Uma coisa que sempre me despertou curiosidade foi a forma como as nações europeias se lançaram à sanha de dizimar as sociedades nativas do continente americano recém descoberto. Tinha que haver alguma doutrina que desse o aval a um genocídio tão grande como o ocorrido.
Houve um filme de 1986, A Missão, estrelado por Robert de Niro e Jeremy Irons, que tenta defender a posição da Igreja em favor dos nativos. A trama se desenrola em nosso quintal, onde um padre Jesuíta e um comerciante de escravos arrependido montam uma Missão com o propósito de converter os nativos Guaranis ao Cristianismo. Um acordo entre Espanha e Portugal transferiu a região para os portugueses, cujo governo decide capturar os nativos para o trabalho escravo. A Missão é destruída e os dois são mortos defendendo os nativos.
Se a coisa tivesse sido realmente assim, com a Igreja ao lado dos nativos contra a ganância das nações colonizadoras, Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda, a viagem do Papa Francisco ao Canadá no ano passado teria sido bem mais tranquila. Nascido na Argentina, o primeiro Papa americano finalmente enfrentou, a partir da visita aos povos indígenas canadenses, a dura tarefa de se desculpar pela opressão, com o aval da Igreja, de todos os povos nativos da América.
Essa iniciativa culminou em 30 de Março passado, com o repúdio formal por parte do Vaticano da chamada Doutrina da Descoberta, que foi utilizada para justificar as conquistas europeias da África e das Américas. Agora os documentos papais do século XV que davam legitimidade as ações dos colonizadores "não fazem parte dos ensinamentos a Igreja Católica". Foram mencionadas as bulas papais Dum Diversas (Até Diferentes) de 1452, Romanus Pontifex (O Romano Pontífice) de 1455, e Inter Caetera (Entre Outras Coisas) de 1493. Para o Vaticano "a pesquisa histórica demonstra claramente que os documentos papais em questão, escritos em um período específico e ligados a questões políticas, nunca foram considerados expressões da fé católica".
Essas bulas foram a cobertura política que as nações colonizadoras precisavam para justificar os seus atos, e agora elas foram claramente desconsideradas pelo Vaticano por "não refletirem adequadamente a igual dignidade e direitos dos povos indígenas. É justo reconhecer esses erros, reconhecer os efeitos terríveis das políticas de assimilação e a dor vivida pelos povos indígenas, e pedir perdão".
Vejamos o que dizia por exemplo Nicolau V na bula Romanus Pontifex, de 1455 (37 anos antes de Colombo chegar ao novo continente). Ela confirma ao rei Afonso V de Portugal a "plena e completa faculdade de invadir, conquistar e subjugar todos os sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo onde quer que vivam, para reduzi-los à perpétua escravidão". Esse foi de fato o comportamento das potências Cristãs, e a atitude dos protagonistas do filme A Missão, se existiu em alguns locais, não passou de rara exceção.
Aqui cabe uma observação: das três bulas citadas, duas antecedem à descoberta da América, mas foram aplicadas com rigor nas décadas anteriores no continente africano. Também é fato que as nações mais ao norte da Europa, Holanda e Inglaterra, já se encontravam distantes do Vaticano, mas não podiam aceitar que o imenso bolo americano ficasse restrito a quem o Vaticano decidisse através de bulas.
Então fica o dito pelo não dito. Volta tudo e vamos, quase seis séculos depois, arrumar uma forma de reparar o dano causado pela malfadada Doutrina da Descoberta. O fato que mais me chamou a atenção, entre os vários que tive a oportunidade de ler, que explicita muito bem o emprego da Doutrina da Descoberta, se encontra no capítulo 3, "Enfrentamento em Cajamarca" do livro "Armas, Germes e Aço" de Jared Diamond. Jared inicia o capítulo explicando que o Novo Mundo teve sua colonização iniciada por volta de 11.000 a.C. pela via Sibéria - estreito de Bering - Alasca. Os contatos comprovados entre as sociedades estabelecidas no Novo Mundo e outros povos se limitaram a encontros entre caçadores - coletores através do estreito de Bering.
Já os contatos com a Europa se iniciaram com a ocupação da Groelândia a partir de 986, mas o enfrentamento entre essas sociedades, a "avançada" do Velho Mundo e a do Novo Mundo, se iniciou de fato em 1492 com as viagens de Colombo.
O fato a que me referi acima foi o encontro entre o imperador inca Ataualpa e o espanhol Francisco Pizarro em Cajamarca, uma cidade hoje peruana, em 1532. Ataualpa era o imperador do maior Estado do Novo Mundo e Pizarro era o representante de imperador católico Carlos V, o monarca mais poderoso da Europa. Pizarro dispunha de 168 soldados espanhóis e Ataualpa comandava um exército de 80 mil homens, o que não impediu que Pizarro capturasse Ataualpa tão logo se viram. O preço exigido por Pizarro para libertar Ataualpa foi encher de ouro um quarto de 33 metros quadrados por 2,5 metros de altura, o que levou 8 meses. Uma vez cheio de ouro o quarto, Pizarro executou Ataualpa.
O império Inca, na época, não tinha rival no Novo Continente. Possuía uma área de cerca de 3 milhões de km², uma população de 8 a 12 milhões de pessoas distribuídas por 200 povos diferentes. Seu domínio se estendia do sul da Colômbia até o norte do Chile e da Argentina. Assim como os Astecas ao norte, os Incas possuíam um complexo sistema de estradas que se estendia por mais de 4 mil km.
O que aconteceu no dia 16 de novembro de 1532 foi descrito por diversos relatos dos espanhóis presentes. Vejamos parte de um deles relatada no livro de Jared Diamond:
"O governador Pizarro enviou frei Vicente de Valverde para falar com Ataualpa e pedir que, em nome de Deus e do rei da Espanha, ele se submetesse à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo e ao serviço de Sua Majestade. Avançando com a cruz em uma de suas mãos e a Bíblia em outra, por entre as tropas indígenas, até o local onde estava Ataualpa, o frei então falou: 'Sou um sacerdote de Deus e ensino aos cristãos as coisas de Deus e, da mesma forma, venho para ensinar a vocês. O que ensino é o que Deus diz neste livro. Portanto, da parte de Deus e dos cristãos, eu lhe imploro que seja seu amigo, porque este é o desejo de Deus, e para o seu bem.' "
Os incas, apesar de todo o poder e cultura não conheciam a escrita. Atulalpa então atirou o livro ao chão, por não saber do que aquilo se tratava, e o frei o pegou e o devolveu a Pizarro, gritando:
'Saiam! Saiam, cristãos! Invistam contra esses cães que rejeitam as coisas de Deus. O tirano jogou ao chão meu livro com a sagrada lei! Vocês não viram o que aconteceu? Por que continuar polidos e servis diante desse cachorro orgulhoso enquanto as planícies estão cheias de índios? Marchem contra ele, porque eu os absolvo!'.
A matança estava autorizada pelas Bulas e foi oque aconteceu. Os incas não conheciam as armas de fogo, não conheciam o aço, se assustaram com o barulho dos tiros e o som das cornetas e entraram em pânico. Os espanhóis dispunham de não mais de 62 homens a cavalo e 106 na infantaria, e Ataualpa comandava nada menos que 80 mil índios. Com suas espadas de aço, suas armaduras e seus cavalos, além das armas de fogo, foi fácil dominar as tropas de Ataualpa, sem montarias, equipadas com pedras, armas de bronze e tacapes de madeira. Esse desequilíbrio de equipamentos ditou todos os confrontos entre europeus de nativos em todo o continente americano.
Houve também o fator psicológico que levou os incas a confundir os espanhóis com um de seus deuses, mas nada seria capaz de dizimar um império de milhões de habitantes, não fosse a arma principal, os germes. Esses sim, trazidos pelos descobridores, percorreram o novo continente levando uma onda de mortandade que foi muito maior que as armas de fogo e de aço.
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Vamos agora tentar comparar os dois continentes, a Europa e as Américas, no ano 1500. Começando pela Europa, o que se estima é que em 1500 sua população total era de cerca de 80,9 milhões de habitantes, a Espanha com 8,9 milhões, Portugal com 1,5 milhões, a França com 15,5 milhões, a Inglaterra com 3,5 milhões.
O artigo mostra bem que o Homo Sapiens não é flor que se cheire quando assume uma posição de poder sobre um semelhante que controla um algo que cobiça. Em retrospectiva é mais fácil perceber esse "pecado original". O difícil é identificá-lo no presente. Estamos passando por uma disrupção social com as redes sociais e a inteligência artificial em que uns poucos vão se tornar ainda mais poderosos e uma multidão vai se tornar irrelevante. Será que estudando melhor esses eventos do passado nos ajudem a minimizar as "maldades" que estão ocorrendo no presente?
ResponderExcluirFontenelle, muito bom artigo. Relembrar os desvios de comportamento ao longo dos anos é importante para calibrar as ações para o futuro. O homem saiu da posição de caçador-coletor, mas em outro nível continua como predador. Temos que trilhar por caminhos mais justos. Explorar sem medidas tem um retorno indesejável - vide o processo de invasão de imigrantes na Europa. Parabéns por mais este compartilhamento de seus inquietos pensamentos.
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