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O Chapéu de Vermeer


Vamos por um instante deixar de lado a proposta de um ministério decente para o nosso pobre Brasil e falar de um livro mágico que estou lendo: O Chapéu de Vermeer, de Timothy Brooks, professor de chinês da Universidade de Oxford e reitor do Saint John's College da Universidade da Colúmbia Britânica.

Johannes Vermeer (1632 - 1675) nasceu, viveu e morreu em Delft, Holanda, e teve uma vida de dificuldades nessa cidade. Dos 35 quadros que ainda restam desse grande pintor nenhum está na sua cidade. O seu quadro mais famoso talvez seja "Girl with a Pearl Earring", que motivou o filme "Moça com Brinco de Pérola", com Scarlett Johansson.

Girl with a pearl earring.jpg

O livro apresenta oito quadros de Vermeer, que são na realidade um panorama do mundo da época, que estava em rápida expansão. O primeiro quadro analisado é o "Oficial com Moça Sorridente", mostrado acima. O que parece uma conversa informal é na realidade um verdadeiro mostruário do mundo exterior, nessa cidade que foi a porta de saída da primeira empresa global que se tem notícia, a Companhia das Índias Orientais. A modelo de quase todos os quadros de Vermeer era sua esposa Catharina, mostrada no quadro segurando um copo de cristal de Murano. O mapa atrás é de William Blaeu e retrata as províncias da Holanda. As três dúzias de navios mostradas no quadro pertencem à Companhia das Índias Orientais. O chapéu na cabeça do oficial é confeccionado com feltro da pele de castores das florestas do leste do Canadá, adereço em moda na época. 

O que mais me chamou a atenção nesse livro magnífico foi a influência que o fumo teve no desenvolvimento das regiões da América, e a rapidez com que essa mercadoria se espalhou por todo o mundo. Em 1492 Cristóvão Colombo e seus marinheiros foram os primeiros não americanos a ver os indígenas fumarem, ou melhor, a ver um ser humano fumar. Os nativos usavam o fumo para passar do mundo natural para o sobrenatural e se comunicar com os espíritos. Os xamãs o usavam para induzir o transe. Champlain, o francês que conquistou o leste do Canadá, foi recepcionado pelos indígenas com um festa em 1559, onde se fumou, festa essa que o francês batizou de tabagie. Os cigarros de hoje não são alucinógenos porque têm um teor de nicotina muito menor que o tabaco dos nativos. 

O tabaco se espalhou velozmente, e onde quer que aparecesse a cultura que não fumava virava a cultura que fumava, da noite para o dia. Houve alguma reação a esse novo hábito. Jaime I, monarca britânico, o chamou de "vil costume bárbaro", mas isso pouco adiantou. 

Mas onde isso veio a ter influência no nosso Brasil? O fumo entrou em Portugal através do jesuíta Damião de Góes em 1556, que levou o tabaco do Brasil para Portugal e o plantou em seu jardim. O mesmo Damião de Góes fez o fumo entrar na França, dando mudas a um certo Jean Nicot, embaixador da França em Portugal, que também o plantou em sua casa. 

O consumo explodiu na Europa, o que levou imediatamente o mesmo rei Jaime a criar um imposto enorme sobre a importação do fumo. Com isso os fazendeiros holandeses logo se transformaram nos maiores produtores de fumo da Europa, a partir de 1610, para fugir dos impostos de importação. Nas Américas os plantadores de fumo passaram a necessitar de mais mão de obra, e isso levou os jesuítas no Brasil a recrutar os índios para o serviço. Esses, no entanto, fugiam à noite para a selva que conheciam bem, e a solução foi encontrar gente fora do continente, os escravos negros. Os holandeses foram os principais participantes nesse novo negócio, e criaram uma nova empresa, a Companhia das Índia Ocidentais, que entre outras coisas comprava escravos na África e os vendia a plantadores de fumo no Caribe e no Brasil. 

Surgiu assim um novo esquema de comércio: o fumo, junto com o açúcar, tornou a América lucrativa; a África fornecia a mão de obra para facilitar a produção agrícola, e a prata sul americana pagava as mercadorias compradas na Ásia, ou compradas para ser vendidas na Ásia. Assim, por muito tempo a colonização das Américas descansou sobre essas três mercadorias: fumo, escravos e prata. 

O fumo chegou à China através de três rotas principais: a portuguesa via leste, do Brasil até Macau; a espanhola, do México até Manila; e uma terceira pela Ásia oriental até Beijing. Eles chamavam a planta de dambagu, uma tradução grosseira do espanhol tabaco. Mais tarde passaram a chamá-la de "fumaça" (yan) e chegaram à expressão "chi yan" (comer fumaça) para o ato de fumar. Os intelectuais chineses, tanto quanto os europeus, tentavam entender a rapidez com que o fumo se alastrou por toda a Ásia. Uma explicação foi baseada nos efeitos que o fumo poderia trazer para a medicina chinesa. Ele podia combater a malária, acabar com os piolhos, dissipar a umidade, e assim por diante, mas na realidade ele causava uma enorme dependência e ameaçava a segurança alimentar de todo o continente. Houve proibições ao seu plantio, que de pouco adiantaram, apesar da pena de decapitação aos infratores. O certo é que em 1625 o fumo já estava bem estabelecido no litoral da China.

No Japão o fumo chegou mais cedo, por volta de 1605, trazido pelos portugueses, partindo daí para a Coréia e daí para a Manchúria. O rei manchu, ao ver que seus soldados vendiam as armas para comprar fumo, proibiu o seu uso. Isso já havia acontecido no império Otomano, onde foram proibidos o fumo e o café, e na Dinamarca. Desnecessário dizer que essas proibições não surtiram nenhum efeito. 

O cientista alemão Berthold Laufer publicou em 1924 um trabalho sobre a história do fumo na Ásia, que encerrou da seguinte forma: "De todos os dons da natureza, o tabaco foi o mais potente fator social, o mais eficiente pacificador e o maior benfeitor da humanidade. Tornou o mundo todo aparentado e uniu-o num laço em comum. De todos os luxos, é o mais democrático e o mais universal; contribuiu em grande parte para democratizar o mundo. A palavra tabaco penetrou em todos os idiomas do globo e é entendida por toda parte". 

Johann Mauritz, aqui conhecido como Maurício de Nassau, construiu em Haia, com a fortuna obtida em suas fazendas de fumo no Brasil, um palácio que hoje é o Museu Mauritshuis, que ele inaugurou com uma cerimônia que começou com uma dança com 11 índios brasileiros, que se seguiu com um desfile de pessoas com vestimentas do mundo todo. O espetáculo terminou com os representantes das diferentes culturas seguindo para a Escola do Fumo, onde se sentaram e pediram aos índios que lhes ensinassem as virtudes do tabaco. Como se vê, já houve um tempo em que o fumo não era algo a deplorar ou abandonar. 

Meu sogro Roberto, 91 anos, foi aluno interno do Caraça, famoso colégio de padres lazaristas nas imediações de Belo Horizonte, hoje uma reserva natural. Segundo ele o ambulatório do colégio tratava os acessos de asma dos alunos com tabaco, que era disputado pelos falsos asmáticos com grande entusiasmo.

Detalhe: não sou fumante nem defendo esse hábito, ou vício. 

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