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Sobre a Tortura

Muito se tem falado nesses dias sobre a Tortura, a meu ver de forma positiva.

Comecemos pelo relatório final da Comissão da Verdade, a qual está sendo chamada com certa propriedade de Comissão da Meia Verdade. Foram mais de 4 mil páginas que descrevem com detalhes os crimes cometidos durante o regime militar brasileiro. Ela não traz novidades, mas é um documento cuja abundância de detalhes o torna a memória do que ocorreu nos porões durante os anos negros por que passamos. Pena que o posicionamento ideológico do seu corpo a tenha impedido de olhar o outro lado, já que houve excessos também da parte dos grupos de esquerda, que mataram 121 pessoas (o número de mortos pelas forças de repressão é um valor de uma elasticidade impressionante, que pode variar de 177 a 1196, dependendo da ideologia de quem está falando).

Já o relatório do Senado Americano é focado apenas no papel da CIA na guerra ao terrorismo. Ele descreve de forma estarrecedora os métodos utilizados, e me chamou especial atenção a "alimentação retal" e o "afogamento em caixão".

Os americanos se intitulam os guardiães dos valores morais do ocidente cristão, e a sua posição nessa história torna-se insustentável, externa e internamente, e divide ao meio, pra variar, a sua sociedade. Talvez o único republicano a condenar a Tortura seja John McCain, pelo simples fato de ele próprio ter sido supliciado pelos vietnamitas em sua juventude. Em discuso histórico no Senado quando da apresentação do relatório, ele declarou que a Tortura "compromete aquilo que mais nos distingue dos nossos inimigos" e que os agentes da CIA "mancharam a nossa honra nacional".

Eu consigo ver uma grande virtude na divulgação desse relatório, e ela consiste na constatação de que os americanos lavaram a sua roupa suja em público, em vez de escondê-la numa lixeira qualquer, Eles foram com toda a certeza os únicos a tomar essa atitude, e com isso justificaram a frase de Alexis de Tocqueville, que em 1831, em visita à América, disse no seu clássico "Democracia na América" que "a grandeza americana não reside em ser um país iluminado, mas na sua habilidade de reparar suas falhas".

A francesa Marine Le Pen, quando questionada a respeito do relatório, deu prova de que a França pensa de outra forma: para ela, em certas circunstâncias, "quando uma bomba vai explodir a determinada hora, provocando a morte de 200 a 300 pessoas, é lícito torturar". As baixezas cometidas pela França durante a guerra da Argélia foram da mesma ordem de grandeza das baixezas atuais dos americanos, e nada foi feito da parte dos poderes constituídos franceses para esclarecer esta mancha da sua história. Os argumentos de Marine Le Pen são lugar comum entre aqueles que defendem a Tortura, e essa proposição é formulada com o propósito de legitimar a Tortura.

Do alto da minha insignificância eu vou me arriscar a dar o meu pitaco nesse assunto. Quero deixar claro que dentro de mim não existe nada que me faça justificar a Tortura; nem que fosse para salvar uma das minhas filhas. Só que tem um detalhe: eu sou eu, e um membro do Exército Islamita, ou da Al Qaeda, ou do Talibã, não pensa como eu. Assim, se eu me visse na situação de ter que lidar com esses grupos de perto, não considero remota a possibilidade de ter que reformular os meus conceitos.

Não resta dúvida para mim que a Tortura é moralmente indefensável, mas eu acho uma ingenuidade concluir que ela é ineficaz. Ela remonta dos tempos dos Faraós, e se fosse concluído que ela não dá bons resultados ela já teria sido abandonada. Existe ainda o argumento de que nunca vamos nos livrar dessa chaga porque ela nos remete ao nosso primitivismo, aos nossos piores instintos, e que a prova maior disso é que até através da religião nos sentimos autorizados a torturar. Isso é verdade, e a situação a que chegamos nesses tempos onde o torturado pensa de forma totalmente contrária à da sociedade que o está supliciando, vai acabar por nos levar a um beco sem saída.

Mas eu sou otimista. Maomé "recebeu" a mensagem divina na montanha Hira no ano 610 DC, quando deu início ao livro que mais tarde veio a se chamar Alcorão. Estamos falando de uma religião bem mais nova que a cristã. Seiscentos e dez anos atrás, mais precisamente no ano 1404 DC, o cristianismo se encontrava em plena Inquisição, a qual durou de 1250 até 1730. Nesse intervalo de tempo:

Joana d'Arc,
Galileu,
os Templários,
os Protestantes,
as Bruxas,

todos foram de uma forma ou de outra vítimas de constrangimentos, torturas e execuções em nome do nosso Deus. Estima-se que 2 milhões de mulheres foram sacrificadas, acusadas de bruxaria.

Como dizem os chineses, mais alguns milênios e atingiremos a perfeição.

Comentários

  1. Muito boa esta crônica. Faz pensar na ligação óbvia com os crimes históricos de massacres de massas, índios, judeus, ciganos, mujiques, camponeses na Cambodja , nos degolamentos no Brasil e no oriente médio , etc. Fácil listar. Parece ser a regra na história e portanto "natural". Que temos de "bondades" em massa ? Talvez o Criança Esperança ou a Bolsa família ... sempre com um fundo de cinismo e hipocrisia servindo para encobrir outras maldades. Esta conecção entre o mal e o bem os anula. Sempre tem um motivo razoável para executar um trombadinha. Sempre tem uma causa para um latrocínio cometido por aquele. Esta relativização ética e moral não ajuda.. Jorge Semprun via do trem o nazista com sua noiva e sua família, carinhosos e felizes, ótimas pessoas mas, para ele tinham de ser executados sem dor de consciência. Assumiu uma posição prática que servia a uma interpretação histórica do momento na luta contra um monstro que surgia e se alimentava na fraqueza dos povos em volta. . A questão é o engajamento no trem de um processo civilizatório de uma moral humanista e abrangente, no combate a ignorância e ao retrocesso cultural. Amamos nossos livtros e a liberdade bem como nossa vida que tem de ser boa.e justa. A luta contra a tortura faz parte deste projeto humano para em alguns milênios chegarmos a perfeição chinesa se pudermos respirar.

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  2. Caro Amaro

    Ontem saiu uma crônica de uma pessoa que eu admiro muito e que escreve no jornal daqui de Campinas. Vale a pena, para nós que vivenciamos o período negro da nossa história, dar uma olhada nela:

    http://correio.rac.com.br/_conteudo/2014/12/colunistas/zeza_amaral/230441-sobre-estomagos-e-almas.html

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  3. Recebi por e-mail um comentário do meu amigo George, que eu tomo a liberdade de replicar aqui:
    Oi Luiz, gostei muito da blog da Tortura. Em 1970, qd estava es Estrasburgo, os franceses me perguntavam muito sobre as torturas no Brasil. Embaraçoso! Até q um dia o meu chefe falou que qd era médico do Exercito na Argélia, ele presenciou coisas horriveis, e q portanto eles parassem de encher meu saco

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