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Orçamento Doméstico x Contas do Governo

Neste Post vamos cumprir a promessa de tratar desse importante assunto, que se torna ainda mais importante em função da situação que estamos vivendo, a pandemia da Covid 19. Para tanto vou me basear num artigo muito interessante publicado no site da UOL por Laís Alegretti, uma jornalista que acompanho sempre que posso. 

Laís traça com competência um paralelo entre uma pessoa cheia de dívidas e um governo que não é eficaz na administração das suas contas. Essa comparação faz parte de repertório dos políticos de forma geral, e Michel Temer chegou a envolver Margareth Thatcher nessa armadilha. Segundo ele a Dama de Ferro teria dito:

"O Estado é como uma casa, sua casa, a casa da sua família, você não pode gastar mais do que arrecada."

Procurei no Google as suas famosas frases e o mais perto disso que encontrei foi:



O nosso arremedo de Margereth Thatcher, a pseudo economista Dilma, na sua linguagem confusa, se alongou um bocado pra tentar dizer que:

"Nós precisamos também fazer ajustes. Eu faço ajuste no meu governo como uma mãe, uma dona de casa, fazem na casa delas. Nós precisamos agora dar condições de a gente retomar um novo ciclo de desenvolvimento econômico para gerar mais emprego, para assegurar mais renda e para fazer que o Brasil continue a crescer de forma acelerada." 

Pra que não me rotulem ideologicamente vamos ver o que diz uma eminência do outro lado do espectro político:

Onyx Lorenzoni: "É que nem o pai, que tem um salário e sabe que tem que comprar o vestido de 15 anos da filha lá em outubro, mas ele está em maio. Aí, ele vai vendo o que vai entrando, o que vai gastando, e diz: 'ih, pode ser quem não dê, então não vou sair para comprar churrasco, não vai ter cervejinha no final de semana, eu não vou comprar o tênis do João." 

Os economistas de forma geral concordam em que esse é o tipo de argumento que cabe muito bem numa campanha política, não na prática. Senão vejamos:
  • Você não tem a liberdade de imprimir dinheiro para pagar suas eventuais dívidas,
  • Também não tem o poder de determinar que seus vizinhos sejam obrigados a dar uma contribuição mensal para o pagamento das suas dívidas,
  • Muito menos pode sair imprimindo notas promissórias para vender aos conhecidos por R$ 1.000 com a promessa de daqui a cinco anos comprá-las por R$ 1.300 por exemplo. 
Ou seja, os gerentes das contas públicas possuem ferramentas que não estão ao alcance dos gerentes das economias domésticas. As vendas de Letras do Tesouro por exemplo são atividades permanentes que elevam a dívida pública federal ao bel prazer dos governantes. Leio hoje no Site do Senado que se o déficit de 9% nas contas públicas em 2.020 se concretizar, a dívida pública pode chegar a 90% do Produto Interno Bruto, o chamado PIB. Traduzindo, o Governo Federal pode chegar ao fim do ano com uma dívida que seria equivalente para uma família a 90% da soma dos salários anuais de seus membros. 

Hoje em dia está na moda governos recorrerem à pura e simples impressão de dinheiro para saldar seus compromissos. Leio também que o Banco Central vai imprimir mais dinheiro para pagar o Auxílio Emergencial decorrente da pandemia da Covid. Se você por acaso apelar para esse expediente vai acabar na cadeia.

Outro expediente comum por parte do poder público é criar o chamado "spread" nas contas dos bons pagadores para compensar o que os maus pagadores não pagam. Se ele não está praticando isso normalmente, ele dá aos agentes financeiros a permissão para que o façam com a conta corrente que você tem com eles. É comum também, principalmente nas contas das concessionárias dos serviços públicos, aparecerem os tais fatores de risco sob a forma de taxas. 

Como considero importante esse assunto vamos passar à análise rápida das diferenças entre um orçamento doméstico e um orçamento de governo.

1 - Definição da Renda

Um trabalhador pode procurar um aumento de salário, ou um resultado maior no seu negócio, mas não tem o poder de definir quais as chances dessa procura vir a dar resultado. Ou seja, as famílias não definem suas rendas, elas são definidas pelo mercado e cabe às famílias se adaptar aos seus humores. 

O governo possui ferramentas que as famílias não têm, embora seu uso em geral não seja recomendado. Ele pode simplesmente criar novos tributos ou aumentar a alíquota dos existentes. Seria algo como eu chegar ao meu patrão e impor a ele um aumento de salário que ele seria obrigado a dar. 

Estamos passando por isso nesse momento em que finalmente nossos governantes revolveram investir na tentativa de resolver a balbúrdia que é a nossa arrecadação tributária. Fala-se de tudo, simplificação, justiça tributária, menos de garantir que o resultado das várias propostas seja uma diminuição da carga. Uma família resolve esses assuntos exatamente atacando o outro lado do problema: o gasto. 

A dificuldade maior de um administrador do Tesouro Nacional a meu ver é perceber a fragilidade do equilíbrio fiscal. É o que os engenheiros (sempre recorrendo á formação que tive) chamam de "realimentação positiva". Diz o bom ditado que o imposto bom é aquele aumenta a arrecadação e diminui a sonegação, ou seja, você vai pagar de bom grado o imposto até a hora em que vai entender que o retorno que tem da contribuição que faz não compensa. Também não faz sentido ordenhar da vaca mais que o leite que ela tem.

2 - Imprimir Dinheiro

A possibilidade de imprimir dinheiro, exclusiva do dono da moeda, em uma intensidade maior pode gerar muito desequilíbrio. Na medida em que a moeda se torna mais abundante no mercado, aumenta a procura por bens e a inflação bate à porta. É a velha lei da oferta e procura.

A globalização dos mercados mundiais "bagunçou" bastante esse conceito e ele está sendo aplicado em profusão pelos maiores devedores mundiais, em especial os Estados Unidos, sob o argumento que sendo ele o devedor e dono da moeda, basta imprimi-la e pagar a dívida. Com isso ele roda a economia. 

Vejamos como faz o "gringo": 
  • Ele precisa de dinheiro. Quando falo em dinheiro nesse caso estou falando de alguns trilhões de US$.
  • Então ele imprime esse dinheiro e com ele compra de volta as Letras do Tesouro que tinha vendido ao mercado.
  • Propositadamente ele deu um jeito de desestimular que o mercado voltasse a comprar as tais Letras porque a remuneração atual delas está muito baixa, logo o mercado vai ter que aplicar esse dinheiro em outro lugar.
  • Por exemplo em atividades produtivas (isso explica no nosso caso o atual crescimento da bolsa em plena pandemia)
  • Ou vai procurar fora de seu território melhores aplicações. Essa oportunidade nós estamos perdendo por não oferecer condições que garantam o cumprimento dos contratos, e agora temos essa história dos investidores imporem as condições ambientais que estamos dilapidando.
  • Quando o taxa de retorno das nossas Letras do Tesouro davam remunerações imensas, já que o risco que elas ofereciam só motivavam o investidor se a remuneração fosse grande, esse dinheiro vinha pra cá na forma meramente especulativa. O resultado era uma derrama de dólares que forçava a sua queda em relação do Real e fazia a alegria da nossa classe média que ia comprar enxovais de todo tipo em Miami e Nova York.
  • Além disso há o fato de o Dólar se tornar competitivo em relação às outras moedas, para irritação dos seus credores. 
Os Estados Unidos não são os detentores da primazia desse tipo de manobra. O nosso governo passado fazia a mesma coisa de forma interna, o que levava o Presidente do Banco Central a se irritar com o Ministério da Fazenda:
  • O esforço de controlar a moeda era grande, para evitar que a inflação crescesse com a disponibilidade da mesma.
  • O governo insistia em prestigiar os tais "Campeões Nacionais" financiando artificialmente os Joesleys e os Eikes da vida, inundando o mercado com moeda, através do seu Banco de Desenvolvimento.
  • Isso gerava inflação
3 - Taxas e Prazos das Dívidas

Eu mesmo tenho letras do Tesouro Direto para pagamento em 2.030, as chamadas Tesouro IPCA+ 2.030. Pra minha sorte existem pessoas interessadas em comprá-las de mim caso eu precise do dinheiro, mas o Tesouro só vai remunerá-las ao seu proprietário em 2.030. Os juros que ele vai pagar também já estão definidos na Letra; por exemplo a taxa Selic, ou a inflação. Na medida em que for se aproximando o vencimento dessas letras ele sempre tem o expediente de assumir novos compromissos para remunerar as existentes.

Isso quando eu sou credor e o governo me deve. Já quando eu tomo emprestado dinheiro no banco, coisa que raramente faço, se quiser rolar a dívida vou ter que negociar em uma condição muito pior que o governo. Daí que ele tem uma enorme capacidade de sustentar uma condição de déficit grande. Ele tem muitos amigos e sabe como tratar com eles.

4 - Relação entre Receita e Despesa

Não serei ingênuo em defender que o brasileiro tem uma exata noção de como tratar essa relação. Mas vejamos. 

Vamos supor que eu tenho um salário fixo e deixo de fazer uma despesa contínua, por exemplo deixar de fumar. Essa decisão não vai afetar a minha receita mas vai alterar a relação receita / despesa. 

Já o Estado ao gerar uma despesa tem sempre que levar em conta de onde ele vai tirar a receita para cobri-la. Ou seja, o salário que o Estado recebe tem que ser elástico e o seu caixa tem que estar preparado para as eventualidades de forma muito mais séria, já que a sua "família" é muito maior.

Li hoje que a Alemanha provavelmente será a nação que vai sair em vantagem na pós pandemia. Isso vai se dever ao fato que ela é mais disciplinada no trato dessa relação. Sua dívida está controlada, sua reputação quanto à excelência de seus produtos é conhecida, sua capacidade tecnológica é evidente. Mas o que mais contribui para fazer a diferença na crise é como esta está preparada para enfrentá-la. 

O seu sistema governamental centenário que cuida das relações de trabalho paga às empresas para que elas mantenham os trabalhadores em jornadas mais curtas durante as crises temporárias. A Austrália também tem um programa semelhante, que eles chamam de "job keeper (guardião do trabalho)". 

Trazido para o ambiente doméstico a palavra mais adequada que eu encontro é "colchão". Você tem que se disciplinar para enfrentar a eventualidade, e nisso nós como sociedade somos muito incompetentes, e não temos como nos queixar da igual incompetência dos nossos governantes. Eles são nós, e nós somos eles.

5 - Títulos da Dívida como Poupança

Esse argumento é muito usado pelos governantes para justificar o uso das ferramentas que possui. Eles o chamam de "papel macroeconômico importante". Para eles o governo deve ter uma dívida porque é com a compra dos títulos dessa dívida que nós programamos a nossa poupança. Ou seja, se o governo não se endivida o cidadão não tem uma educação econômica que lhe permita investir em poupanças mais sofisticadas que a famosa Caderneta ou nos Fundos de Renda Fixa, esses sim seguros (embora estejam remunerando quase nada hoje em dia).

Aí então surgem as diferentes correntes da economia, que acabam por se converter em correntes ideológicas pelos políticos: o que o governo deve fazer com o dinheiro que recolhe se endividando, dinheiro esse que é nosso, a poupança para garantir o nosso futuro ou para melhorar nosso presente. 

Uma corrente, chamada keynesiana, defende que o governo, em tempos de crise, deve aumentar sua dívida para evitar o colapso econômico.

A outra corrente, a liberal, defende o corte dos gastos nessas situações. 

Daí a chamar uma corrente de esquerda e a outra de direita é um pulo, que os políticos usam em suas tribunas. 

Nesse momento que estamos vivendo essas duas correntes se digladiaram pra valer: a equipe econômica resmungou mas, diante do tsunami que nos atingiu, acabou por concordar com o tal auxílio emergencial, que no fim das contas deu um alento à nossa combalida economia. Ponto para Keynes. 

Aí é que vemos a grande diferença entre o orçamento doméstico e o público. Enquanto o cidadão perdia emprego, cortava a escola privada dos filhos e o iFood, dava graças a Deus por trabalhar em casa, em resumo assumia a corrente liberal de cortar as despesas, o poder público tomava atitude contrária, em que pese o negacionismo dos liberais da linha de Chicago. 

Nessa hora a "manada" quer do governo exatamente aquilo que acabou, dentro das nossas obvias limitações, acontecendo, um afrouxamento em todos os dogmas liberais que têm dominado a nossa política nos últimos anos. 

A doméstica tendeu à liberalização, a pública tendeu à socialização....

Comentários

  1. Mais uma vez o ceticismo instigante passeia na visão do engenheiro que foi treinado para resolver problemas.

    Essa aula reforça a minha percepção de que economistas são ótimos no retrovisor.

    Engenheiros olham nos vazios na névoa da guerra e procuram a visão de como vencer as tempestades e as tesouras de vento que podem estar à frente.

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  2. Caro Chico
    Quase dediquei esse rascunho a você por entender que nesse assunto o meu pensamento se aproxima bastante do seu.
    Um abraço

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