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Brasil, um País Desigual ... e Sofrido

O Caderno especial de 01/01 do jornal O Estado de São Paulo trouxe um artigo de Pedro Fernando Nery, "Eleição do Sofrimento", que chamou minha atenção por ter me apresentado um indicador que procuro há anos, que "sintetizasse a falta de oportunidades na economia e a piora do poder de compra". 

O Índice de Sofrimento (Misery Index), criado pelo economista americano Arthur Okun, pretende determinar como o cidadão comum está se saindo em termos econômicos, e inicialmente era calculado pela soma simples da taxa de desemprego com a taxa anual da inflação. Ele supõe com toda razão que esses dois indicadores trazem enormes custos sociais para um país ou região. 

Em tempo: Misery Index foi traduzido para Índice de Sofrimento, com o que eu concordo. A palavra inglesa Misery pode ser traduzida como Miséria, Sofrimento, Desgraça, Infelicidade, e eu acho Miséria um pouco forte para este caso. 

Mais tarde, em 1999, o economista Robert Barro trouxe mais dois ingredientes a este indicador. O BMI (Barro Misery Index) adiciona à taxa de desemprego e à inflação a taxa de juros, e subtrai um componente adicional, que é  a diferença entre o Produto Interno Bruto (PIB) atual e a expectativa do PIB para o ano seguinte.

Vamos dar um exemplo; um país tem como resultado para um determinado momento:

  • Uma inflação de 10,74% (base Nov/21)
  • Um índice de desemprego de 12,60% (base Nov/21)
  • Uma taxa de juros de 9,25% (base 8/12/21)
  • Uma previsão de aumento do PIB de 0,28% 
O Barro Misery Index para este país seria:

    BMI = 10,74 + 12,60 + 9,25 - 0,28 = 32,31

Este seria o BMI do nosso país em Nov/21.

O Misery Index começou a ser aplicado a países fora dos Estados Unidos a partir dos anos 2000. Antes ele era restrito a comparações entre os diferentes governos americanos.  O economista Steve Hanke construiu a primeira Tabela Mundial do Índice do Sofrimento com base nos dados do Economic Inteligence Unit do Cato Institute. A tabela abaixo de 2013 lista o Misery Index de 89 países, citando qual o fator predominante (apenas países que tinham esses dados no Cato Institute estão na lista).

Aqui se observa que o Brasil ocupava em 2013 o 9º lugar entre os países mais sofridos do mundo, atrás apenas de Venezuela, Irã, Sérvia, Argentina, Jamaica, Egito, Espanha e África do Sul. O fator que mais contribuiu para chegarmos a essa posição foi a Taxa de Juros. Entre os quatro fatores que compõem o Misery Index, os que mais contribuíram para o Índice de Sofrimento foram:
  • Desemprego: 48 - observem a presença da Espanha em 7º lugar
  • Taxa de Juros: 37 - aí se inclui o Brasil
  • Inflação: 3 - A Venezuela encabeça a lista por causa dela
  • Crescimento do PIB: 1 - A China se isola neste fator, que é o único que diminui o BMI.
Em 2020 o numero de países avaliados por Hanke subiu para 145 e o Brasil foi classificado em 11º lugar entre os mais sofridos:



Aqueles que se deram ao trabalho de analisar essa tabela podem observar algumas coisas interessantes:

Guiana - Além de ter sido considerada o país menos sofrido entre os 145, ela conseguiu a proeza de tornar seu índice negativo, -3,3. Acontece que a maior descoberta de petróleo em anos aconteceu por lá, e o segundo país mais pobre da América do Sul teve em 2020 um crescimento de 25,8% no seu PIB. Tivemos assim um Hanke's Annual Misery Index de:

HAMI = [Desemprego 11,8%) + Inflação (1,0%) + Juros Bancários (9,7%) 
              - Crescimento do PIB (25,8%)] = - 3,3.

O presidente chegou a instituir um novo feriado, o Dia Nacional do Petróleo, e isso mostra que o Índice de Sofrimento não estava preparado para uma mudança deste tamanho nos seus indicadores. Parabéns à Guiana e votos de que a "maldição do petróleo" não chegue por lá.

Taiwan: A segunda colocada teve o resultado também enfatizado pelo bom crescimento do PIB (2,6%), mas todos os indicadores foram bons:

HAMI = [Desemprego 3,8%) + Inflação (0,1%) + Juros Bancários (2,5%) 
              - Crescimento do PIB (2,6%)] = 3,8

Qatar: O terceiro colocado teve problemas com a queda do PIB mas se segurou com a inflação negativa e os outros dois indicadores muito bons

HAMI = [Desemprego 0,5%) + Inflação (-2,6%) + Juros Bancários (2,8%) 
              - Crescimento do PIB (-4,6%)] = 5,3

Venezuela: A vizinha da Guiana é outra que desafia os indicadores. Uma inflação de 3.713% arrebenta com qualquer índice. Os péssimos desemprego, juros bancários e PIB somem diante desse número impressionante:

HAMI = [Desemprego 50,3%) + Inflação (3.713,2%) + Juros Bancários (33,1%) 
              - Crescimento do PIB (-30,9%)] = 3.827,6

Seria bom o Lula (pela esquerda) e o Bolsonaro (pela direita) olharem esses números.

Zimbabue: É outro país com inflação galopante, e já foi pior sob o reinado de Robert Mugabe, em que os preços dobravam a cada 24 horas. O presidente atual Emmerson Mnangagwa não fica muito atrás e os resultados o colocam como o "second best" em Índice de Sofrimento:

HAMI = [Desemprego 4,9%) + Inflação (495,0%) + Juros Bancários (35,0%) 
              - Crescimento do PIB (-12,1%)] = 547,0

Minha Conclusão:

O chamado Índice de Sofrimento / Misery Index é a melhor ferramenta para se traçar um Raio X das oportunidades, ou a falta delas, que uma sociedade disponibiliza aos seus cidadãos. Em um planeta onde a desigualdade cresce a ponto de tornar a maior economia do mundo desigual, o PIB per Capita não quer dizer muita coisa. 

Segundo o IBGE, a renda mensal dos que fazem parte do 1% mais rico da população é em média de R$ 15.816. Já o rendimento mensal dos 50% mais pobres é de R$ 453, certa de 35 vezes menor. Já tratamos do Coeficiente de Gini neste Blog, e ele pega esse dado e nos joga no 79º lugar no mundo em termos de desigualdade (de um total de 189 países)
.
A vantagem que vejo do Índice de Sofrimento sobre o coeficiente de Gini é que ele pega os 4 ingredientes que fazem a sociedade sofrer e faz uma conexão imediata com a sua (in)satisfação, enquanto o Coeficiente de Gini mostra a desigualdade sem mostrar os fatores que levam a ela.

Uma pessoa muita chegada a nós, que frequenta a nossa casa, todo mês tem um enorme problema: pagar os R$ 750 do aluguel da sua casa no dia 22. Perguntei a ela se o aluguel era caro e ela respondeu que sim, muito caro; então eu perguntei se ela sabia quando pagava por dia de aluguel e ela disse não saber. Quando eu lhe disse que eram R$ 25 ela tomou um susto, achou barato. O mesmo aconteceu com as taxas de luz e água. 

É incrível como aqui em casa eu pago exatamente 5 vezes mais pela Internet, o telefone fixo (que nem uso mais) e a TV a cabo, que pela água que consumo (minha chácara não tem serviço de esgoto, uso fossa). Usei esse argumento para mostrar a essa pessoa que as palavras Prioridade e Planejamento são importantes para termos um dia a dia menos sofrido. Consegui fazer com que ela defina quais a suas maiores Prioridades, e como se Planejar para conseguir cumpri-las.

Essa pessoa pertente ao enorme grupo que o nosso Posto Ipiranga batizou de invisíveis (O Auxílio Emergencial revelou que 46 milhões de brasileiros não existem aos olhos do governo; a maioria não tem conta em banco, nem acesso regular à Internet, nem CPF ativo). Ela hoje tem uma conta no PicPay (carteira digital com >60 milhões de clientes), sai daqui após realizar seu serviço sem dinheiro no bolso e pelo seu celular faz as compras necessárias no supermercado. Mas ela:
  1. não tem carteira assinada, nem ela nem o marido, vivem de bicos,
  2. sofre com a inflação que é muito maior que a oficial para pessoas de sua classe,
  3. não tem no seu horizonte a menor possibilidade de recorrer a um empréstimo bancário para comprar os seus supérfluos, e tem que recorrer à armadilha da compra parcelada.
  4. não tem a menor esperança de que 2022 vai ser melhor que 2021.
É isso que o Índice de Sofrimento escancara. a inflação, o desemprego, os juros e o crescimento medíocre do PIB não dão a esses brasileiros a esperança de um futuro melhor.

Comentários

  1. Respostas
    1. Grato caro de Assis, você talvez seja junto com a minha esposa o mais antigo leitor desses rascunhos.

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  2. Gostei do artigo. Obrigado ! Uma boa levantada de bola, fez-me pensar. Um bom índice é aquele que, medido periodicamente, é um bom medidor da efetividade de políticas públicas. Seria este indicador de sofrimento um bom indicador? Não seria ele "financeiro" demais ? Vem-me esta pergunta por ver que, segundo este indicador estamos no fundo do poço. Por outro lado, apenas para dar um exemplo, consultando o Happiness Index , vejo que o Brasil aparece entre os 40 melhores. Acho que nem tão lá nem tão cá. O melhor mesmo seria se o Governo elegesse
    três-cinco indicadores para acompanhar suas medições anuais e, assim, botar matéria mais estratégica e palpável na mesa de nossos políticos e redes sociais.

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    1. Caro amigo Unknown por opção
      Como disse em reposta ao comentário abaixo do seu, sofrimento não é exatamente resultante da desigualdade. Mas para mim é certo que ambos são efeito da gestão da economia.
      Como bem disse James Carville, estrategista da campanha de Bill Clinton, "it's the economy, stupid". Ou seja com a economia nos trilhos certamente vão diminuir a desigualdade e o sofrimento.
      Já a felicidade a meu ver tem um componente subjetivo, ou ela não existiria naqueles que se impingem sofrimento para demonstrar sua adoração e essa ou aquela divindade.
      O brasileiro fez de suas carências, num processo talvez herdado das nossas raízes escravocratas, em alegria. Nosso cancioneiro está cheio de exemplos:
      "a porta do barraco era sem trinco, mas a lua furando nosso zinco, salpicava de estrelas nosso chão".

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  3. Mais uma vez agradeço o conteúdo que Vc nos oferece.

    Achei muito interessante mas desconfio de um índice de sofrimento que não leva em conta a distribuição da riqueza.

    Não me aprofundei no assunto nem vou dedicar muito tempo ao assunto.

    Me perguntei o que aconteceria se dividíssimos o índice de sofrimento pelo de Gini.

    Minha primeira impressão é de que estaríamos dividindo bananas por laranjas, mas me parece claro que não podemos desconsiderar a distribuição da renda já que até a Venezuela deve ter uma parcela zero sofrimento em sua população.

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    1. Coro Horácio
      Vejamos o caso da Espanha em 2013, mais sofrida que o Brasil. Ela tinha um imenso índice de desemprego, isso em um país europeu, e é claro que a desigualdade por lá devia bem menor que a nossa.
      Acho que o sofrimento tem uma diferença sutil com a desigualdade. A Guiana, ao ver seu PIB crescer 28% em um ano, ter a sociedade invadida por uma onda de otimismo a ponto de instituir um feriado nacional, deve ter mantido a desigualdade praticamente igual, mas deu a esperança de um mundo melhor no futuro

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