Pular para o conteúdo principal

O Livre Arbítrio e a Pandemia

Dia desses tive que cruzar a Av. Moraes Salles vindo pela Francisco Glicério; pra quem não conhece Campinas seria algo como cruzar a Ipiranga e a São João, cruzamento imortalizado por Caetano. Ou a Rio Branco e a Presidente Vargas no Rio.

Pois bem, o sinal fechou e não havia ninguém pra me dizer "olá como vai" pra eu entabular um papo a la Paulinho da Viola. E esse sinal demora a abrir. Não me restou outra saída senão me irritar com ele e questionar se fechar um sinal de trânsito não agride o meu livre arbítrio. Ao chegar em casa procurei na Wikipedia o significado de livre arbítrio e achei:

Livre arbítrio ou livre alvedrío (?) são expressões que denotam a vontade livre de escolha, as decisões livres. É a capacidade de escolha autônoma realizada pela vontade humana. 

A devida avaliação desse termo na verdade tem sido a questão central de toda a história da filosofia, e mais recentemente tem ocupado um importante papel nas diversas áreas da ciência. Tomemos por exemplo o caso do sinal fechado. Numa sociedade de carros totalmente autônomos os semáforos deixarão de existir, e a escolha de quem vai passar primeiro pelo cruzamento vai ser resultado de um bate papo entre os robôs que estarão nos conduzindo. Nosso livre arbítrio foi delegado a eles; viramos objeto em suas mãos, os algoritmos nos venceram. 

A conclusão a que chegamos é que, no instante em que nossa vista consegue alcançar outro ser humano, nossa noção de liberdade passa a ter limites, e eles são definidos em comum acordo com a liberdade das pessoas que estamos enxergando, agora inclusive de forma virtual. Duas pessoas chegando ao mesmo tempo na escada rolante de um shopping center devem ter sido educadas a concluir de quem é a preferência. A isso a chamamos de Solidariedade, que não é mais que considerar a vida dos outros como uma extensão da nossa. 

As convenções sociais, as normas, as leis, não são mais que soluções encontradas pela sociedade para definir quais os procedimentos necessários a tornar os agrupamentos humanos toleráveis. Parar no sinal vermelho, embora não seja o ideal se na outra via não há trafego, aqui em Campinas é o melhor que o poder público pode nos oferecer para que se evitem acidentes.

Vejamos agora a Pandemia do vírus da Covid19. Podemos dizer que um ser humano contagiado possui uma infinidade de micróbios com uma capacidade letal comparável à de um automóvel num cruzamento. E mais: esse pequenos automóveis sabem que se conseguirem matar a sua cidade (que é o contagiado), vão morrer junto com ela. Então eles promovem uma estratégia que na minha imaginação eu chamo de instinto de preservação, provocando no contagiado reações que os lançam pra fora do corpo, na forma de tosse, espirro, e mesmo usando a respiração para cruzar o sinal vermelho e atingir outra pessoa.

Somos então pessoas largadas nessa infinidade de cruzamentos nos agrupamentos em que vivemos, os chamados potenciais transmissores, ou receptores. Assim sendo não existe nenhuma razão para que alguém possa se colocar acima dos demais, se negando a colaborar com a comunidade na precaução contra a infecção. A rejeição da vacina ou da máscara revela o desprezo pelo outro, uma atitude antissocial extremamente maléfica.

Vez por outra a sociedade passa por esses dilemas de ter que decidir entre a sua liberdade ilimitada, seu livre arbítrio, e o interesse coletivo. Recentemente passamos pela obrigação do uso do cinto de segurança, pela proibição de fumar em locais fechados, e houve uma reação que, se levarmos em conta o efeito que a Covid19 causou, foi muito menor que a atual. O normal seria que a sociedade aceitasse combater melhor um agressor, senão muito mais forte que o trânsito ou o tabagismo, pelo menos de uma visibilidade muito maior.

O motivo dessa reação é resultado de uma estratégia negacionista de governantes por todo o mundo, e em particular aqui em nosso país. É uma estratégia usual dos líderes populistas apelarem para factoides que levam seus seguidores a se considerarem tolhidos em seu livre arbítrio, e nosso atual governante explora isso com muito sucesso. Segundo o Ibope 75% dos adultos brasileiros se dispõem a tomar a vacina contra a Covid19, 20% dizem que talvez tomem e apenas 5% se recusam a fazê-lo,

Com base nesses dados cabe uma pergunta: então por que a obrigação de tomar a vacina? Meu amigo Carlos, de ascendência asiática, afirma que no país de seus antepassados ninguém foi obrigado a fazer nada até agora com respeito à pandemia. A obrigação é uma atitude que vem de dentro. resultado de uma cultura que possui um elevado sentimento de Solidariedade. A máscara por lá não é novidade, e é comum que turistas dessa região sejam ridicularizados por estarem protegendo seus anfitriões usando máscara. Ou retirando o lixo dos locais públicos. 

Não é por acaso que os líderes mundiais que respeitam a ciência e propõem normas baseadas nela sejam mais bem avaliados nas sociedades evoluídas culturalmente. Digo culturalmente para evitar a confusão como a que ocorre por exemplo nos Estados Unidos, onde a coisa está realmente complicada.

Vou dar um exemplo: um professor da Universidade Georgetown, Lawrence Gostin, defendeu que a prioridade racial na aplicação da vacina era "um imperativo ético, devido ao racismo estrutural histórico, que resultou em um tratamento desigual de todos os tipos de doenças". Ele foi apoiado pela Reitora da Universidade George Washington, Daina Bowen Matthew. Pois bem, fiquei surpreso ao ler que uma senhora declarou que "como mulher negra não vou de forma alguma me pôr na linha de frente para essa vacina" e encerrou o papo com duas palavras: "Tuskegee Study". Procurei na Internet o que ela quis dizer com isso. Trata-se de um estudo feito há tempos em que o tratamento da sífilis era negado aos homens negros de uma área para que o progresso da doença fosse estudado. O racismo endêmico leva os negros a desconfiarem dessa iniciativa de os colocarem como candidatos prioritários a receber a vacina. Aos interessados: Experimento de Tuskegee .

Resumo da ópera

1 - Se os 75% adultos dispostos a tomar a vacina o fizessem (o que é altamente duvidoso), realmente não haveria a necessidade da obrigatoriedade. A imunidade de rebanho seria alcançada sem traumas

2 - Levantar a bandeira do livre arbítrio nesse caso é uma manobra política, talvez para desviar a atenção para o imenso esforço que será a implantação de uma logística para que seja cumprida a meta da imunização (vide por exemplo o caso dos 6,8 milhões de testes vencidos), mas também certamente para dividir a sociedade. Como se faltassem motivos para aumentar essa divisão.

3 - O Brasil é um país que precisa esclarecer na sua Constituição os deveres mais evidentes de seus cidadãos. Talvez seja o único a ter que deixar clara a necessidade das prisões serem seguras, limpas e arejadas (art. 179). Em seu art, 3º ela dispõe que "é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária". Com base nesse artigo o atual Presidente, na prevenção da contaminação da Covid19, promulgou a lei nº 13.979/20. No seu art. 3º ela dispõe que "para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas (...) III - determinação compulsória de (...), vacinação. Lei 13979/20

Em tempo

Em 15 de março de 2012 iniciei este Blog. Durante 3.176 dias eu escrevi 265 Posts, incluindo este, que tiveram uma média de 383 acessos.

Ao iniciar esta tarefa minha meta era chegar aos 100 mil acessos, e para minha surpresa hoje acabo de descobrir que essa meta já foi ultrapassada. Nesse instante o número de acessos é de 101.120. 

A meta felizmente foi cumprida, Consegui sobreviver para ter essa alegria, alegria essa que devo a você que está me lendo agora.

Muito obrigado. 

Comentários

  1. Boa análise. Apenas eu não usaria a expressão livre arbítrio que filosoficamente tem um significado muito mais profundo do que a liberdade de fazer alguma coisa.

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir
  3. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir
  4. Fonte, como sempre foi um prazer ler o seu blog, sempre trazendo reflexões importantes sobre temas que nos cercam e que muitas vezes - por falta de tempo ou puro descaso - deixamos de debater entre amigos. Que bom que você sempre aparece por aqui para nos provocar! Mas hoje, especialmente, fico feliz por ter passado por aqui: é tempo de celebrar a louvável marca de 100 mil acessos que o teu Cético ultrapassou! Parabéns, querido amigo. Vamos fazer um brinde agora à noite em sua homenagem. Que venham os próximos 100 mil!

    ResponderExcluir
  5. Não vou me alongar mas agradecer seu cuidado em usar sua inteligência para me agradar a mente com conteúdo e convites a pensar. Obrigado.

    ResponderExcluir
  6. Prezado Fonte, parabéns pela meta dos 100 mil. Neste blog vc nos presenteou conectando assuntos tão naturalmente desconectados: carros autônomos, livre arbítrio e a experiência de Tuskegee. Tolstoy termina o Guerra e Paz com considerações sobre livre-arbítrio defendendo a tese de que quanto mais poderosa a pessoa, menor o seu livre-arbítrio. Talvez ele diria que gerações cada vez mais apoderadas pela tecnologia terão cada vez menos livre-arbítrio. Que é basicamente a conclusão a que vc chegou em suas divagações na esquina da Glicério com Moraes Salles.Continue com suas brilhantes divagações mas cuidado com os carros!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amigo Gadelha
      Eu já te disse: a Mônica sabe identificar os comentários.
      De qualquer forma, mesmo anônimos eles são importantes porque me realimentam e inclusive ampliam a argumentação sobre o tema, o que é o caso do seu.
      Um abraço.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Civilidade e Grosseria

  Vamos iniciar este Post tentando ensaiar teatrinhos em dois países diferentes: País A O sonho do jovem G era ser membro da Força Aérea de A, mas na sua cabeça havia um impedimento: ele era Gay. Mesmo assim ele tomou a decisão de apostar na realização do seu sonho. O País A  não pratica a conscrição, ou seja, ninguém é convocado para prestar serviço militar. Ele está disponível para homens entre 17 e 45 anos de idade. G tinha 22 e entendeu que o curso superior que estava fazendo seria de utilidade na carreira militar. Detalhe: há décadas o País A tinha tomado a decisão de colocar todos os ramos militares em um único quartel, com a finalidade de aumentar o grau de integração e a logística. Isso significa a Força Aérea de A está plenamente integrada nas Forças de Defesa de A. Tudo pronto, entrevista marcada, o jovem G comparece à unidade de alistamento e é recebido com a mesma delicadeza que aquele empresário teria ao se interessar por um jovem promissor de 22 anos. Tudo acertado, surgi