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De volta ao Ceticismo

Nos últimos Posts eu acabei por me desviar do assunto que me levou a embarcar nessa tarefa de gerenciar um Blog: o Ceticismo. Isso se deveu principalmente porque eu entendi que o momento político por que estamos passando é tão importante que merecia uma atenção maior. Estava enganado porque o que vemos, às vésperas de uma eleição que eu entendo como a mais importante para a nossa jovem e frágil democracia, é um baralho onde não sabemos onde se encontra o coringa. Não temos um estadista em quem depositar as nossas esperanças, e isso é de uma tristeza atroz.

Na verdade o mundo conseguiu, não sei bem por que, chegar a uma situação em que não vemos com facilidade estadistas nas nações mais importantes:
  • Obama não é um estadista
  • Putin é mais um trator que um estadista
  • Muito menos Cameron ou Hollande
  • Os asiáticos não contam porque pouca gente por aqui sabe os nomes deles: Li Keqiang da China e Shinzo Abe do Japão (?)
Acho que só a Angela Merkel se aproxima daquilo que eu entendo como um Estadista, aquele em quem a sociedade que ele lidera confia e lhe dá autoridade para tomar as medidas necessárias, mesmo que complicadas. 

Portanto, nas vésperas da eleição de outubro nós vamos voltar ao tema do Ceticismo, tentando com isso dar um tempo nessa fase de verdadeiro bombardeio da mídia em uma campanha que bate todos os recordes em termos de falta de compostura. Vamos falar de um homem que eu entendo ser o mais importante entre todos aqueles que criaram a sociedade moderna: René Descartes.

Que tal você ser chamado ora como o "fundador da filosofia moderna", ora como o "pai da matemática moderna"? Só isso o coloca como um dos pensadores mais importantes e influentes da história do pensamento ocidental. Quando pensamos no conhecimento adquirido no despertar da modernidade, a primeira área que vislumbramos é a astronomia. Isso me parece plenamente justificável por dois motivos:
  • O céu está ao alcance da visão de todos nós os habitantes deste planeta, com sua beleza que altera a tonalidade do azul do dia para a noite, com seus astros a nos contemplar de sua altura até então inalcançável; nada melhor que esse mistério onipresente para despertar nossa curiosidade.
  • A Igreja insistia tolamente em defender o sistema geocêntrico, o modelo cosmológico defendido por Aristóteles e Ptolomeu, o qual se baseava na hipótese de que a Terra estaria parada no centro do Universo, com os corpos celestes, inclusive o Sol, girando ao seu redor. 
A atitude tomada pela Igreja era de uma fragilidade enorme e isso gerou um movimento em torno do tema, que ganhou notoriedade ao estabelecer o divórcio definitivo entre o dogma religioso e o pensamento científico, e culminou com o julgamento de Galileu perante a Santa Inquisição.

Outra área que de certa forma sofreu forte mudança na mesma época foi a do conhecimento do corpo humano. É interessante verificar que a expectativa de vida na França de Descartes era de 28 anos, e na Inglaterra de 37 anos. Mais da metade das crianças nascidas em Londres na época da Revolução Americana morriam entes de chegar aos 15 anos de idade. 

As coisas mudaram muito desde essa época. Nós demos permissão a que a ciência e a tecnologia invadissem os nossos corpos, que passou a ser encarado como uma máquina, onde a doença é vista como uma falha mecânica e a cura se dá pelo concerto das partes danificadas dessa máquina, e onde o médico passou a cumprir o papel do mecânico, que usa os medicamentos como ferramentas. Esse modelo foi concebido e ganhou vida a partir das ideias de Descartes. 

Essa nova maneira de encarar o corpo humano foi imediatamente aproximada do ateísmo. Isso porque ela era francamente contrária à escolástica, uma mistura da teologia cristã com o pensamento grego. A visão aristotélica do mundo o dividia em quatro elementos: terra, ar, fogo e água. A eles correspondiam os fluidos do corpo humano: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela. As doenças derivavam do desequilíbrio entre esses fluidos. 

Isso dava margem a todo tipo de especulação, que passava pela medicina popular, a bruxaria, o cristianismo com suas crenças, até mesmo a astrologia, e levou Molière a dizer que "a maioria dos homens morre dos remédios, não das doenças". As curas eram perseguidas por uma leitura astrológica, um amuleto, um exame de urina ("o que diz o médico de minhas águas?" (Shakespeare)).

A medicina só lograria êxito se fossem oferecidas preces para que seus poderes fossem liberados. Basear-se apenas nos remédios era visto como algo contrário a Deus. Agir de modo contrário era colocar a matéria acima do espírito, era algo que se aproximava perigosamente do ateísmo. 

É bem verdade que pouca coisa mudou. O que vemos nos dias de hoje são bilhões de pessoas adotando crenças similares, onde o físico e o espiritual são igualmente necessários. Elas obtêm os diagnósticos, mas ao mesmo tempo pedem a Deus por uma cura milagrosa. Essas pessoas somos nós, os membros da sociedade do século XXI.

Chegamos assim ao conflito entre a fé e a razão, A nossa tendência é achar que a fé é antiga e a ciência é nova, mas o que vemos nos dias de hoje é uma exacerbação da fé, a começar com o terrorismo islâmico, que além de ser antiocidental é também antimoderno. A intolerância religiosa está presente em todas as religiões, a começar pela mais ocidental de todas, o cristianismo.

Além do problema religioso existe o ideológico, que abrange aqueles que entendem que a modernidade está superada, que os desenvolvimentos do mundo pós moderno estão se tornando inúteis. Para esses a modernidade implica em colonialismo, exploração dos povos menos modernos, uso da ciências para fins escusos, catástrofe ambiental. Esses novos ideólogos, surpreendentemente, entendem que tampouco a religião é digna de crédito, por ter promovido ao longo do tempo inúmeras guerras e divisões baseadas no preconceito.

Mas o que Descartes tem a ver com tudo isso? Foi ele quem lançou as bases intelectuais de todo o programa da modernidade, no qual se fundamentam a moralidade, a lei, a política e a organização social. O seu "método" envolve questionar todos os pressupostos, não afirmar nada baseado na fé e construir uma compreensão do mundo a partir de observações comprováveis em vez de pela tradição. O conhecimento deixa de ser baseado na autoridade, mas sim na mente individual de cada um, o que nos levou ao desenvolvimento de todas aquelas coisas que consideramos modernas, a começar pela democracia, que não é mais que coletivização da mente de cada um de nós.

A proposta de Descartes, numa época de fé, foi condenada como herética. No entanto ele era um católico praticante, que foi levado a se aprofundar nas suas ideias em função da morte da sua filha de 5 anos. Para ele o entendimento do mundo  tinha que passar pelo questionamento de tudo, e assim foi criado o método científico e a religião passou a ser contestada nas áreas onde a ciência passou a se libertar da fé.

Acho que este é um assunto que permanece atual em decorrência da grande crise por que estamos passando, onde 12.000 jovens de 81 países migram para o Oriente médio para se juntar a um Estado Islâmico que massacra minorias religiosas, escraviza meninas e impõe uma lei que o autoriza a decapitar pessoas em frente a uma câmera. 

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