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A Moral sem Deus

Peço aos caros leitores a leitura atenciosa do seguinte argumento:
  1. Se Deus não existe, também não existem valores morais objetivos nem deveres.
  2. Valores morais objetivos e obrigações existem.
  3. Logo, Deus existe. Nós não podemos ser verdadeiramente bons sem Deus; mas se nós podemos ser bons, em alguma medida que seja, então segue que Deus Existe.
Esta é a posição do filósofo-teólogo americano William Lane Craig, expressa no artigo "Moral sem Deus?" da Veja de 19/04. Craig é o que se poderia chamar de uma espécie de Donald Trump na luta contra os chamados novos ateus. Segundo ele, existem valores e deveres que independem da opinião das pessoas. São ditames de decorrem da aceitação da presença de Deus em nossas vidas e não devem ser contestados por isso. Numa concessão que é mais uma alfinetada nas posições ateias, ele até reconhece que para se ter uma conduta ética não seja preciso acreditar em Deus: "A questão não é se há necessidade de acreditar em Deus para ter uma moralidade objetiva, mas sim se há a necessidade de que Deus exista para que exista uma moralidade objetiva. Fico chocado em ver que até mesmo filósofos profissionais confundem essas duas questões".  

Como ateu que sou e como pessoa extremamente preocupada com esse assunto, a Moral sem Deus, tenho lido muito a respeito dele, e para minha alegria encontrei respostas definitivas no grande livro que estou terminando de ler: "Sapiens, Uma Breve História da Humanidade", de Yuval Noah Harari. A forma didática como ele enfrenta esse assunto me deixou de tal forma impressionado que resolvi expô-la neste Post. Meu objetivo é inverter um pouco o sentido da terceira sentença do argumento acima.

Harari começa com a diferença entre "objetivo", "subjetivo" e intersubjetivo":
  • Um fenômeno objetivo existe independentemente do entendimento que fazemos dele. A radioatividade por exemplo não é um mito. Suas emissões existiam antes de serem descobertas e são perigosas, ainda que pessoas talvez não acreditem nelas. A própria Marie Curie não sabia dos seus perigos quando a descobriu e morreu por isso. 
  • Já um fenômeno subjetivo existe na consciência de um único indivíduo. Ele pode desaparecer na medida em que esse indivíduo altera suas crenças ou seus conhecimentos. Sou fã da tira Calvin e Haroldo, em que o menino Calvin tem com o seu tigre de pano Haroldo o mesmo relacionamento que eu tinha quando criança com o meu "amigo imaginário". Quando aparece outro personagem na tira o Haroldo volta a ser um tigre de pano.
  • O fenômeno passa a ser intersubjetivo quando ele liga a consciência subjetiva de muitos indivíduos. Se um único indivíduo mudar suas crenças, ou morrer, isso será de pouca importância, mas se a grande maioria dos indivíduos dessa rede mudar suas crenças o fenômeno tende a se transformar ou desaparecer. Esses fenômenos não são de forma alguma fraudulentos, eles existem de maneira diferente dos fenômenos objetivos como a radioatividade, mas seu impacto no mundo é gigantesco. As forças mais importantes da sociedade são intersubjetivas, nelas podendo ser incluídas as empresas, as leis, o dinheiro, os deuses e as nações. 
Tomemos por exemplo a Petrobrás, que está na crista da onda no momento. Ela não existe apenas como amiga imaginária do seu presidente; ela está na imaginação compartilhada de milhões de pessoas. Seu presidente acredita nela porque milhões de pessoas também acreditam. Seu patrimônio é mero ajuntamento de prédios e outras instalações que, se tiverem o nome Petrobrás a identificá-los remete imediatamente nossa atenção a esse ser virtual: Petrobrás. Seu valor virtual será feito pela avaliação de todo o seu acervo através de outra entidade virtual, o dinheiro, que tem uma visibilidade restrita a papéis que estampam o seu "valor", mas que não passam de tiras de papel, que outra entidade virtual, a nação que se responsabiliza por elas, homologa. O Brasil, outra entidade virtual, existe na imaginação de bilhões de pessoas, interna e externamente ao seu território, mas esse território tempos atrás tinha outro nome, ou melhor, sequer tinha nome. Eu sozinho, não posso ameaçar a existência do Brasil, ou deixar de acreditar no Real, na Petrobrás, ou nos Direitos Humanos; isso não faria a menor diferença. 

Os fenômenos intersubjetivos resultam no que se costuma chamar de "ordens imaginadas". São entidades que para ser mudadas seria necessário mudar simultaneamente a consciência de milhões de pessoas. Essa mudança pode ser alcançada de algumas maneiras, por exemplo através de um partido político (em sociedades onde eles possuem credibilidade), por um movimento ideológico (como a implantação do comunismo em certas nações), ou por um culto religioso (por exemplo o movimento evangélico brasileiro). 

As chamadas ordens imaginadas, para serem construídas, precisam do esforço de convencimento de pessoas estranhas a cooperarem umas com as outras, e isso só vai ocorrer se esses estranhos partilharem de alguns mitos, e para mudarmos uma ordem imaginada precisamos passar a acreditar numa ordem imaginada alternativa. 

Para derrubarmos a ordem imaginada Petrobrás é necessário que a sociedade passe a desacreditá-la, e entregue o seu desmanche ao Sistema Político Brasileiro. Isso foi considerado recentemente, mas o mito Petrobrás foi mais forte. De qualquer forma, não podemos escapar das ordens imaginadas, elas existem ao nosso redor e somos prisioneiros delas, mesmo que nosso entendimento das coisas não as perceba como tal. 

Dito isso, vamos voltar ao raciocínio enviesado de William Craig. Para ele existe a necessidade de um "Deus Certo" (o deus errado, por exemplo o muçulmano, não serve, pelo menos para ele) para que exista ética no mundo dele. Já para Yigal Hahari, existe uma inversão da ordem, algo como procurar quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. Vamos tentar acompanhar o argumento de Harari. 

Para os historiadores, a Revolução Agrícola foi o acontecimento mais controverso da história. A conversão do Homo Sapiens de caçador-coletor para agricultor, para uns, foi o caminho da prosperidade, e para outros foi o caminho da sua perdição. Harari entende que nesse momento houve o abandono da simbiose com a natureza e a corrida rumo á ganância e a alienação. A agricultura, que nasceu quando os coletores perceberam que as sementes que caíam ao redor de suas casas floresciam, permitiu que as populações aumentassem de forma tal que não permitia o seu retorno à caça e à coleta. Em 10.000 a.C., antes dessa transição, havia na Terra entre 5 e 8 milhões de caçadores-coletores. No século I d.C. restavam apenas 1 a 2 milhões de caçadores-coletores (principalmente na Austrália, na América e na África) e 250 milhões de agricultores. 

É claro que esse crescimento populacional resultou na necessidade da criação de uma elite que viesse a coordenar esse ajuntamento das pessoas em comunidades até então desconhecidas pelos caçadores-coletores. Com isso os agricultores se viram obrigados a trabalhar no campo para seu sustento e o sustento dessa elite, a qual acabou por criar um sistema que a beneficiava muito mais que aos seus "fornecedores". Os socialistas vão rotular essa situação como exploração do homem pelo homem, os capitalistas vão chamar isso de meritocracia, e essa discussão nunca vai ter fim. 

Fato é que os humanos, como os chimpanzés, possuíam instintos sociais que permitiam que nossos ancestrais construíssem amizades. Mas como os chimpanzés, eles só eram adaptados a pequenos grupos íntimos. Quando o grupo crescia além de certo limite a ordem social se desestabilizava, e o bando se dividia. 

Para que essa ordem fosse quebrada e as comunidades viessem a crescer, entre 70 mil e 30 mil anos atrás, deu-se um fenômeno que veio a ser chamado de Revolução Cognitiva. Simplificando, seu efeito na linguagem praticada pelo Homo Sapiens se deu de duas formas:
  • Sua linguagem passou a dizer respeito não apenas aos outros animais, mas também aos seus companheiros. Os zoólogos conseguem identificar entre os primatas gritos que significam "cuidado, um leão", às vezes até empregados de forma fraudulenta, para ficar com a banana que o outro estava pegando. Os humanos por outro lado foram aprimorando a sua linguagem até chegar a algo como "ontem à tarde vi um leão na beira do rio", onde foram inseridas noções de tempo e lugar. Mais tarde ela se aperfeiçoou a ponto de partilhar informações sobre eles mesmos, o que os transformou em animais sociais. Não bastava saber onde estava o leão, mas também quem no grupo odiava quem. Algo como uma Teoria da Fofoca, que veio a permitir que os grupos se conhecessem melhor e se tornassem maiores. 
  • Em seguida a linguagem passou para um outro processo de evolução, em que o Homo Sapiens adquiriu a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. Até onde se sabe, apenas nós podemos falar sobre entidades que nunca vimos, tocamos ou cheiramos. Surgiram assim as lendas, os mitos, os deuses e as religiões, decorrentes da evolução da nossa linguagem com a Revolução Cognitiva. 


A imagem acima é o famoso "homem-leão" da caverna de Stadel, na Alemanha. É uma escultura em marfim de mamute, que representa um corpo humano com a cabeça de um leão. É o exemplar mais antigo que se conhece de uma arte certamente mítica, muito provavelmente religiosa, da capacidade que adquirimos de imaginar coisas que não existem de fato. Descoberta em 1939 em pedaços, foi restaurada em 1997, e sua idade medida por Carbono-14 foi estimada em 32 mil anos. 

Podemos fazer algumas elucubrações sobre o que levou nossos antepassados a esculpir esta estátua de 30 cm. A partir da Revolução Cognitiva o homem adquiriu a capacidade de dizer algo como "o leão é o espírito guardião da nossa tribo". A comunidade pode ter assumido essa ficção como uma "ordem imaginada", e passar a confiar naqueles que partilhavam dessa opinião, e esse partilhamento pode ter facilitado o seu crescimento. 

Uma vez estabelecida a "ordem imaginada" das entidades protetoras, fossem elas leões, fadas, unicórnios, deuses monoteístas profundamente autoritários e rancorosos, nada como fazer uso desses mitos para estabelecer regras que tornassem possível a convivência de comunidades maiores. Elas eram essenciais para a cooperação de forma flexível de um número enorme de pessoas estranhas. As missas de domingo por exemplo, acontecem em diversos horários, e é bem possível que a pessoa que vai à missa das 10 conheça bem poucos que vão à missa das 6 da tarde, mas ela sabe que os que vão à missa das 6 da tarde também partilham os mesmos valores que ela.

Voltando ao artigo da Veja, essa hipótese também é levantada com autoridade pelo psicólogo evolucionista Robin Dunbar. Segundo ele, "a religião é um mecanismo para criar comunidades". Cada um de nós seria capaz de ter apenas uns 5 amigos íntimos, 50 bons amigos e 150 amigos, e de reconhecer pelo nome não mais que 1500 pessoas. Mesmo não sendo religioso ele se impressiona com a capacidade das religiões de criar enormes comunidades. Para ele a religião foi desenhada pelos nossos antepassados para unir comunidades maiores que 150 pessoas, mas seus mitos se disseminaram de tal forma que hoje o que vemos é uma tendência ao totalitarismo religioso. Dentro desse quadro se torna necessária a incursão a outras "ordens imaginadas" concorrentes. Com isso vem o conflito. 

Mas voltando ao uso da religião para o estabelecimento da moral, nada melhor que atribuir aos deuses imaginados a autoria das normas que vieram a facilitar a convivência em comunidades cada vez maiores. A primeira iniciativa nesse sentido se deu na Babilônia em 1776 a.C. através do famoso Código de Hamurabi. Seu texto começa com os deuses Anu, Enlil e Marduk nomeando Hamurabi o seu representante na tarefa de "fazer prevalecer a justiça, abominar o que é mau e perverso, impedir que os fortes oprimam os fracos". São mais de 300 regras com uma fórmula estabelecida: "se tal coisa acontecer, tal é o julgamento". Vejamos algumas:
  • Se um homem superior arrancar o olho de outro homem superior, deverá ter o seu olho arrancado; se ele quebrar o osso de um homem superior, deverá ter seu osso quebrado"
  • Se ele arrancar o olho de um homem comum, ou quebrar o osso de um homem comum, deverá pagar 60 siclos de prata. 
  • Se ele arrancar o olho do escravo de um homem superior, ou quebrar o osso do escravo de um homem superior, deve pagar metade do preço do valor do escravo. 
Depois de lermos esse código não temos como reclamar da prisão especial para pessoas de nível superior no Brasil. Hamurabi dividiu a sociedade em 3 castas, os superiores, os comuns e os escravos. De qualquer forma, com base nessa divisão ele estabeleceu regras de convivência para a Babilônia, o maior império da época. Ele encerra o seu Código com a afirmação que "não se eximiu da responsabilidade para com a humanidade, entregue aos seus cuidados pelo deus Enlil, e de cuja condução o deus Marduk me encarregou". 

Não existe diferença alguma de forma entre o Código de Hamurabi e os Dez Mandamentos. Podemos questionar diferenças de conteúdo, mas ambos foram redigidos por um Deus, e implantados por intermédio de um emissário, na figura de Hamurabi em um caso, e na de Moisés no outro. Ambos são ordens imaginadas com a finalidade de tornar mais controlável as sociedade onde elas foram implantadas. 

Dito isso, e para não nos estendermos muito mais, recomendo fortemente a leitura do livro do Harari (já existe outro na lista da Veja). Para encerrar, quero concluir que William Craig está coberto de razão no seu argumento. Com uma ligeira mudança na forma como ele se expressou, podemos promover um enorme abraço entre os crentes e os céticos, e mesmo entre crentes de diferentes ordens imaginadas. Vamos tentar:
  1. Se Deus não existir, também não existirão valores morais objetivos nem deveres.
  2. Valores morais objetivos e obrigações são necessários.
  3. Logo, Deus deve existir. Nós não podemos ser verdadeiramente bons sem um Deus; mas se nós podemos ser bons, em alguma medida que seja, então segue que Deus foi criado.


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