Pular para o conteúdo principal

Minha homenagem a Zeca e Ana Maria

Vamos começar pelo Zeca Pagodinho. Minha convicção é que, sem sua presença no dia a dia daqueles que sua música atinge, a vida deles seria muito mais triste. Essa convicção nasceu da minha convivência com o seu repertório, de ter lido o livro de Jane Barboza e Leonardo Bruno (Zeca - Deixa a Vida me Levar, Editora Sonora), mas também após ter lido uma crônica de Arnaldo Jabor a respeito desse ícone da nossa música de raiz, que eu, na impossibilidade de escrever algo semelhante, reproduzo aqui:

Pagodinho é o malandro contra os pilantras
Arnaldo Jabor
O sucesso de Zeca Pagodinho tem uma importância para além da música. Zeca Pagodinho lembra meu avô. Eu vivi até os 8 anos no Rocha, subúrbio perto do Méier no Rio, ao lado da casa de meu avô, que era um perfeito carioca. Meu avô foi um belo retrato do Brasil dos anos 40/50. Era um malandro carioca - em volta dele, gravitavam o botequim, a gravata com alfinete de pérola o sapato bicolor, o cabelo com Gumex, o chapéu-palheta, o relógio de corrente, seu "Patek Phillipe" tão invejado; em volta dele ressoava a língua carioca mais pura e linda, com velhas gírias ("Essa matula do Flamengo é turuna!..."). Meu avô era orgulhoso de viver nesta cidade baldia e amada, o Rio que soava nas ondas do rádio, o Rio precário e poético, dos esfomeados malandros da Lapa, das mulheres sem malho e de seus sofrimentos românticos, entre varizes e celulite. Antes de morrer, ele me olhou, já meio lélé, e disse a frase mais linda: "É chato morrer, seu Arnaldinho, porque eu nunca mais vou à Avenida Rio Branco."

Por isso, ele me lembra o Zeca Pagodinho  - ou melhor, o contrário - mas, tanto faz, porque não falo do Zeca por nostalgia não, nem por "amor às raízes" nem por um regressismo babaca a uma "autenticidade brasileira". Não é nada disso. Ele não nos traz nada "de volta". Zeca apenas reafirmou uma música e um comportamento carioca que sempre estiveram aí e que andavam soterrados debaixo dessa montanha de superficialidades que a indústria cultural produz, transformando os sambistas em bandos de neguinhos oportunistas que dançam com sorrisinhos de puxa-sacos na TV, com bundas de mulatas voando pelos palcos. As velhas-guardas eram "guardadas" como tesouro para nostálgicos se deliciarem. Zeca foi lá e tirou a velha-guarda do gueto e provou que a grande música popular continua a ser produzida nas periferias; só não é distribuída. Zeca revitaliza o partido alto, o samba de terreiro, a ética popular dos subúrbios e revela talentos desconhecidos que não tocavam no rádio. Zeca se vinga e vende milhões de discos. Zeca prova que o popular pode ser profundo, uma luz nova para re-vitalizar o país.

Zeca está fazendo esse sucesso imenso não apenas pela qualidade de seu trabalho. É também porque ele traz com seu carisma, um comportamento que existe na lembrança, quase no DNA dos brasileiros. Ele traz gestos, olhares, um jeito de cantar com a voz vagamente debochada, entre desconfiada e esperta dos antigos malandros com sua sabedoria inculta de fugir do trabalho, dos "safados" (os negros que se safavam), que tinham a inteligência "crítica" da vagabundagem carioca, recusando a exploração e saindo de banda para o prazer e a "viração".

Depois do período vergonhoso dos pagodes de butique, dos "tchans" na boca-da-garrafa, Zeca Pagodinho nos trouxe o fundo de quintal do subúrbio, o cabrito do seu Benedito, trouxe a cachacinha das mesas de botequim, a cervejinha musical, trouxe o doce machismo de malandros sofrendo por "patroas" e vadias, trouxe a elegância dos homens que sabiam dos perigos da vida, das sacanagens que a policia, políticos e patrões sempre aprontaram para os poetas populares.

Vivemos hoje num tempo em que os pobres são vistos ou como criminosos ou como desgraçados. As elites acham que pobre ou morre na enchente ou mata nas ruas. Zeca coloca no ar a voz pacífica e "desgrilada" dos desvalidos, seu ritmo de viver. Zeca traz um tempo mais calmo, uma fala e um canto mais lentos, cheios de gingas e fintas, zanzando no ritmo de viver suburbanamente, longe da velocidade infernal dos clipes, zips e zaps. Não há pressa, não há sufoco, mesmo dentro do sufoco; há uma satisfação conformada com o dia-a-dia sofrido, mas esperançoso: "é..cumpadi...tá ruim, mas vai melhorar...".

Depois de 68, (politicamente) e depois dos anos 80 (culturalmente), creio que alguma coisa essencial se havia perdido no Brasil. O malandro carioca - e tudo que ele inventou de leveza de preto forro, com o salto bailarino de escapista do "batente" -  virou um pivetinho de fincaria. Nos anos 30 e 40, o malandro e sua cultura, principalmente na música popular, encarnavam a inconsciente defesa de um mundo livre, numa linhagem clara desde "o tempo do Rei". Perdeu-se o floreio, a delicadeza de um cotidiano material pobre, mas nítido, precário, mas habitado por personagens dignas e orgulhosas de sua tradição, no meio do banzé das classes urbanas.

Depois, o malando foi substituído pelo pilantra. O simplismo da indústria cultural de massas criou um empobrecimento artístico proposital. O malandro, essa figura meio "malazartes" de nossa história tinha uma linguagem e uma ética. No início dos anos 70, o pilantra triunfa com Simonal, Carlos Imperial, duplas malemolentes como Antônio Carlos e Jocafi, Brazucas etc... Surge o malandro de "mercado", o malandro querendo descolar um lugar na sociedade do "milagre". Os malandros tinham sumido. Zeca re-apresentou-o, hoje, nessa terra de corruptos e picaretas. O pilantra é o malandro oportunista.

Zeca com sua voz, com seu ritmo e tom, com os objetos de seu mundo nos propõe até mesmo uma mensagem política - sem pensar nisso, claro. Ele canta desconfiado dessas modernidades escrotas que nos cercam. Ele recupera o olho-vivo, um olho no gato outro no peixe fritando, ele não se deixa enrolar, deixa a vida lhe levar, não acreditando em mumunhas de "globalização" e coisa e tal, pois sabe que está "assim de gavião" em cima de nós, dentro e fora do Brasil. Zeca nos lembra que temos de viver o mundo de hoje, que temos o direito também de comer caviar, mas sem esquecer que não podemos tirar muita "chinfra", porque passamos séculos "vivendo na vala e pescando muçum"...

Ao ler esse texto maravilhoso concluí que Zeca Pagodinho, para os que convivem com a sua obra, tem o papel do Messias que veio tornar as nossas agruras mais suportáveis. Isso não é pouco, como mostra a maravilhosa interpretação reproduzida abaixo:


Tudo bem, mas e quem não tem intimidade, ou tem um certo preconceito, com a proposta do Zeca, o que fazer? É aí que surge Ana Maria Braga. As manhãs de segunda a sexta, após o Bom Dia Brasil da Globo, são inundadas pela mensagem de otimismo disponibilizada por ela e seu Louro. Engana-se quem acha que o programa é destinado apenas ao público feminino. Seu alcance vai além das barreiras de gênero, raça, nível intelectual, poder aquisitivo, enfim, todas essas fronteiras que fazem do Brasil um dos países mais desiguais do planeta. 

Após me aposentar em 2.006 eu tive que organizar a minha vida de uma forma tal que a melancolia passasse longe dos poucos anos que ainda tinha para viver, Minha rotina hoje se resume a poucas atividades. mas todas elas são planejadas de modo a me trazer alegria:
  1. Acordar,
  2. Dizer pra minha esposa que a amo,
  3. Fazer a tapioca que ela tanto aprecia e o meu ovo frito na manteiga salpicado com orégano,
  4. Assistir ao Bom Dia Brasil, de olho nas chamadas da Ana Maria.
  5. Minha mulher saiu com o carro pra Yôga ou pra musculação, e eu fico assistindo à Ana Maria até ela voltar,
  6. Sigo então para a minha ginástica, sem antes verificar as chamadas do programa; se me sentir provocado eu fico mais um pouco. 
  7. etc, etc. 
Nesta terça feira, 13 de setembro, tive uma comprovação clara da importância dessa Dama da Mídia. Uma Professora de Canto de Marília (SP) escreveu para a produção pedindo apoio para uma garota de 13 anos que, na sua opinião, podia vir a ser um fenômeno da música clássica. Tratava-se de uma garota sem os recursos necessários a se lançar por sua conta nesse universo tão restrito. Os vídeos abaixo mostram o que aconteceu (tenham paciência com os anúncios, porque os vídeos compensam):




Esqueçam por um momento o fato de que estamos assistindo a um programa essencialmente dedicado às donas de casa, já que nesse horário pretensamente a televisão é delas, e respondam às seguintes perguntas:
  • Que outro programa da TV aberta aborda um assunto como esse de forma tão acessível? 
  • Qual será o efeito dessa mensagem para aquelas crianças que têm consigo um sonho que lhes parece impossível? 
Essa é a proposta da Ana Maria: levar uma mensagem de esperança àqueles que enfrentam o seu dia a dia numa labuta que quase nunca retribui à altura o esforço despendido. Ela e o Zeca estão juntos nessa tarefa de tornar mais suportável a existência da nossa pobre população, abandonada à sua sorte pelos representantes que ela ainda não sabe escolher. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Civilidade e Grosseria

  Vamos iniciar este Post tentando ensaiar teatrinhos em dois países diferentes: País A O sonho do jovem G era ser membro da Força Aérea de A, mas na sua cabeça havia um impedimento: ele era Gay. Mesmo assim ele tomou a decisão de apostar na realização do seu sonho. O País A  não pratica a conscrição, ou seja, ninguém é convocado para prestar serviço militar. Ele está disponível para homens entre 17 e 45 anos de idade. G tinha 22 e entendeu que o curso superior que estava fazendo seria de utilidade na carreira militar. Detalhe: há décadas o País A tinha tomado a decisão de colocar todos os ramos militares em um único quartel, com a finalidade de aumentar o grau de integração e a logística. Isso significa a Força Aérea de A está plenamente integrada nas Forças de Defesa de A. Tudo pronto, entrevista marcada, o jovem G comparece à unidade de alistamento e é recebido com a mesma delicadeza que aquele empresário teria ao se interessar por um jovem promissor de 22 anos. Tudo acertado, surgi