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O Mito da Criação

Podemos resumir o mistério da existência a uma pergunta crucial: "Por que existe algo e não apenas o nada?". Muitos sábios a consideram a questão mais sombria de toda a filosofia. Como se trata de uma pergunta atemporal, vejamos resumidamente como lidavam com ela as culturas pré-modernas.

De uma forma geral elas têm o mito da criação para explicar a origem do universo. O mais surpreendente ao examinarmos essas diferentes versões é verificar que elas têm muito em comum. Vamos examinar 10 dessas versões pré-modernas:

1 - O Ovo Cósmico Chinês
O primeiro ser vivo foi P'an Ku, o qual foi gerado em um ovo cósmico durante 18 mil anos, e quando chocado a casca acima dele se tornou o céu e a casca abaixo dele virou a terra. Na terra os opostos foram separados: masculino e feminino, seco e molhado, claro e escuro, yin e yang. Depois disso P'an Ku morreu e gerou o mundo como o vemos. Seus membros se tornaram as montanhas, seu sangue os rios, sua respiração o vento, sua voz os trovões, seu cabelo a grama, seu suor a chuva, seu olho esquerdo o sol e seu olho direito a lua. Existem duas versões para a criação dos seres humanos. A primeira diz que os vermes do corpo de P'an Ku se tornaram os homens. Outra diz que a deusa Nu Wa se viu refletida num lago e criou seres como ela a partir da lama, que seriam os aristocratas, enquanto os plebeus teriam sido criados quando ela agitou uma videira enlameada pelo trabalho anterior. Findo o trabalho houve um grande dilúvio, Nu Wa morreu esgotada e seu corpo, como o de P'an Ku, gerou mais recursos para o mundo. 

2 - A Lenda dos Índios Blackfoot
Segundo essa lenda o Homem Velho veio do sul, criou a terra, as plantas e os animais na sua viagem para o norte. Criou também a partir do barro uma mulher e seu filho, mostrou a eles como colher plantas e se alimentar e lhes mostrou as propriedades das ervas, ensinou como fazer armas e caçar animais, e como fazer fogo, e mais importante, como obter poder espiritual através dos sonhos. As lendas falam de um grande dilúvio, que pode ser explicado pelo derretimento dos icebergs ocorrido em torno de 5.000 aC. Findo o dilúvio o Homem Velho reuniu as pessoas em uma montanha e lhes deu águas de cores diferentes para beber, onde cada cor representava uma linguagem diferente. 

3 - A Criação do povo Sanema
Os Sanemas são uma tribo Ianomâmi que vive na floresta amazônica, onde cada tribo tem sua coleção de histórias, e seus mitos sobre a criação variam. Os Sanemas acreditam que os ancestrais originais ainda habitam a floresta. Conta a lenda Sanema que Peribo, a lua, comia a alma das crianças e que Suharina (?) lançou uma flecha na barriga de Peribo, cujo sangue derramou na terra e dele surgiram os homens. Os guerreiros surgiram onde caiu mais sangue e os menos violentos onde caíram apenas algumas gotas. 

4 - O Mito Indiano do Criador, do Preservador e do Destruidor
Com o pensamento, Brahma criou as águas, nas quais depositou seu sêmen, que se transformou num ovo do qual ele nasceu. Ainda por pensamento ele dividiu o ovo em dois e essas metades se tornaram o céu e a terra. Brahma então de dividiu em dois e formou o homem e a mulher. Observa-se então que Brahma vai se dividindo em dois até que todos os seres vivos tenham sido criados de seu corpo. Há outra versão em que o primeiro homem e a primeira mulher se reproduzem de diferentes formas até que todos os seres vivos da terra sejam criados. Brahma é o Criador, e junto com Vishnu (o Preservador) e Shiva (o Destruidor) formam o Supremo. Tudo o que Brahma cria é destruído por Shiva, e sobra apenas um vasto oceano onde Vishnu flutua em cima de uma enorme cobra. Existem versões em que Brahma nasce a partir de uma flor de lótus que nasce do umbigo de Vishnu. O mundo em que vivemos ainda vai ser destruído por Shiva, e terá início um novo ciclo.

5 - Os Quatro Mundos dos Navajos
A criação do mundo segundo os navajos é complexa. Ela tem início no primeiro mundo, o Mundo Negro, o qual continha quatro nuvens, das quais uma preta representa o sexo feminino e uma branca o masculino. Elas se juntaram para criar o Primeiro Homem, que representa o amanhecer e a vida, e a Primeira Mulher, que representa o anoitecer e a morte. Os seres foram sendo criados no Mundo Negro, o qual ficou lotado, e aí todos subiram para o Mundo Azul, dos pássaros, onde viveram em harmonia por 23 dias até que alguém tentou papar a esposa do chefe Andorinha (?). Foram então todos banidos para o Mundo Amarelo, dos mamíferos, onde havia seis montanhas onde viviam os santos, que eram imortais e viajavam no arco-íris. Então a Primeira Mulher deu luz a duas hermafroditas e em seguida a 5 gêmeos seguidos, homem e mulher. O Grande Coiote então tomou o bebê do Monstro da Água, o qual se irritou e fez a chuva, cujas águas ficaram mais altas que as montanhas. Antes do dilúvio chegar o Primeiro Homem plantou várias árvores e um canavial, o qual cresceu para o céu, o que possibilitou que ele fosse escalado pelos seres vivos, que escaparam do dilúvio e encontraram o quarto mundo, o Mundo Branco, nos qual vivemos até hoje. Complicado, não?

6 - O Mito Escandinavo do Fogo e do Gelo
Segundo os escandinavos, antes do tempo havia de um lado um lugar chamado Niflheim, composto de nevoeiro e gelo, e de outro lado havia Muspelheim, no qual moravam gigantes e demônios do fogo. O fogo de Muspelheim derreteu o gelo de Niflheim, de cujos pingos se formou uma vaca gigante chamada Audhumla e um gigante chado Ymir. Mais gigantes nasceram a partir do suor de Ymir e foram amamentados por Audhumla, que se alimentava de gelo salgado. Esses gigantes procriaram e deram luz a Odin e seus irmãos, os quais mataram Ymir e a terra se fez a partir da sua carne, o céu do seu crânio, o mar do seu sangue, as núvens do seu cérebro, as montanhas dos seus ossos e as árvores do seu cabelo. Odin então fez de Argard a morada dos desses e a ligou a Midgard (a Terra) por uma ponte a que chamou de Bifrost (assistam à série Thor). As larvas do cadáver de Ymir se tornaram anões que habitam abaixo da superfície da terra. Os deuses encontraram dois trancos de árvores em Midgard e deram vida a eles, criando Ask e Embla, o primeiro homem e a primeira mulher. 

7 - A Trágica Lenda Japonesa
É sem dúvida o mais complicado, e começa com o caos, do qual veio a matéria, que ao longo do tempo separou o céu da terra. Nesse processo nasceram várias divindades, inclusive Izanagi e Izanami, o primeiro homem e a primeira mulher, os quais deram a luz às ilhas do Japão e a uma variedade de divindades, sendo que a ultima delas foi a divindade do fogo, que no nascimento queimou os genitais de Izanami, que veio a falecer. Izanagi matou então a divindade do fogo e partiu para Yomi, a terra dos mortos, À procura de Izanami. Ela no entanto não podia retornar com Izanagi porque já tinha se alimentado em Yomi, mas disse a ele que iria pedir permissão para voltar, que ele a esperasse. Depois de um longo tempo Izanagi resolveu procurar Izanami e encontrou apenas um cadáver com vermes comento seu corpo (lenda semelhante aos mitos gregos). Como vingança ele disse que mataria 1000 pessoas por dia, ao que ela respondeu que faria nascer 1500. Por isso, a cada dia nascem 1000 e morrem 1500 pessoas todo dia no Japão. O primeiro imperador desceu então a Ponte Flutuante e se casou com a Princesa das Flores Brilhantes, mas suspeitou quando ela engravidou em seguida. Para provar sua fidelidade ela pôs fogo no palácio, já que só os descendentes do imperador sobreviviam às chamas, e deu à luz o que veio a ser os ancestrais da família imperial japonesa. 

8 - A Serpente dos Aborígenes
Para os aborígenes tudo começou com o Sonho, com o mundo frio e nu. A Serpente Arco-Íris dormia embaixo da terra com todas as tribos de animais em sua barriga. Ela então saiu e vomitou os animais e criou as leis, que todas as criaturas deveriam obedecer. Numa variação do mito ela engoliu os malfeitores e cuspiu seus ossos para formar os morros, em outra ela recompensou os que a obedeceram e lhes deu a forma humana, transformando os infratores em pedra. A Serpente é também chamada de Mulher Velha, e foi ela quem ensinou os humanos a conseguir comida. Ela deu a cada pessoa um totem e determinou que ninguém poderia comer o animal que a representava. Assim ela garantiu que haveria comida para todos. 

9 - O Sêmen Egípcio
Havia Nu, o oceano inicial, e de um ovo na sua superfície surgiu o deus conhecido como Atum, Amen, Re, Rá ou Amon-Rá, que gerou por masturbação um filho e uma filha divinos, que resultaram na raça dos deuses. As lágrimas de Rá viriam a ser os homens. Osíris, neto de Rá, se casou com sua irmã Ísis, que descobriu o nome secreto de Rá, o que fez com que Osíris tomasse o seu lugar como rei da terra. Osíris ensinou os humanos a obter comida e vinho, e Ísis a tecer e fazer medicina. Set, irmão de Osíris, o prendeu em um baú selado com chumbo e o lançou no Nilo. Ísis encontrou seu corpo, mas Set o rasgou em 14 pedaços e os atirou de volta ao rio. Ísis encontrou os pedaços, à exceção do pênis, que tinha sido comido por um peixe. Ela então criou um pênis de barro e devolveu a vida a Osíris soprando através dele.Osíris então engravidou Ísis, morrendo em seguida. Para manter o bebê Hórus a salvo ela o colocou numa cesta para flutuar no Nilo (nisso se inspirou a história de Moisés). Hórus cresceu e derrotou Set, vindo a governar a terra. 

10 - A Estrela dos Dogon 
Os Dogon vivem no Mali. Sua história começa com Amma, o deus anterior ao tempo, o qual estava só e criou a Terra. Amma se casou com a Terra, a qual deu à luz a Ogo e a gêmeos andróginos que vieram a se chamar Nommo. Ogo cometeu incesto com Terra, e daí surgiu o primeiro sangue menstrual e os espíritos do submundo. Amma então transformou Ogo num chacal, e o sangue menstrual que escorria de Terra se transformou nos corpos celestes, nas plantas e nos animais. Amma criou então as estrelas e o sol e a lua, jogando bolas de barro para o céu. Os negros nasceram sob o sol e os brancos sob a lua. 
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Os dados acima foram tirados do site Hypescience. Quem teve a paciência de seguir as 10 versões da criação descritas puderam verificar uma grande afinidade entre elas. Puderam também constatar que a inventividade humana é imensa. Se nos demorarmos um pouco sobre o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, podemos de imediato constatar que a a versão judaico-cristã não difere em muito do relatado acima. Senão vejamos:

1.1 - No princípio Deus criou os céus e a terra.
1.2 - E a terra era sem formas e vazia; e havia travas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
1.3 - E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
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1.11 - E disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi.
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1.20 - E disse Deus: produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus.
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1.26 - E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
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2.18 - E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele
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2.22 - E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.

e por aí vai. Conhecemos bem esse mito e, acreditem, a grande maioria dos judeus e cristãos crê firmemente nele, a ponto de amaldiçoar aqueles que se mostram céticos. Por estarmos mais acostumados a ela podemos alegar que ela é mais plausível que as dez acima, mas aí existe uma diferença fundamental: os mitos descritos acima tratam da Criação de forma mais abrangente, digamos pré humana, e isso acaba por dar margens á imaginação. O Gênesis dedica pouco espaço ao que aconteceu antes da decisão divina de criar o homem, mas convenhamos que a sua descrição da Criação é tão fantástica quanto as outras. 

O mito judaico/cristão/islamita, por ser monoteísta, é mais "pobre" em profusão de deidades, o que o torna menos fantástico. Mas pesquisando o Google à procura de assunto para este Post me deparei com uma informação impressionante a respeito de uma tribo de 400 pessoas apenas que habita uma área do município de Humaitá, Am. Trata-se dos índios pirarrãs, tribo esta que possui a característica curiosa de que seus membros não acreditam em nada que não possam ver, sentir, ou ser provado ou presenciado. Daí eles não acreditarem em um espírito supremo ou divindade criadora, apenas em espíritos menores que tomam a forma de coisas do seu meio ambiente. Para eles o céu e a terra sempre existiram, ninguém os criou.

Nos anos 70 o missionário americano Daniel Everett conviveu com essa tribo, estudou sua língua e tentou evangelizá-la, sem sucesso, porque os índios descobriram que Everett nunca tinha visto Jesus, o que o descredenciava como indivíduo confiável. O impacto dessa convivência com um grupo tão primitivo e ao mesmo tempo tão sábio acabou por fazer com que Everett se tornasse um ateu.
Everett fez mestrado na Unicamp em 1978, conheceu Darcy Ribeiro, que voltava do exílio, e decidiu se enterrar na região pirarrã. Segundo ele, ao perceber que o que ele tentava transmitir não despertava o menor interesse, ele então passou a perceber que não podia mais sustentar essa crença em si próprio. Para ele a evangelização passou a ser encarada como danosa, tanto que sua filha, que continua entre os pirarrãs, não fala mais com ele sobre seu trabalho. Essa história me impressionou. 

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