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O Iluminismo e a redenção do pensamento

É "religiosamente" pontual o aparecimento na nossa caixa de correio de um livreto da Igreja Presbiteriana intitulado "Cada Dia". Com tiragem declarada de 700 mil exemplares, o chamado Devocionário Cada Dia tem por finalidade proclamar o Evangelho, e está a cargo do ministério Luz Para o Caminho, que além do livreto faz uso da televisão, do rádio, do telefone, das redes sociais e de uma coleção de livros.

Me chamou atenção na edição de Natal que acabamos de receber uma página que trata do Iluminismo. Isso porque eu estou justamente lendo um livro maravilhoso que trata do mesmo assunto: "Os Ossos de Descartes - a História do Esqueleto por trás do Conflito entre a Fé e a Razão", de Russel Shorto, Editora Objetiva. Vou reproduzir aqui, talvez correndo certo risco, o que diz o Devocionário:


A conclusão a que chega o autor desse artigo é a de que o Iluminismo foi a pior coisa que poderia ter acontecido para a religião. As luzes do conhecimento não fizeram mais do que levar a humanidade à devassidão e às trevas. E esse depoimento não partiu de um seguidor da religião que criou a contra reforma, que instituiu a Inquisição, mas sim de um pastor de uma religião que podemos considerar até como evangélica de alto nível. Afinal, a Igreja Presbiteriana é oriunda da Reforma Protestante do século XVI. O Presbiterianismo se refere às igrejas cristãs protestantes que aderiram à tradição teológica de Calvino. Para Calvino Deus já escolheu, desde o início, os abençoados para a salvação e os condenados à perdição eterna; o homem não é digno de mudar essa decisão nem de conhecê-la, e para não viver angustiado pela dúvida deve buscar sinais da graça divina perseverando em sua fé, mantendo uma vida de retidão e obediência a Deus.

O paradoxal disso tudo é que os presbiterianos se destacam pelo incentivo à educação, e entre as inúmeras instituições presbiterianas espalhadas pelo mundo se destacam a Universidade de Yale, a Universidade de Princeton e a Universidade Mackenzie. Por que então essa crítica tão feroz contra o Iluminismo, numa época em que a Igreja que criou a Inquisição, na figura de seu líder Francisco, afirma que as teorias do Big Bang e da Evolução são reais, não contradizem o Cristianismo e fazem parte dos planos divinos:

"O Big Bang não contradiz a intervenção criadora, mas a exige. O desenvolvimento de cada criatura não contrasta com o conceito de criação, pois a evolução pressupõe a criação de seres que evoluem"

Para Francisco, está errada a interpretação das pessoas que leem o Gênesis e entendem que Deus agiu como um mago, com uma varinha mágica capaz de criar todas as coisas. Cabe ao homem proteger a criação, não assumir o lugar de criador e destruí-la.

Todas essas ideias que agora têm no Papa um ardoroso defensor são produto do Iluminismo. Sem o Iluminismo, movimento cultural da elite europeia do século XVIII, ainda estaríamos sujeitos ao conhecimento herdado da tradição medieval. Ele foi alavancado pelas figuras que hoje consideramos os pais do mundo moderno, tais como Descartes, Espinoza, Locke, Newton, e muitos outros. Ele promoveu o intercâmbio intelectual e voltou-se contra a intolerância da Igreja e do Estado.

Sua raízes tiveram origem na França, e culminaram com a primeira edição de uma Enciclopédia, editada por Diderot e d'Alembert, a qual contou com a contribuição de centenas de filósofos proeminentes, tais como Voltaire e Montesquieu. Imaginem o esforço de produzir 25 mil cópias de um conjunto de 35 volumes, os quais foram vendidos metade fora da França. O Iluminismo se espalhou por toda a Europa e em seguida saltou o Atlântico e influenciou todas as colônias europeias.

Na minha modesta opinião o Iluminismo começou a mostrar a sua face pragmática quando transpôs o Canal da Mancha. A visão francesa do conhecimento, racional e abstrata, ao chegar na Inglaterra se transformou em algo como uma caixa de ferramentas. Os salões onde se discutia a nova filosofia deram lugar às oficinas onde seria forjada a Revolução Industrial. Os franceses criaram uma espécie de cartório, que chamaram de Academia de Ciências, que iria abençoar ou condenar as novas propostas. Já os ingleses eram livres pensadores, e agindo por conta própria os inventores criavam mercado e iniciaram um movimento que culminou na Revolução Industrial, que veio remodelar a forma como o mundo funcionava.

Podemos dizer que o equivalente a Descartes na Inglaterra se chamava Isaac Newton. Sua leis do movimento, seus trabalhos em ótica, a descoberta dos princípios da gravidade, formaram a base sobre a qual a revolução científica se ergueu. Tanto que Voltaire patrono do Iluminismo francês, saudou Newton como o "destruidor do sistema cartesiano", querendo dizer com isso que foi Newton quem transformou a ciência, criando para ela uma face prática. Ele pode ser chamado o pai do empirismo, em contraposição ao racionalismo.

Relendo o texto presbiteriano, fico com a impressão de que existe uma ideia entranhada de que as pessoas que vivenciaram essa época viviam bramindo bandeiras, a favor da fé o da razão, e que essa luta permanece em nossos dias. Bobagem. A humanidade é composta de um número insignificante de religiosos intransigentes e outro mais insignificante ainda de antirreligiosos tipo "Deus, um Delírio". Eles são bem sucedidos na medida em que o rebanho que eles visam é mais ou menos culto.

E é aí que mora o problema. A nação mais desenvolvida no mundo, com a ciência mais avançada, ainda não aceitou a teoria da evolução. Por outro lado os seguidores de Alá estão firmes no proposito de povoar o planeta com as suas teses fundamentalistas, através de uma taxa de natalidade muito maior que a dos "infiéis". Entre essas duas extremidades encontramos todo tipo de contradições, a meu ver todas elas decorrentes da nossa intransigência, da nossa não aceitação de que ninguém é dono da verdade, mas o empirismo tem que ser aceito como aquilo que mais se aproxima de ser o seu dono.

Quando Galileu defendeu que a Terra gira em torno do Sol, ele estava ancorado na experimentação, não em um texto religioso. Ele não era o dono da verdade, apenas um mensageiro dela. Quando aceitarmos isso como senso comum acho que vamos finalmente progredir. Sou otimista. Desculpem.



Comentários

  1. Brilhante ! Podemos fazer uma alegoria dizendo que a centelha divina que existe em voce se manifestou .

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  2. Consegui voltar, finalmente. A Climene resumiu tudo em seu comentário. Assino embaixo.

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