Ultimamente ando consultando com algum detalhe as versões digitais da Bíblia. Convido os meus poucos leitores a fazerem uma análise comparativa da versão católica e da evangélica de um trecho importante da Primeira Epístola do Apóstolo Paulo aos Coríntios:
Versão católica:
19. Está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e anularei a prudência dos prudentes (Isaias 29,14).
20. Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo?
21. Já que o mundo, com a sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura de sua mensagem.
22. Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria;
23. mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos;
24. mas, para os eleitos - quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus.
25. Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
Versão evangélica:
19 Pois está escrito: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes".
20 Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?
21 Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que creem por meio da loucura da pregação.
23 nós, porém, pregamos Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios,
24 mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus.
25 Porque a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte que a força do homem.
Estou tentando mostrar que estes versículos constituem o marco inicial da divisão entre a Ciência e a Religião do ponto de vista de Paulo. Entendo que a versão evangélica é mais clara, de mais fácil entendimento, e é nela que vou basear meu raciocínio. Até porque acredito que a versão católica, ao menos nesse trecho, foi feita para não ser entendida (os católicos lêem pouco a Bíblia e o assunto aqui é de suma importância).
Ao citar Isaías no versículo 19, Paulo deixa claro o seu intuito de se distanciar do racionalismo e do empirismo, fazendo da fé uma entidade que não tem satisfação alguma a dar à lógica. Em seguida ele insiste em que a sabedoria do mundo não cabe na sua crença, e que a salvação dos que creem só é conseguida por meio da pregação, da loucura da pregação. Para tanto ele despreza tanto os judeus, que aparentemente não acreditam em um Filho de Deus que aceite ser crucificado, como também os gregos, os pilares da sabedoria da época. O fecho é de uma clareza ímpar: a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, ou seja, a fé não aceita racionalidade.
Paulo era muito superior culturalmente aos pescadores que cercavam Jesus, muito superior a Pedro. Coube a ele portanto transformar a Igreja fundada por Pedro em uma entidade política. Aí teve início a divisão da Igreja em duas facções que se digladiam até hoje, com vantagem ora pra uma, ora pra outra. Para facilitar, vamos chama-las de facção mística (a de Pedro), e política (a de Paulo).
Segundo Luis Fernando Veríssimo, em um artigo lapidar no Caderno 2 do Estadão, as perseguições a cientistas como Galileu, a Inquisição, foram na verdade uma longa encenação de poder, uma tomada de posição fundamentalista, com vistas a marcar o território no qual o racionalismo não tinha lugar. O terror criado no seio da Igreja é produto dos séculos de domínio da facção política de Paulo.
Causa surpresa portanto que a facção mística de Pedro tenha ressuscitado com força através da nomeação do Papa Francisco. Os jesuítas nunca foram bem aceitos na Igreja fundamentalista, muito menos São Francisco de Assis, cuja ordem contribuiu com apenas 4 Papas. Francisco é o primeiro jesuíta. Isso porque tanto os jesuítas como os franciscanos são os irmãos despojados da facção mística, uns elegem a evangelização, outros a pobreza, como bandeiras da Igreja, o que para os políticos é um anátema.
Na minha condição de cético eu entendo que a facção mística é mais palatável, mas ainda assim suas bandeiras precisam de um "upgrade". A condenação do uso de preservativos, por exemplo, em nome da defesa da vida, é quase que uma "loucura" como descrita na epístola acima. Levando esse raciocínio ao limite a masturbação masculina seria um genocídio. O Papa Francisco condena a união homossexual em um mundo com 10% de gays. Uma maneira de se distanciar da facção política e ser melhor aceita seria considerar esses itens sob um ponto de vista diferente, mais tolerante.
A vitória de Pedro no conclave já teve repercussões graves. Os ultra conservadores já puseram as unhas de fora. Minoria absoluta desde a aprovação do consílio Vaticano 2 há 50 anos, eles estão em estado de choque com a escolha de Francisco. Pedir a bênção dos fiéis, se chamar de Bispo de Roma apenas, usar uma cruz de ferro, pregar uma igreja pobre para os pobres, não são atitudes de um Papa político, na linhagem defendida por Paulo.
As reações vão desde a decepção profunda ao confronto, ao não reconhecimento de Francisco como Papa, visto como ligado à Teologia da Libertação. A Itália e a França são focos importantes dessa reação. Na França o jornalista Clément Lecuyer de refere ao Papa como "João Paulo IV, herdeiro de uma linhagem de falsos Papas formada por João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI". Na Itália o movimento Sedevacantista (Sé Vacante) defende que a linha miserabilista e terceiro mundista de Francisco é inaceitável e vai resultar em uma imensa fuga de fiéis em toda a Europa. Se encontrar com judeus e muçulmanos então é totalmente contrário ao que está escrito no evangelho de Paulo, em que só a Igreja Católica salva.
Essa é uma guerra suja, e a nossa vizinha presidenta pinguim também já deu a sua contribuição a ela. O Vaticano a contragosto teve que admitir que foi a diplomacia argentina quem redigiu e distribuiu aos cardeais, antes do Conclave, o dossiê que associava Bergoglio à ditadura argentina, na tentativa de impedir sua eleição. Na maior cara dura ela correu para Roma para tentar envolver o já Papa Francisco nas suas escaramuças nas Ilhas Malvinas, mesmo sabendo que essa vilania contra Francisco foi gerada dentro de seu governo por um tal Horacio Verbitsky, codinome El Perro, seu assessor de propaganda política.
Já a nossa presidenta, que dá aulas de economia a Angela Merkel, achou por bem dizer ao Papa o que ele tem que fazer. Com muita propriedade ela pediu a compreensão às opções diferenciadas das pessoas. Imediatamente um cardeal brasileiro foi designado para rechaçar essa intromissão. O presidente da CNBB, Don Raimundo Damasceno, saiu-se com essa: "A Igreja aceita a respeita as opções pessoais neste mundo pluricultural, plurirreligioso e democrático em que vivemos, mas aceitar não significa aprovar". A meu ver é uma posição defensiva. Ponto para a Dilma. Aceitar é um verbo bem adequado ao início de um diálogo que pode se estender. Dom João Braz Avis, a meu ver o cardeal mais esclarecido do Brasil, comentando o pleito de Dilma, disse que a eleição de Francisco mostrou um desejo de mudança, mas ressalvou que essa renovação tem que respeitar os princípios da instituição. Tudo bem. Conversando é que se entende. Já Odilo Scherer, o candidato da Cúria, não tem nada a declarar.
A mente do Papa Francisco a meu ver é infinitamente mais esclarecida que a dos seus antecessores. Ele condena a vista grossa aos casos de pedofilia, a reação corporativa dos bispos que mudam de paróquia os padres pedófilos. Ele aceita que casais divorciados participem da vida paroquial. Ele vê com clareza a distinção entre o demônio e a demonização das pessoas. Ele condena o carreirismo que tomou conta da Igreja, e estou esperando pra ver como ele vai lidar com a Cúria corrupta. Ele entende que não se deve interferir na autonomia da Ciência, salvo quando ela não se impuser limites (o que ele chama de mito de Frankenstein). Ele acredita piamente na honestidade dos ateus e até dialoga com eles. Enfim. entendo que Pedro está razoavelmente bem representado e espero que a Igreja com ele recupere parte da credibilidade perdida.
Estou tentando mostrar que estes versículos constituem o marco inicial da divisão entre a Ciência e a Religião do ponto de vista de Paulo. Entendo que a versão evangélica é mais clara, de mais fácil entendimento, e é nela que vou basear meu raciocínio. Até porque acredito que a versão católica, ao menos nesse trecho, foi feita para não ser entendida (os católicos lêem pouco a Bíblia e o assunto aqui é de suma importância).
Ao citar Isaías no versículo 19, Paulo deixa claro o seu intuito de se distanciar do racionalismo e do empirismo, fazendo da fé uma entidade que não tem satisfação alguma a dar à lógica. Em seguida ele insiste em que a sabedoria do mundo não cabe na sua crença, e que a salvação dos que creem só é conseguida por meio da pregação, da loucura da pregação. Para tanto ele despreza tanto os judeus, que aparentemente não acreditam em um Filho de Deus que aceite ser crucificado, como também os gregos, os pilares da sabedoria da época. O fecho é de uma clareza ímpar: a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, ou seja, a fé não aceita racionalidade.
Paulo era muito superior culturalmente aos pescadores que cercavam Jesus, muito superior a Pedro. Coube a ele portanto transformar a Igreja fundada por Pedro em uma entidade política. Aí teve início a divisão da Igreja em duas facções que se digladiam até hoje, com vantagem ora pra uma, ora pra outra. Para facilitar, vamos chama-las de facção mística (a de Pedro), e política (a de Paulo).
Segundo Luis Fernando Veríssimo, em um artigo lapidar no Caderno 2 do Estadão, as perseguições a cientistas como Galileu, a Inquisição, foram na verdade uma longa encenação de poder, uma tomada de posição fundamentalista, com vistas a marcar o território no qual o racionalismo não tinha lugar. O terror criado no seio da Igreja é produto dos séculos de domínio da facção política de Paulo.
Causa surpresa portanto que a facção mística de Pedro tenha ressuscitado com força através da nomeação do Papa Francisco. Os jesuítas nunca foram bem aceitos na Igreja fundamentalista, muito menos São Francisco de Assis, cuja ordem contribuiu com apenas 4 Papas. Francisco é o primeiro jesuíta. Isso porque tanto os jesuítas como os franciscanos são os irmãos despojados da facção mística, uns elegem a evangelização, outros a pobreza, como bandeiras da Igreja, o que para os políticos é um anátema.
Na minha condição de cético eu entendo que a facção mística é mais palatável, mas ainda assim suas bandeiras precisam de um "upgrade". A condenação do uso de preservativos, por exemplo, em nome da defesa da vida, é quase que uma "loucura" como descrita na epístola acima. Levando esse raciocínio ao limite a masturbação masculina seria um genocídio. O Papa Francisco condena a união homossexual em um mundo com 10% de gays. Uma maneira de se distanciar da facção política e ser melhor aceita seria considerar esses itens sob um ponto de vista diferente, mais tolerante.
A vitória de Pedro no conclave já teve repercussões graves. Os ultra conservadores já puseram as unhas de fora. Minoria absoluta desde a aprovação do consílio Vaticano 2 há 50 anos, eles estão em estado de choque com a escolha de Francisco. Pedir a bênção dos fiéis, se chamar de Bispo de Roma apenas, usar uma cruz de ferro, pregar uma igreja pobre para os pobres, não são atitudes de um Papa político, na linhagem defendida por Paulo.
As reações vão desde a decepção profunda ao confronto, ao não reconhecimento de Francisco como Papa, visto como ligado à Teologia da Libertação. A Itália e a França são focos importantes dessa reação. Na França o jornalista Clément Lecuyer de refere ao Papa como "João Paulo IV, herdeiro de uma linhagem de falsos Papas formada por João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI". Na Itália o movimento Sedevacantista (Sé Vacante) defende que a linha miserabilista e terceiro mundista de Francisco é inaceitável e vai resultar em uma imensa fuga de fiéis em toda a Europa. Se encontrar com judeus e muçulmanos então é totalmente contrário ao que está escrito no evangelho de Paulo, em que só a Igreja Católica salva.
Essa é uma guerra suja, e a nossa vizinha presidenta pinguim também já deu a sua contribuição a ela. O Vaticano a contragosto teve que admitir que foi a diplomacia argentina quem redigiu e distribuiu aos cardeais, antes do Conclave, o dossiê que associava Bergoglio à ditadura argentina, na tentativa de impedir sua eleição. Na maior cara dura ela correu para Roma para tentar envolver o já Papa Francisco nas suas escaramuças nas Ilhas Malvinas, mesmo sabendo que essa vilania contra Francisco foi gerada dentro de seu governo por um tal Horacio Verbitsky, codinome El Perro, seu assessor de propaganda política.
Já a nossa presidenta, que dá aulas de economia a Angela Merkel, achou por bem dizer ao Papa o que ele tem que fazer. Com muita propriedade ela pediu a compreensão às opções diferenciadas das pessoas. Imediatamente um cardeal brasileiro foi designado para rechaçar essa intromissão. O presidente da CNBB, Don Raimundo Damasceno, saiu-se com essa: "A Igreja aceita a respeita as opções pessoais neste mundo pluricultural, plurirreligioso e democrático em que vivemos, mas aceitar não significa aprovar". A meu ver é uma posição defensiva. Ponto para a Dilma. Aceitar é um verbo bem adequado ao início de um diálogo que pode se estender. Dom João Braz Avis, a meu ver o cardeal mais esclarecido do Brasil, comentando o pleito de Dilma, disse que a eleição de Francisco mostrou um desejo de mudança, mas ressalvou que essa renovação tem que respeitar os princípios da instituição. Tudo bem. Conversando é que se entende. Já Odilo Scherer, o candidato da Cúria, não tem nada a declarar.
A mente do Papa Francisco a meu ver é infinitamente mais esclarecida que a dos seus antecessores. Ele condena a vista grossa aos casos de pedofilia, a reação corporativa dos bispos que mudam de paróquia os padres pedófilos. Ele aceita que casais divorciados participem da vida paroquial. Ele vê com clareza a distinção entre o demônio e a demonização das pessoas. Ele condena o carreirismo que tomou conta da Igreja, e estou esperando pra ver como ele vai lidar com a Cúria corrupta. Ele entende que não se deve interferir na autonomia da Ciência, salvo quando ela não se impuser limites (o que ele chama de mito de Frankenstein). Ele acredita piamente na honestidade dos ateus e até dialoga com eles. Enfim. entendo que Pedro está razoavelmente bem representado e espero que a Igreja com ele recupere parte da credibilidade perdida.
Parabens ! Lúcido e pedagógico . Bem aventurados os RiCOS de espirito porque deles será o reino da Terra !
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