Pular para o conteúdo principal

O cerco às religiões Afro - Brasileiras

Em novembro de 2003 eu estava em Goiânia visitando meu pai, que morava perto do Parque Vaca Brava, um cartão postal da cidade. No belo lago do parque estavam em exposição estátuas de Orixás. Era uma comemoração ao dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20. Fiquei então sabendo que os evangélicos da cidade tinham feito dois protestos no mesmo parque, e que tinham ido em comitiva exigir do prefeito a remoção das estátuas. O prefeito rechaçou os argumentos dos pastores e decretou que a exposição permaneceria no parque até a data prevista para a sua remoção: 10 de janeiro.

E como era a exposição, do ponto de vista puramente estético? Era linda. Fui visitar o parque algumas vezes à noite, quando os Orixás recebiam uma iluminação artificial e pareciam passear sobre as águas do lago.

Essa exposição das obras do artista plástico Tatti Moreno (http://www.tattimoreno.com.br/) já havia percorrido várias capitais, mas Goiânia teve o privilégio de iniciar uma campanha sórdida de intolerância, que culminou em 2007, no Dique do Tororó, em Salvador, quando 12 das 16 estátuas de 7 metros foram decapitadas e queimadas. A fundação Cultural Palmares tomou para si a tarefa de recuperá-las, tendo investido nisso R$ 730 mil.

Na mesma época um conhecido meu, bem mais jovem, foi passar a lua de mel em Salvador. Eu também passei a minha lua de mel lá. Fui de carro, um fusca 1966, e usei o expediente, para poder ter uma lua de mel decente, de ministrar um curso de férias na Universidade Federal da Bahia, que me hospedou em um asilo de idosos, a Casa de Retiro São Francisco, em Brotas. Isso porque em 1970 o turismo na Bahia era incipiente e carecia de hotéis. Eu dava as aulas de manhã e à tarde iamos visitar a cidade, começando com um almoço no Solar do Unhão. À noite costumava ir a um terreiro, onde conheci Jorge Amado, o artista plástico Carybé, frequentadores do terreiro de Mãe Menininha do Gantois, a celebrada Iyalorixá (mãe-de-santo) brasileira, filha de Oxum.

Reparem bem no sorriso de Mãe Menininha e pensem em qualquer tipo de maldade que possar vir desse ser iluminado. Não pode. Eu me atrevo a dizer que a bênção que recebemos de Mãe Menininha nos ajudou a seguir unidos, eu e minha mulher, por esses 42 anos. Afinal, somos de uma geração que mandava concertar as coisas em vez de jogá-las fora.

Pois bem; ao perguntar pro meu conhecido como foi a sua lua de mel, ele me respondeu textualmente que "aquilo era a terra do demônio", e que não voltaria mais lá. Tentei então entender o raciocínio de se ligar a coisa do demônio um culto que não é o seu, e cheguei então à conclusão de que, nesse caso, trata-se do mais puro preconceito racial, disfarçado na mais pura intolerância religiosa.

Por traz dessa discussão toda poderiamos tentar inserir um argumento mais nobre que seria um contencioso entre o monoteismo e o politeismo, mas a atitude fundamentalista dos evangélicos leva o assunto a um nível baixo demais para chegarmos a tanto. Já disse anteriormente, plagiando Gore Vidal, que o monoteismo é o grande vilão da nossa civilização ocidental, e isso deve servir de reflexão àqueles que entendem que existe um Deus raivoso que irá nos recompensar depois dessa vida se nos comportarmos da maneira que os seus representantes considerarem adequada.

A intolerância relativa às religiões afro-brasileiras tem sido ultimamente um dos motes preferidos dos novas religiões cristãs que apareceram no Brasil nos últimos anos. Isso se deve em grande parte ao fato de que a Igreja Católica foi durante décadas tolerante ao extremo em relação a esses cultos, a ponto de ter sido criada uma grande afinidade entre as divindades afro-brasileiras e as figuras católicas. Vejamos alguns exemplos:
  • Exu, o Senhor dos Caminhos, é associado a Santo Antônio
  • Ogum, o Orixá Guerreiro, a São Jorge
  • Oxossi, o Protetor das Matas, a São Sebastião
  • Iansã, a Deusa Guerreira, a Santa Bárbara
e assim por diante (http://umbandaesuamissao.blogspot.com.br/2010/10/os-orixas-e-os-santos-correspondentes.html) . Havia portanto a necessidade de se divergir da tolerância católica em relação a esses cultos. Seria inadmissível a lavagem das escadarias da Universal. Podemos até argumentar que a tolerância católica com relação às religiões afro-brasileiras é uma espécie de confissão de culpa pelo fato de que foram católicos que trouxeram essas entidades para cá, de forma não voluntária. Os novos cristãos não participaram dessa infâmia, e não lhes cabe tolerância nesse assunto. Podemos também inferir que se trata da apresentação de um culpado para que se arregimentem multidões contra o mesmo, e nisso o monoteismo é um especialista.

Ao aceitar o politeismo o ser humano automaticamente abandona a ilusão da verdade absoluta. Se existem vários deuses, há espaço para o contraditório. As coisas lá onde eles habitam passam a ser mais parecidas com as nossas coisas, e desaparece a imposição de sermos perfeitos, o que sobejamente sabemos que não somos. Daí essas religiões serem chamadas de não éticas; eu preferiria o termo  não impositórias, ou melhor ainda, não INQUISITÓRIAS. Não haveria a menor possibilidade de uma Inquisição no Candomblé, isso porque os deuses dessa religião são inteiramente desprovidos do desejo de censurar, punir e corrigir os seres humanos por suas faltas ou fraquezas morais. Diferentemente do Cristianismo, com sua noção de pecado e seu ideal de uma vida santificada pelo arrependimento sincero dos pecados, a ênfase do Candomblé é ritual.

Como não existe no Candomblé um código de conduta aplicável a todos os seres humanos, não existe pecado. A distinção entre o bem e o mal depende da relação entre o homem e seu deus pessoal, o orixá. É essa relação que define o que é certo e o que é errado. A definição do que é bom e do que é mau não chega a ser abstrata, mas é sim dependente da relação da pessoa com seu orixá.

Podemos argumentar que seria inviável a vida em sociedade sem uma definição precisa do que é bom e do que é mau. A única forma de afastarmos o preconceito desse argumento seria a realização de uma estatística que nos dissesse qual a proporção, nos diferentes extratos sociais, entre os infratores adeptos do Cristianismo e os do Candomblé, levando-se em conta as diferenças populacionais. Fora isso temos apenas suposições.

Usei o termo Candomblé para designar de forma genérica as religiões Afro - Brasileiras. Cada região do Brasil tem no entanto um nome diferente. Na Bahia é Candomblé, Xangô em Pernambuco e Alagoas, Tambor de Mina no Maranhão e Pará, Batuque no Rio Grande do Sul, Macumba ou Umbanda no Rio de Janeiro, e assim por diante. Cada uma tem uma particularidade que a difere da outra de forma cosmética. Por exemplo, a Umbanda, por ter surgido no Rio na década de 1920, e tendo se propagado dentro de uma grande metrópole e se espalhado por todo o sudeste, assumiu um comportamento que assimilou as crenças vizinhas, tais como o Catolicismo e o Espiritismo. Aderiram a ela também os espíritos dos índios brasileiros, os chamados Caboclos, e os espíritos de negros escravos, os Pretos Velhos. Nada disso no entanto invalida o direito desses praticantes de seguirem a sua vida sem os sobressaltos de serem perseguidos pelos novos fundamentalistas.

A relação entre os evangélicos e os adeptos do Candomblé na Bahia atingiu os limites do absurdo no que podemos chamar de Guerra do Acarajé. Os evangélicos colocaram ao lado de cada bahiana um evangélico vendendo acarajé, a preço menor. Tudo porque, na crença afro, o acarajé é um alimento sagrado, homenageando o Orixá Oiá. Ele foi preservado por séculos como representante da identidade africana. Minar o seu conteúdo sagrado tornou-se prioridade nas hostes fundamentalistas. Acreditem se quizerem.



Comentários

  1. Existe realmente um ranço fascista nestas igrejas, ou setores delas. O objetivo é claro de arrecadar muito dinheiro em troca de ajuda psicológica a almas atormentadas (100% das almas). Técnicas foram desenvolvidas para maximizar este retorno. Provavelmente o ataque a outros cultos faça parte de uma estratégia de sublimar a frustação de pessoal menos preparado e ganhar adeptos e contribuições. A igreja Universal em Salvador em frente ao Iguatemi parece evidência da força deste pessoal. Mas "são lantejoulas" frente a grandeza da cultura afro cristã da Bahia em particular, não tem futuro. Só vão passar vergonha como neste episódios ridículo da guerra do acarajé.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Civilidade e Grosseria

  Vamos iniciar este Post tentando ensaiar teatrinhos em dois países diferentes: País A O sonho do jovem G era ser membro da Força Aérea de A, mas na sua cabeça havia um impedimento: ele era Gay. Mesmo assim ele tomou a decisão de apostar na realização do seu sonho. O País A  não pratica a conscrição, ou seja, ninguém é convocado para prestar serviço militar. Ele está disponível para homens entre 17 e 45 anos de idade. G tinha 22 e entendeu que o curso superior que estava fazendo seria de utilidade na carreira militar. Detalhe: há décadas o País A tinha tomado a decisão de colocar todos os ramos militares em um único quartel, com a finalidade de aumentar o grau de integração e a logística. Isso significa a Força Aérea de A está plenamente integrada nas Forças de Defesa de A. Tudo pronto, entrevista marcada, o jovem G comparece à unidade de alistamento e é recebido com a mesma delicadeza que aquele empresário teria ao se interessar por um jovem promissor de 22 anos. Tudo acertado, surgi