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Evolução e Criacionismo - I

Voltando a Michael Shermer, um americano que insiste em quebrar a borduna criacionista que está firmemente atrelada à sociedade americana, vamos tentar entender qual seria o papel do cético. Ele para isso cita Spinoza, o grande racionalista judeu holandês do século XVII: "tenho me esforçado sempre para não ridicularizar, não deplorar, não desprezar as ações humanas, mas sim tentar compreendê-las". Assim, segundo ele, o papel do cético não seria bater de frente com os criacionistas, mas sim tentar compreender porque eles conseguem rejeitar a teoria da evolução.

Podemos dividir a tese bíblica exposta no Gênesis em duas partes:
  • A Criação, que Deus iniciou criando a luz, a que chamou dia e às trevas noite. Em seguida separou a terra das águas. Nas terras criou ervas que deram sementes e árvores frutíferas. Depois voltou-se para as águas e nelas criou os monstros marinhos, a as aves que voam. Voltou-se então para a terra e criou os animais domésticos e os selvagens. Finalmente Ele fez o homem à Sua imagem, e decretou que ele dominasse sobre os peixes do mar, as aves do céu e sobre os animais da terra. Para tanto Deus levou seis dias, e no sétimo descansou (Gênesis, 1).
  • A Recriação, onde Noé, orientado por Deus, construiu uma arca onde nela entrou com seus filhos, sua mulher e as mulheres dos seus filhos, e então caiu chuva por quarenta dias consecutivos. Toda espécie viva que se movia sobre a terra pereceu, à exceção daquelas que Noé abrigou em sua arca (Gênesis 7,8).
Segundo Shermer, essa abordagem é recorrente em diversas culturas. Os detalhes variam, mas ao longo de milênios eles estão presentes no imaginário de várias culturas. 

O Épico de Gilgamesh é talvez a primeira obra conhecida da literatura mundial. Foi compilado no século VII AC e narra a história do rei sacerdote sumério Ziuzudra, que sobreviveu a um dilúvio, por volta de 2800 AC, construindo um barco. Essa história circulou pelo oriente próximo por séculos, e era conhecia antes da chegada dos hebreus. A sua influência na versão hebraica é evidente, mas existem diferenças culturais. Os rios Tigre e Eufrates costumavam castigar a Suméria e a Babilônia com cheias constantes, coisa que não acontecia de forma alguma na Palestina. Tem mais: o mito sumério não citava embarcar todas as espécies vivas no tal barco.


Trata-se então de um mito, criado a partir de outro mito importado de uma cultura sujeita a inundações e aplicado em uma área distante de grandes rios. Deus teria dado instruções claras a Noé: a arca deveria ter 137 metros de comprimento, 23 de largura e 14 de altura. Segundo os criacionistas a arca continha "apenas" 30.00 espécies, então vamos pensar na logística necessária para alimentar, dar água e limpar todos estes 60.000 animais em um espaço de 44.114 metros cúbicos, ou 1,36 animais por metro cúbico da arca, fora Noé e sua família. Pois bem, o Institute for Creation Research (www.icr.org), fundado em San Diego, Ca, mas transferido para Dallas, Tx, por problemas com a justiça da Califórnia, financiou duas expedições em busca da arca de Noé. Não é necessário sequer estudar zoologia para perceber o absurdo dessa suposição. Seria difícil para Noé encontrar zebras, girafas, animais africanos presentes na ilustração acima, ou lhamas andinas, ou cangurus australianos, para abrigar na sua arca.

Segundo Darwin, não haveria problema em uma pessoa se considerar um teista e ao mesmo tempo adepto da teoria da evolução. O que não é aceitável é fazer a ciência caminhar a reboque de um livro mitológico. Acreditar na existência de um Ser maior faz parte da nossa cultura milenar, mas isso não pode impedir que a ciência siga o seu curso. O argumento criacionista de que a ciência muitas vezes se equivoca (o cigarro já foi indicado para a cura da asma) só depõe a favor dela; é um processo de aperfeiçoamento contínuo, que os fundamentalistas deveriam seguir.

Os russos proporcionaram aos americanos uma oportunidade de livrar o desenvolvimento científico das amarras criacionistas, ao lançarem no espaço os seus astronautas. Ali ficou claro que a ciência americana tinha que dar um passo à frente, e assim surgiram as verbas necessárias para o seu desenvolvimento em todos os campos.

João Paulo II tentou, sem sucesso, uma convergência entre ciência e religião. São palavras dele que "o exame do método usado em diversas ordens do conhecimento permite a concordância de dois pontos de vista que parecem irreconciliáveis. As ciências da observação descrevem e medem com precisão cada vez maior as múltiplas manifestações da vida, enquanto a teologia extrai o sentido final segundo os desígnios do Criador". A reação da direita não católica foi de uma violência impressionante. O presidente do ICR chegou a desautorizar o Papa, dizendo que "ele é apenas uma pessoa influente, não é um cientista. Não há evidência científica para a evolução. Toda a evidência sólida real dá sustentação à criação". Cal Thomas, escritor conservador, disse que "ele aceitou uma filosofia que está no cerne do comunismo, sucumbiu em seus anos de declínio à tirania dos cientistas evolucionistas, que afirmam que temos afinidade com os macacos".

Esse modelo de enfrentamento entre ciência e religião é na realidade uma tática que força o cristão comum a se decidir entre duas coisas, o que virá a torná-lo um ser menos culto, mais intolerante, e por isso mais fácil de ser manipulado. Segundo um juiz da Geórgia, "essa mitologia (?) de Darwin sobre os macacos é a causa da permissividade, promiscuidade, pílulas, preservativos, perversões, gravidezes, abortos, pornografia, poluição, venenos e proliferação de crimes de toda espécie". O Creation-Science Research Center disse que "a pesquisa por nós realizada demonstrou que as interpretações evolucionistas de dados científicos resultam numa generalizada ruptura da lei e da ordem".

Os criacionistas, enfim, estão convencidos de que a aceitação da teoria da evolução implica na perda da fé e  leva à prevalência dos males sociais de toda espécie. A lista dos problemas sociais apontados pelos criacionistas, é claro, existe desde muito antes de Darwin e de sua teoria. Atribuir a Darwin a culpa pela promiscuidade, a pornografia, o aborto, o infanticídio, o racismo, não vai mitigar esses males que há milênios nos perseguem. 

Para encerrar, vou citar as palavras de uma sábia que nos acompanha há 18 anos: nossa empregada Cida. Segundo ela, não é necessário que uma pessoa que trabalha em três casas venha a se preocupar com o que diz um padre ou um pastor. Ela não tem tempo para sequer pensar em coisas ruins, muito menos praticá-las. Não há necessidade de se preocupar se quem veio primeiro foi o ovo ou a galinha, mas sim com o dia a dia que ela tem que enfrentar. Ela não aceita que seja uma pessoa inclinada para o mal, já que ela não o pratica.

Ao ler um livreto que me foi dado na frutaria perto de casa, do qual anexo uma página, chego a uma conclusão aterradora: o medo é um ingrediente importante no processo do arrebanhamento da sociedade, e a informação correta tem que ser subtraída para tornar mais fácil a manipulação das massas. O pecado é a ferramenta a ser usada para esse fim, e é necessário inculcá-lo em nossas mentes como algo que nasceu conosco, de que só nos livramos pela submissão. A Cida, na sua simplicidade, está livre disso. Cabe a nós nos livramos desses mitos. Não deve ser difícil. 

Comentários

  1. Luis voce me conhece, nunca me preocupei muito com o meu lado religioso. Mas o fato é que ele existe. Não apenas em mim. São 2 dimensões distintas a meu ver: a existencia e a realidade. A discussão da criacionismo em termos científicos, lógicos, não nos livra do nosso ser interior, forjado por séculos de medos e fantasias. Estas mesmas são utilizadas para moldar a realidade algumas vezes por interesses bem pessoais ou de organizações ou negócios. Tambem para esculpir uma ética que o homem decide se segue ou não. No entanto aí as temos no fundo disto que é a existência.
    Depois de velho dei por matutar sobre estas coisas, talvez porque precisamos nos justificar ou nos preparar para o fim.

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  2. Finalmente, depois de vários posts, um comentário. Na verdade estou comemorando 5000 acessos este mês, mas não estou muito confortável com o feedback, que tem sido pequeno. Acho que estou falando com as paredes.
    Caro Amaro, o que você faz, como você mesmo diz, com as suas matutagens, é "correto por construção". Eu também tenho os meus momentos de solidão em que inevitavelmente acabo pensando no meu fim. A minha briga não é com a crença íntima, ela não faz mal a ninguém. O que eu não aceito é que estranhos venham tentar me submeter ao medo, ao complexo de culpa. Com isso eu não compactuo.

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  3. Parabéns ,querido ! Voce e muitos outros sao porta-vozes de uma nova era da humanidade. Saímos da infância medrosa e temente a um pai invisível e assumimos responsabilidade pelos nossos próprios atos . Viva a maturidade !

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  4. O fato de ter poucos comentários pode ser devido a burocracia para registrar e confimar etc. Já mais de uma vez desisti de comentar por não vencer estas barreiras pouco práticas.

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