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O Império Brasileiro e o ICMS

Podemos imaginar que a Federação Brasileira é na realidade um Império dominado pelos Estados Exportadores que mantém como suas colônias os Estados Importadores. E arma utilizada para essa dominação é de uma simplicidade ao mesmo tempo absurda e perversa: chama-se "ICMS Creditado na Origem".

Fui tomar maior contato com esse estado de coisas quando assumi um cargo comercial importante em uma empresa de alta tecnologia, e fiquei chocado ao ver as injustiças perpetradas por esse regime absurdo. É claro que ele vem escorado por uma legislação cujo grau de complicação é uma espécie de blindagem para encobrir a grande injustiça que esconde.

ICMS quer dizer Imposto Sobre Circulação (?) de Mercadorias e Serviços. Ele deveria ser o equivalente ao que os americanos definem com Sales Tax (taxa de venda), aquele valor destacado que os turistas conhecem tão bem e que varia de estado para estado. Ao chegar a um aeroporto americano pela primeira vez o turista toma um susto ao ver que aquilo que lhe foi anunciado por US$ 10,00, na hora de pagar saiu por, digamos, US$ 10,70 (se houver gorjeta esse valor sobe).

O que ocorreu aqui foi que o comprador foi advertido na "nota" que aquilo por que ele pagou US$ 10,00 sofreu uma incidência de imposto de 7%, ou US$ 0,70; Simples assim. O fato desse imposto variar de Estado para Estado significa que ele não é um imposto nacional, como aqui também não é, mas o importante é que lá ele, além de ter visibilidade, só incide sobre o varejo.

Vamos fazer uma comparação: Nos Estados Unidos um varejista compra um produto por U$ 100 e o vende por U$ 150 + 10,5 de imposto. Se a venda for feita em outro Estado que não o fabricante do produto, esses US$ 10,5 serão creditados totalmente na conta do Estado Importador. O Estado Exportador não recolhe esse imposto, e o motivo é simples: a fábrica, ou a fazenda que o produziu emprega gente, que vai consumir bens no Estado Exportador, gerando riqueza. Não há necessidade de se onerar o Estado Importador.

Aqui no Brasil a fórmula para o cálculo desse imposto é de uma complicação surreal. Para se ter uma ideia de onde chegamos, um ICMS de 10% não significa que você vai pagar R$ 10,00 de imposto sobre um Produto vendido por R$ 100,00. Aqui inventaram um tal cálculo "por dentro", que é um verdadeiro horror.

Mas voltemos aos gringos: o produtor vendeu por US$ 100,00 e digamos que o varejista pagou U$ 20,00 para ter o produto em sua loja (aqui podem estar incluídos frete, seguro, etc.), e o vendeu por US$ 150,00. O lucro bruto do varejista é claramente US$ 150,00 - US$ 100,00 - US$ 20,00, ou US$ 30,00. O Estado Importador abocanha US$ 10,50 porque o consumidor pagou a taxa "por fora", e o papo morreu aqui. Mais uma vez, simples assim.

Agora preparem sua paciência porque eu vou tentar, eu disse tentar, mostrar o calvário que é calcular uma nota fiscal aqui nessa República de Banana. Comecemos pelo Produtor.
  1. Ele vai ter que distinguir por produto, e se a venda é feita dentro ou fora do Estado 
  2. Para dar um exemplo, por produto esses valores em São Paulo variam de 25% (bebidas alcoólicas, fumo, etc.) a 4% (transporte aéreo, mala postal, etc.), passando pelas alíquotas de 18%, 12% e 7%. Isso para o estado de São Paulo. 
  3. Para venda fora do Estado a alíquota será de 7% para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e o Espírito Santo, e 12% para os demais Estados. Isso para os Estados Exportadores das Regiões Sul e Sudeste (exceto Espírito Santo). 
  4. A coisa não para aqui. Surge agora um novo imposto, o IPI, que deve ser calculado antes porque ele vai compor o valor do ICMS. IPI quer dizer Imposto sobre Produtos Industrializados. Em geral ele vai custar 10% (sobre o quê nós vamos ver).
Base de Cálculo

Vamos supor que São Paulo vende pro Nordeste um produto industrializado. Por exemplo vamos discriminar os seguintes itens:
  • Mercadoria: R$ 100
  • Frete: R$ 15
  • Despesas Acessórias: R$ 10,00
  • Seguro: R$ 5,00
  • Desconto: R$ -20,00
Para calcular o IPI temos que somar:
  • Mercadoria + Despesas Acessórias + Seguro 
  • que no caso dá R$ 115,00
  • o que resulta em um IPI de R$ 11,50 (suponhamos 10% sobre R$ 115,00)
Tem uma pegadinha que pode incluir o frete no valor do IPI, mas isso é abusar de vocês.

Agora vamos ver o ICMS. Para o Nordeste ele será de 7%, e vão incidir sobre esse imposto:
  • Mercadoria + Despesas Acessórias + Seguro + Frete + Desconto + Valor do IPI (!!!)
  • o que no caso dá R$ 121,50
  • o que nos levaria a um ICMS de R$ 121,50 x 7% = R$ 8,505, certo?
ERRADO! Aqui entra o tal "por dentro". Em vez de multiplicar R$ 121,50 por 7%, você vai ter que multiplicar por (1/(1-7%) -1). Temos então que o ICMS será de:
  • R$ 121,50 x (1/ 93% - 1) = R$ 9,145.
Vemos que o valor real do ICMS para um alíquota de 7% na realidade é de 7,53%. Isso vira um deboche quando falamos de alíquotas de 25%, que acabam por virar 33,3%. Caso das nossas faturas telefônicas. 

Mas tudo bem. O nordestino comprou uma mercadoria cujo valor de venda era de R$ 80 (R$ 100 menos o desconto de R$ 20,00), pagou 130,64 (R$ 121,50 + R$ 9,14), e a essas alturas, para ter como pagar os custos indiretos, vai vender por R$ 200,00, certo?

ERRADO de novo. O poder aquisitivo da sua clientela é baixo e ele vai ter que espremer as suas margens. Digamos que ele consiga colocar o produto à venda por R$ 180. É aqui que entra a face mais perversa desse processo; 

Digamos que o ICMS no destino desse produto tenha uma alíquota de 15%. Ele vende por R$ 180 e teria que recolher R$ 180/85% - R$ 180 = R$ 31,76. Só que, como ele já pagou na origem o ICMS de R$ 9,14, e Estado Importador recebe apenas a diferença, entre o devido e o já pago, ou seja, R$ 22,62

O que temos aqui é que uma mercadoria que foi vendida por R$ 80 pagou de impostos, IPI mais ICMS, um total de R$ 43,26 (R$ 31,76 + R$ 11,50), sendo que São Paulo abocanhou R$ 9,14 e a Receita Federal levou R$ 11,50. Esqueci de dizer que o IPI é um imposto federal (que o Mântega adorava manipular para maquiar o buraco em qe estava nos metendo). Coube ao Estado Importador R$ 22,62. 

Existem armadilhas aqui que levam o Exportador a levar vantagem, e o Importador a perder:
  • A lucro líquido do varejista nessa venda foi de R$ 180,00 - R$ 121,50 - R$ 31,76 + 9,14 = R$ 35,88. Muito baixo. O varejista no nordeste é obrigado a isso senão não vende nada. O comércio gera pouca riqueza..
  • A inclusão do IPI, do frete, do seguro, etc. no cálculo do ICMS, além de calculá-lo "por dentro", vai aumentar os custos do varejista, beneficiando o Estado Exportador.
Para se defender disso o Estado Importador não tem outra alternativa que não praticar alíquotas maiores que as dos Estados Exportadores, o que gera reclamação da parte do consumidor. 

Vejamos o que ocorreria se o Nordeste, como querem alguns, fosse outro País. Posso garantir que dificilmente ele iria importar do Brasil. O Brasil é muito caro. Mas se importasse, acreditem, a mercadoria sairia daqui desonerada do ICMS na origem!! Na verdade seria desonerada de todos os tributos, inclusive o IPI. Essa mesma mercadoria chegaria no Nordeste ao preço de R$ R$ 110,00, contra os R$ 130,64 que estão sendo pagos. 

Aí surgiu um paulista esperto chamado Kandir, que achou uma forma de jogar na Federação o que ele chamou de "perdas decorrentes da isenção do ICMS". A cada ano os governadores exportadores negociam com o Executivo Nacional o montante a ser repassado. Essa conta, indo para a Federação, acaba em parte caindo no colo dos Estados Importadores! 

É essa a mágica. Senhores separatistas, pensem bem antes de abrir mão desse Império. 


Comentários

  1. Onde e que estão os inúmeros profissionais de gestão publica que nao percebem esse absurdo ? Parabens pelo seu trabalho , meu querido !

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  2. Luis se você começar a tratar dos absurdos tributários no Brasil, vais ter matéria de sobra para um ano de blogs. A história de como construímos essa torre de babel fiscal também deve ser fascinante. Um pesadelo das boas e más intenções dos economistas e contadores públicos criativos.

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