Pular para o conteúdo principal

O Pós Humanismo

A Revista Veja de 28/12 nos brindou com uma série de artigos da melhor qualidade a respeito dos mais variados assuntos. De todos eles o que mais me chamou a atenção foi o "Adeus ao Livre Arbítrio", do historiador israelense Yuval Harari, o qual vou tentar resumir neste Post.

Pelo que entendi do artigo, a nossa civilização ocidental poderia se caracterizar por possuir ao longo da sua história duas correntes distintas no que diz respeito às normas que controlam as nossas decisões:
  • A corrente que podemos chamar de dogmática, na qual a autoridade provém de Deus e as nossas decisões estão baseadas na Bíblia para os cristãos e judeus, ou no Corão para os islamitas, as três religiões monoteístas que dominam as sociedades ocidentais. As opiniões dos sacerdotes da Jerusalém antiga ou de Meca seriam as balizas que nos levariam a todas as decisões necessárias para termos uma existência "feliz". É importante notar que nos dias de hoje essa fase dogmática ainda tem uma enorme influência em todas a comunidades do planeta que seguem essas três religiões, e podemos afirmar que ela está longe de ser considerada decadente. 
  • A corrente humanista, que nasceu no seio do cristianismo, mais precisamente na Europa Ocidental do século XVIII, na qual houve uma gradual transferência da autoridade de Deus para as pessoas. A rigor eu precisaria consultar apenas a mim mesmo a respeito do que eu quero fazer, e em mim mesmo ter a resposta se o que quero fazer é bom ou não. Ou seja, o nosso livre arbítrio passava a ser a autoridade maior. 
O humanismo, por ter nascido no monoteísmo cristão e por não ter correspondente equivalente no Islamismo, é certamente o motivo pelo qual podemos dizer que, grosso modo, o Cristianismo é hoje menos dominado pelo fanatismo. Isso em termos, isso no presente momento, porque basta fazer uma visita à Andaluzia, apreciar a relíquias arquitetônicas que os árabes deixaram ao lado a horrorosa arquitetura cristã (por exemplo no Alhambra), para perceber que, naqueles dias, eles eram muito mais evoluídos que nós.

Para dar um exemplo prático da forma como um dogmático e um humanista se comportam de forma diferente, o autor cita a parada LGBT em Jerusalém. Segundo ele esse é um dia de harmonia único entre judeus, muçulmanos e cristãos, no qual todos têm a mesma opinião furiosa contra a parada. Com certeza os fanáticos gostariam de dizer "vocês não podem realizar uma parada gay porque Deus proíbe a homossexualidade". Porém o que se vê nos microfones é algo como "ver uma parada gay na cidade santa fere os nossos sentimentos; assim como os gays querem que respeitemos os seus sentimentos, eles deveriam respeitar os nossos". Vê-se aqui uma influência direta do humanismo, onde um debate ético foi conduzido em nome dos sentimentos humanos, deixando de lado os mandamentos divinos.

O humanismo mudou fortemente o mundo acidental. Os governos deixaram de ser conduzidos pelos reis, os representantes de Deus na terra com a bênção papal, e passaram a ser eleitos pela livre escolha dos eleitores comuns. Na economia foi criada a ideia de que o cliente é a autoridade maior e sempre está com a razão. A arte humanista deu um salto no que diz respeito à beleza, se livrando das orientações religiosas. Na educação aprendemos a pensar por nós mesmos, e a ética nos orientou que se uma ação nos parece boa, cabe a nós, e só a nós, tomar a decisão de realizá-la ou não.

Só que o autor nos alerta para uma nova mudança que está ocorrendo no presente momento. Tivemos por muito tempo a autoridade divina legitimada pelas mitologias religiosas, seguida da autoridade humana legitimada pelas ideologias humanistas. Surge agora uma nova autoridade calcada nos algoritmos do Big Data. Esse termo define a capacidade que alcançou a tecnologia da capturar, organizar e interpretar, de forma automática, imensas quantidades de dados. A isso o autor chamou de "Dataísmo", que eu resolvi, sem autoridade alguma, chamar de Pós Humanismo.

Em sua forma mais completa o Pós Humanismo vai chegar à situação de enxergar todos os organismos como algo como algoritmos bioquímicos. Os pós humanistas entendem que a vocação final da humanidade é criar um sistema de processamento de abrangência total, para depois de fundir a ele. Esse sistema de abrangência total, com dados biométricos e capacidade computacional infinitos, chegará à situação em que vai entender muito melhor de nós que nós mesmos. Quando isso vier a ocorrer os humanos terão perdido a autoridade. As práticas que utilizamos hoje, tais como a democracia, não serão mais que ferramentas nas mãos desse sistema para atingir o objetivo final de nos dominar.

O ataque ao humanismo está se dando sob a forma de um desafio direto ao livre arbítrio. Ele está sendo desafiado no seu cerne, pois os estudos científicos modernos sugerem que o modo como o nosso cérebro e corpo funcionam tem um forte ingrediente bioquímico, que nada tem a ver com os sentimentos, o espiritual. Trata-se de uma mera análise probabilística aperfeiçoada com a evolução. Quando vemos um leão somos levados ao medo porque um algoritmo bioquímico calcula a situação e conclui que a probabilidade de morte é elevada. A atração sexual não é mais que uma mensagem de uma probabilidade de acasalamento que necessariamente é cobrada pelo instinto de preservação da espécie.

O Humanismo está aos poucos cedendo lugar a duas grandes vertentes científicas. Temos os biólogos decifrando os mistérios do nosso corpo, com ênfase no cérebro e nos sentimentos, e os cientistas da computação colocando ao dispor da biologia uma capacidade sem precedentes de processamento.

Vou dar um exemplo prático do que aconteceu comigo e certamente está acontecendo com você, caro leitor. Decidi mudar de cardiologista porque a clínica que frequento instalou uma filial perto de casa, e o meu médico não quis dar expediente na nova clínica. Fui à primeira visita e já estava me esperando, impressa, uma relação de exames que incluíam Hemograma Completo, Colesterol Total e Frações, Albumina, Bilirrubinas Totais e Frações, Creatinina, Glicemia, TGP (?), Hemoglobina Glicada, Insulina, Coagulograma e Exame de Urina. Só que o médico que me atendeu deixou a clínica antes de eu voltar com o resultado, e eu pedi que o retorno fosse feito com outro médico. Para minha surpresa fui recebido com o mesmo cardápio.

Resumindo, as decisões médicas "humanistas", aquelas que se baseavam na sensação de estar doente, nos diagnósticos baseados na intuição e na experiência, cederam lugar aos cálculos computacionais que conhecem você melhor que você mesmo ou o seu médico. Cada resultado do laboratório veio acompanhado de um histórico. A glicemia por exemplo, um dado que me preocupa, é mostrada em forma de uma curva que traz todos os exames já feitos nesse laboratório (106 em 03/16, 105 em 04/16, 107 em 10/16 (dispensei a hora, em 10/16 foi às 07:04:37)).

Com isso temos o caso da atriz que descobriu num teste genético ter uma mutação perigosa que, de acordo com os dados disponíveis, dava a ela 87% de probabilidade de desenvolver câncer de mama. Ela não estava com a doença, mas o Big Data recomendou, e ela acatou a recomendação, fazer uma mastectomia dupla, decisão esta totalmente baseada nos algoritmos que a alertaram para uma coisa que ninguém sabia exceto eles.

O ato de ir a uma livraria e ficar horas folheando livros, ou ler resenhas dos livros nos jornais e revistas, são coisas do passado. Hoje, ao entrar numa livraria virtual, você imediatamente recebe a mensagem: "sei de quais as obras você gostou e pessoas que têm as mesmas preferências que você tendem a gostar dos seguintes livros ...". O Kindle pode monitorar quais os trechos que você leu rapidamente ou lentamente, onde você fez uma pausa, ou largou o livro para não mais voltar. A próxima etapa pode ser dotá-lo de reconhecimento facial e sensores que mediriam seu ritmo cardíaco e pressão sanguínea. Ou seja, os livros vão ler você ao mesmo tempo em que você os lê, e a Amazon vai escolher os livros para você com uma exatidão enorme,

Os serviços de streaming também têm os seus truques. Abro o Netflix e leio a seguinte mensagem: "Porque você se interessou por The Cown ...", me convidando par assistir à nova série Designated Survivor. A conclusão a que chegamos é que estamos caminhando para uma era onde o Big Data sabe exatamente quem você é, e irá apertar os botões que irão comandar as suas atitudes.

Chegaremos ao dia em que as decisões mais importantes de nossas vidas, pelo fato de já estarmos dominados pelos algoritmos, serão tomadas por eles, ou pelo menos com uma grande contribuição deles. Os sacerdotes da era medieval, junto com os pais, decidiam com quem você iria se casar. O humanismo transferiu essas tarefa para os nossos sentimentos, e existem estatísticas que mostram que essa mudança não trouxe melhora na qualidade dos casamentos (ao que tudo indica os pais saberiam melhor quem melhor se adaptaria a você). Pois bem, no Pós Humanismo existirá uma infinidade de informação a respeito desse assunto. Você vai consultar por exemplo o Google e ele vai responder algo como: Conheço você desde que nasceu. Li todos os seus e-mails e gravei todos os seus telefonemas, sei quais são os seus filmes favoritos e conheço toda a sua história biométrica. Sei de todos os seus encontros e posso lhe apresentar gráficos do seu batimento cardíaco, sua pressão sanguínea e os níveis de açúcar toda vez que você se encontrou com a Marina e a Paula. Com base nisso tudo e com os meus algoritmos que não falham, entendo que você deve ficar com a Marina, com quem você tem a probabilidade ser 85% de ser feliz a longo prazo.

Os "algoritmos que não falham" vão dar uma probabilidade, no caso de 85%. Num universo grande ele acerta 85% dos eventos. Ou seja, ele não garante que o casamento vai dar 100% certo, mas vamos concordar que 85% é mais do que eu posso imaginar na hora de tomar essa decisão.

Os consumidores e os eleitores estarão à mercê dos homens de negócio e dos políticos. Para os consumidores a perda da privacidade em troca de um acesso a serviços se qualidade superior é vantajoso, e os políticos conseguem entrar em sua casa e saber o que fazer para convencer você a mudar de opinião e votar nele. O Big Data na verdade vai criar uma única fórmula que ira controlar todas as disciplinas, com uma linguagem comum. Sua dificuldade, por enquanto, reside em ainda não saber explicar adequadamente o que entendemos como um "problema de consciência". A consciência ainda não possui um algoritmo que a explique, talvez porque ela biometricamente não tenha explicação.

Mas o cristianismo e o comunismo, credos anteriores ao Pós Humanismo, conseguiram a façanha de explicar a consciência, e vamos esperar que venha a ser encontrado um algoritmo que a explique, porque caso contrário a consciência vai se tronar secundária. É claro que ao leitor não agrada essa alternativa, e o que dispomos no momento para evitar que isso venha a ocorrer é melhorar o conhecimento de nós mesmos sem a participação do Pós Humanismo. Vai ser necessário que os humanos tenham um conhecimento deles mesmos maior que os algoritmos para que suas escolhas ainda sejam superiores. e alguma autoridade ainda seja mantida em suas mãos. Os algoritmos só vencerão essa batalha se a corrente virar em seu favor.

Um exercício interessante é convencer os nossos filhos, na hora deles gastarem o seu tempo com smartphones e tablets, que existem livros nos quais a possibilidade deles se identificarem é maior. Para minha surpresa "O Pequeno Príncipe" está em quinto lugar na lista dos livros infanto juvenis mais vendidos na penúltima página da Veja.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Europa Islâmica

É irreversível. A Europa, o berço da Civilização Ocidental, como a conhecemos, está com seus dias contados. Os netos dos nossos netos irão viver em um mundo, se ele ainda existir, no qual toda a Europa será dominada pelo Islamismo. Toda essa mudança se dará em função da diminuição da população nativa. Haverá revoltas localizadas, mas o agente maior dessa mudança responde por um nome que os sociólogos têm usado para alertar para esse desfecho: a Demografia. Vamos iniciar este Post com um exercício simples. Suponhamos uma comunidade de 10.000 pessoas, 5.000 homens e 5.000 mulheres, vivendo de forma isolada. Desse total metade (2.500 homens e 2.500 mulheres) já cumpriu sua função procriadora, e a outra metade a está cumprindo ou vai cumprir. Aqui vamos definir dois grupos, o velho não procriador e o novo procriador. Se os 2.500 casais procriadores atingirem uma meta de cada um ter e criar 2 filhos, teremos como resultado que, quando esta geração envelhecer (se tornar não procriadora), a c

Sobre os Políticos

Há tempos estou à procura de uma fonte que me desse conteúdo a respeito desse personagem tão importante para as nossas vidas, mas que tudo indica estar cada vez mais distanciado de nós. Finalmente encontrei um local que me forneceu as opiniões que abasteceram a minha limitada profundidade no assunto: Uma entrevista no site Persuation, de Yascha Mounk, com o escritor, diplomata e político Rory Stewart.  Ex-secretário de Estado para o Desenvolvimento Internacional no Reino Unido, Rory Stewart é hoje presidente de uma instituição de caridade global de alívio à pobreza, a GiveDirectly (DêDiretamente em tradução Livre) e autor do recente livro How not to be a Politician, a Memoir (algo como "Como não ser um Político, um livro de Memórias"). A entrevista é longa e eu me impressionei com ela a ponto de me atrever a fazer um resumo. Pelo que entendi, com o livro Stewart faz uma descrição de suas experiências na política do Reino Unido. Ele inicia a entrevista falando da brutalidade

Civilidade e Grosseria

  Vamos iniciar este Post tentando ensaiar teatrinhos em dois países diferentes: País A O sonho do jovem G era ser membro da Força Aérea de A, mas na sua cabeça havia um impedimento: ele era Gay. Mesmo assim ele tomou a decisão de apostar na realização do seu sonho. O País A  não pratica a conscrição, ou seja, ninguém é convocado para prestar serviço militar. Ele está disponível para homens entre 17 e 45 anos de idade. G tinha 22 e entendeu que o curso superior que estava fazendo seria de utilidade na carreira militar. Detalhe: há décadas o País A tinha tomado a decisão de colocar todos os ramos militares em um único quartel, com a finalidade de aumentar o grau de integração e a logística. Isso significa a Força Aérea de A está plenamente integrada nas Forças de Defesa de A. Tudo pronto, entrevista marcada, o jovem G comparece à unidade de alistamento e é recebido com a mesma delicadeza que aquele empresário teria ao se interessar por um jovem promissor de 22 anos. Tudo acertado, surgi