a cidade de Campinas, em particular sobre a empresa Azul. Sábado às 11:40 parti para Goiânia, onde seria padrinho de casamento de uma sobrinha. Só consegui voltar ontem à tarde. Esse assunto com certeza merece uma postagem, que já estou preparando.

      Quanto aos gregos, é sabido que eles foram os pioneiros em institucionalizar a escravidão como uma instituição social. Os escravos passaram a fazer parte do dia a dia da sociedade; saíram das cocheiras para dentro das casas. Com isso a contribuição dos gregos para a inventividade se resumiu às artes, aí enfatizada a arquitetura, que obviamente dependia do trabalho escravo, e o blablablá filosófico. Os gregos eram preguiçosos, promísquos, e tranmitiram essa cultura para toda a Europa Meridional. Claro que o clima ameno ajudou, mas este estado de coisas persiste até hoje, com uma grande ajuda dada pela Igreja Católica Romana.

      Em tempo: na minha espera no aeroporto de Goiânia comprei o livro "Guia Politicamente Incorreto da Folisofia - Ensaio de Ironia", de Luiz Felipe Pondé. Para minha surpresa. ele elege a obra de Ayn Rand como uma distopia (inverso de utopia, como por exemplo "1984" de George Orwell) monumental, onde o mundo é dominado pela mentalidade socialista, coletivista e por isso mesmo preguiçosa.

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  2. Tambem fiquei confuso. Aristoteles no sentido de que não existe mais nada a inventar e roupagem fundamentalista no sentido de que existe uma tendencia a radicalizar este conceito ? Favor ampliar a discussão para o blog.

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  3. Nada a ver com o tema mas cliquei no Google " Jews in Iran" e fiquei surpreso em saber que tem uma comunidade judaica importante em Teheran e que Ahmmadinejad convive bem com eles e os abraça e publica fotos abraçado no rabino!. Vejam só. Uns e outros querendo bombardear a Persia de qualquer jeito. Entre o bem e o mal existem uma infinidade de matizes que é preciso um pouco de sensibilidade para apreciar. Como um quadro do Renoir.

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